quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

Natal de inverno

                              
                                      Maria  Apparecida  de  Mattos

Pela  octogésima  terceira  vez
pego  a  trilha  do  presépio.
Saudade  dos  tempos
em  que  levei  para  o  Menino
o  coração  recheado
de  chocolate  e  açúcar-cande,
granito  bruto  de  crença,
espáduas  indefesas
das  chibatadas  da  vida.

Preciso  de  cajado,
as  pernas  bambeiam
e  os  pulmões  arquejam.
Coração  com  algumas  cicatrizes
costuradas  pela  fé,
granito  esculpido
com  ferramentas  de  dor  e  esperança,
entrega  pura
na  manjedoura  simples,
tão  simples  como  meu  gesto  de  amor
neste  Natal.
A  neve  cobre  meus  cabelos,
mas  o  milagre  do  Espírito
incendeia-me  a  alma.

                 1º/12/2017



              

segunda-feira, 18 de dezembro de 2017

Depressione.

                                    Neuza Lima

E o sol invasivo
entra pelas frestas
dos meus vazios
e os acorda das trevas.

Arranca com violência
os trapos negros
que os encobria faz tempo,
naquele velho sótão
chamado corpo.

Seu jato de luz cortante,
lamina afiada brilhante,
à fórceps,
traz luz às minhas prematuras trevas,

Nasce um ser torto,
carente, serpente,
engolidor de gente.

De repente. Serpente.
Arrasto-me sinuosamente subindo e descendo
em busca de saída nos fachos de luz,
que salteiam por todo canto,
até cair abatida e aterrada
em pressão e ausência.

Não há saída.
Estou presa no clarão dos meus vazios.

segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

A LARANJA


                                                     Charles Kiefer

O poema adormecido na laranja,
deitado sobre o mínimo de si,
redondo, amarelo de desejo, afasta
o nada, divide o espaço em gomos,
aprisiona o olhar e a saliva.



          meu processo criativo
          beira a loucura de buscar
          o que só pode ser alcançado
          sem nenhuma lucidez
                                                     Cristina Martim Branco

sábado, 9 de dezembro de 2017

Crença

                                       Carlos Nejar

Ainda serei eterno.
Não sei quando.
Sei que a sombra se alonga
e eu me alongo,
bólide na erva.

Ainda serei eterno.
Tenho ânsias cativas
no caderno. Cortejo
de símbolos, navios
e nunca mais me encerro
no meu fio.

Ainda serei eterno.
O mês finda, o ano,
o recomeço.
E o fraterno em mim
quer campo, monte, algibe.
Mas sou pequeno
para tanto aceno.

Metáforas me prendem
o eterno
que se pretende isento.

Numa dobra me escondo;
Noutra, deito.
Os nomes me percorrem no poente.
Sou sobrevivente
de alguma alta esfera
que saia de si mesma
e é primavera.

O eterno ainda será viável
como o sol, o dia,
o vento;
misturado ao que me entende
e transborda.
Misturado ao permanente
que me sobra.

terça-feira, 5 de dezembro de 2017

O DIA INACABADO

                                                                          Ledo Ivo

Como todos os homens, sou inacabado.
Jamais termino de ser.
Após a noite breve um longo amanhecer
me detém no umbral do dia.
Perco o que ganho no sonho e no desejo
quando a mim mesmo me acrescento.
Toda vez que me somo, subtraio-me,
uma porção levada pelo vento.
Incompleto no dia inacabado,
livre de ser ainda como e quando,
sigo a marcha das plantas e das estrelas.
E o que me falta e sobre é o meu contentamento.

quarta-feira, 29 de novembro de 2017

de Infância


                               Roberto Evangelista


Os pés no riacho

e um frescor subindo

à cabeça...



Esse pé de vento

não me cansa:

fui parar na infância

de Jardins e Afins:



                            Roberto Evangelista

Em volta da

cerejeira em flor

libélulas fazem amor


Flores germinadas?

Qual nada! Borboletas

camufladas!...

       
A mão que planta

sabe da integridade

da semente?


Coaxos e cricris

invadem devagar a

terra crepuscular


Vagas de vaga-lumes

ou a via láctea

no breu da mata?





terça-feira, 28 de novembro de 2017

uma aposentada


                                         Fátima Fonseca

Toda manhã
oro, arrumo a cama,
tomo café com poesia
em seguida os remédios de uso continuo,
espio meu blog
rego minhas plantas
e quase incrédula
apressada para não desistir  
adubo
sonhos
porque os dias são sem exatidão.


                              Ademir Antonio Bacca
o que escondo
nem sempre é
a minha parte
mais perigosa

um bloco de ternura
hiberna
há muitos invernos
submerso em mim
à espera
de tantos reencontros

quinta-feira, 23 de novembro de 2017

escrever


amiga dos três porquinhos
ela tinha admiração pelo pedrico
e escreveu seu primeiro bilhete

por favor pedrico
preciso aprender a fazer armadilhas para lobos
venha me socorrer da perseguição do eu palhaço
quando terminou o escrito, sentiu alívio
já haviam roubado lhe a ofensa.

ela nunca mais deixou de escrever.
                                                            Fátima Fonseca



preciso sonhar fora de órbita
por isso vivo tentando 
poesia.

                                      Fátima Fonseca

poessência


“ você vai vivendo algumas coisas e algumas coisas vão vivendo em você”
eu bebo poesia diariamente
logo sou poecólatra.
                                     Fátima Fonseca


sexta-feira, 17 de novembro de 2017

Prestigiando nossos colegas vencedores concurso literário OAP-UFMG



LE BUREAU DU PÈRE



      autor: Sebastião Aimone Braga                                                
tradução: Sebastião Aimone Braga                                                  


Mon père avait un bureau haut

Doù je contemplait ses clients

Le balcon, le gens, le mouvement.

Devant moi, la route en enfance.



Ce bureau avait deux tiroirs.

Le premier, toujours fermé,

Gardait l’argent et une arme,

Qui jamais a été utilisée.

Dans le second: des papiers,

Des timbres, un canif, des livres

des portraits anciens, le mystère.



Sur le bureau, un vieux radio.

Le matin, je l’attache.

J’écoute un bonjour du locuteur.

L’après-midi, c’était les feuilletons.

La nuit, mon père dormait tôt

Et j’allais acompagner mon football,

Mes idoles au milieu du noir et moi.

Au fond, la course peureuse des rats.



Qui était ce mal elevé

Qui envayait ce silence là,

Volait des choses, touchait les cachés,

Essayait son petit pas?



Qui était ce père? Qui était cet enfant?

Quelle histoire écrivait le destin?



Le radio et le bureau n’éxistent plus

Les tiroirs sont de la mémoire

Et mon père reste dans un quai tranquile

Entre les pierres du temps et d’histoire.



Mais ici, je fait ce chant,

Dessiné, gris, en écrivant

À partir des rêves, je me souviens.

Les mots prennent cet enfant.

La vie, maintenant, une immersion,

Et mon père, il est si si distant.



Devant moi, chargé par la mer,

Le radio, le bureau, les tiroirs,

Ils égouttent lentes. Comme le père,

Ils s’envolent sans espoir.

                                     

                             



quinta-feira, 16 de novembro de 2017

para quês



Fátima Fonseca

tenho andado esquecida
datas, nomes...
visitam me  de relâmpagos
as ilusões
como mosquitinhos
farejando os olhos mortos de  fingimento

dor?
só quero a dor inventada na poesia
algumas antigas demais
e tudo vira  poema  novo em mim.
até num traço a lápis nas sobrancelhas
e cada mal traçados subentendidos
além de verso
impulso de vida

essa teimosia de ser
mulher bonita
que também nada impeça
de perseguir a sabedoria
nessa vida cheia de para quês
que a cada dia se esvazia.
  

segunda-feira, 13 de novembro de 2017

                       Acionildo Albuquerque
Deste-nó. 
Incertos 
são os acertos 
de certos sentimentos

Transformação


Roseane Murray

Fabrico uma árvore
com uma simples semente,
terra escura e quieta,
umas gotas de água.
Pouco a pouco,
de lua em lua,
de folha em folha,
enquanto o tempo
desenha arabescos
em meu rosto,
minha árvore se transforma
em poema vivo,
suas letras são flores,
são frutos, são música

domingo, 12 de novembro de 2017

APENAS ELE


                             Iacyr Anderson Freitas


tudo muito quieto
não fosse o menino
brincando
na memória

eis minha infância
entre os móveis
como o retrato
de cecília
& alguém toca o piano
    apenas ele
    destoa
    da mobília



AFLIÇÃO DE UM JOVEM POETA


                                         Adelaide Petters Lessa

Ele: Livro de poesia
        é como
        teia de aranha.

Ela: Prende a folha, prende a chuva,
        rehidrata a sobrevida.

Ele: É coleta de sangue,
        balanço de suor, colcha de pranto,
        esperma, linfa, baba,
        é mordida, auto-defesa.

Ela: Mas, pelo design,
        espantosa, delicada geometria ...

Ele: Estrela, sistema solar,
        mandala no ar, exágono de êxtases.

Ela: ... sujeita a riscos,
            vendavais, tempestades,
            pedras e lava,
            e críticos impérvios.

Ele: O analfabeto rasga.
        O cego pisa.

Ela: E a mãe conserva,
        entre pétalas de rosa
        e penas caídas,
        azuis, de periquitos.




quinta-feira, 9 de novembro de 2017

Maria, a matriarca

                                        


                                                          Fátima  Fonseca

Fevereiro, 1902. Estamos no cerrado do norte de Minas Gerais. O dia começava a clarear. Juca arriava  os cavalos e Serafina, sua mulher, passava o café no coador. Eles moravam numa casa dentro da floresta com animais, curral, engenho... Esse dia era domingo e eles se preparavam para ir a cavalo assistir à missa num arraial próximo. Era quase uma pequena viagem, que eles faziam com fé e alegria, pois o padre só ia ao arraial celebrar missas duas vezes por ano.

Do outro lado, embrenhada mato adentro, Ritinha contorcia-se de dores e dava a luz a uma criança. Ritinha era solteira e havia ficado grávida de um colono da fazenda de seus pais. Escondeu essa gravidez com muitos babados e sofrimento. Perder a virgindade solteira seria uma desonra, uma traição imperdoável.  A criança nasceu ali no matagal e Ritinha a jogou entre as folhas de piteira, planta com espinhos, típica do cerrado. - Sinto muito, mas logo, logo você será devorada por algum animal faminto. Se eu a levo comigo, eu é que serei devorada viva pelo meu pai, ou ser apedrejada e cair na boca de todos os moradores dos arredores. Ritinha vivia esse drama.
Ritinha havia ficado livre daquele feto e voltou para casa.

Enquanto isso, Juca e sua mulher, a caminho do arraial, estavam acostumados a ouvir o trotar de seus cavalos cortar o silêncio das estradinhas com matas fechadas, mas naquele domingo eles tiveram que parar os animais para decifrar aquele piado que ecoava distante.  É miado de um gato! Exclamou Juca para Serafina. ­- Não! Estranho! Muito estranho, retrucou ela. Ambos tiveram o ímpeto de descer dos cavalos e foram seguindo aquele som que, quanto mais eles se aproximavam, mais parecia o choro de um bebê recém-nascido. Lá estava Maria Pia, nome que logo recebeu, suja de sangue, cordão umbilical. Serafina tirou suas anáguas, enrolou a menina e retornaram para casa. Maria tornou-se a alegria do casal, que não tinha filhos. A vizinhança daqueles arredores rurais comentava, curiosos, o ocorrido.

Ritinha e sua mãe ficaram mudas, uma sabia que a outra sabia, mas fingiam-se alheias. Aquele assunto pouco foi comentado naquela fazenda.
Do outro lado, Maria crescia entre bichos, cuidados e muito afeto dos pais adotivos. Já estava ficando mocinha, parecia uma índia, morena, cabelos lisos, olhos puxados. Seus pais contrataram um professor para ensiná-la a desenhar seu nome. Compuseram um dote (terreno, arreios, ferramentas, um casal de cada animal e alguns réis), afinal Maria precisava de um pretendente para não ter o mesmo destino da sua suposta mãe biológica. Foi aí que apareceu o Jacinto. Homem de uma família daquela região, com os costumes tradicionais do lugar. Era boa gente, acanhado, franzino, branquinho, olhos azuis. Maria e Jacinto casaram no civil e ritual religioso para alegria de seus pais. Embora Maria soubesse fiar, bordar, cozinhar, pois fora treinada para ser uma exímia dona de casa, ela se destacou mesmo foi nos negócios. Era ela quem decidia o que plantar, o que vender e dizia: - Jacinto, temos que comprar mais terras! Já diziam os antigos: A terra, o ladrão passa por cima e não leva. Esse, sim, é negócio seguro, enfatizava. Jacinto obedecia (não sei se era feliz), mas não reclamava de nada. Juntos tiveram 14 filhos, todos nasceram lá no meio do mato, saudáveis, parto normal, parteira, banho de bacia. José, o segundo filho daquela escadinha, é o meu pai, e eu, mais uma Maria dentre as inúmeras Marias dessa linhagem familiar.

Essa minha avó, uma matriarca de quem se tomava a bênção, para todos nós era a Deusa do saber, com quem todos se aconselhavam. Mal assinava seu nome, suas compreensões de Deus vinham através da natureza, do ouvir e, principalmente, do sentir.
Um dia, conversando com ela, me lembro de que estava beirando seus noventa anos, e com muita sutileza, eu queria saber sobre mágoa e superação, se havia feridas.

Ela me disse: Aqui na redondeza a minha historia é um conto dramático. As pessoas acham que eu carrego comigo o trauma de ter sido abandonada, que não podem comentar comigo esse assunto. Ledo engano! Não tenho o que lamentar. Acho a vida muito boa. Basta olhar o nosso quintal: as flores da pitangueira querem ser pitangas, as flores da pimenteira querem ser pimentas, as flores de mostarda querem ser mostardas, cada uma no seu jeito. Eu vim ao  mundo ao meu jeito, chorei e me esforcei para ser Maria. Simples! O importante é que estou aqui. E sorriu. O único sentimento que carrego dessa historia é de piedade, piedade de minha mãe, que me gerou e que certamente viveu um drama carregando consigo a dor. Abraçamo-nos longamente.


                                                 Wilson Pereira
FUGA

O menino fugiu-me
sem que eu visse
por onde:

foi atrás da estrela caída,
foi colher uma flor do campo
e se perdeu de mim
que andava tão longe?

Ou o menino
subiu pelo arco-íris
pensando que era ponte
entre mim e o horizonte?

Ou o menino
fugiu-me

com medo de ficar grande?


VISÃO

Da janela
eu me vejo

                            indo.

Vou em mim
e me espero:

eu
vindo
me vejo
                   na janela.


AMBOS

Outro dia
passando por mim

eu quase me reconheci

mas íamos
ambos apressados

um para o futuro
o outro para o passado.


FAGULHAS

Vou incinerar este dia
com o fogo do crepúsculo

e depois
com sôfregos músculos
vou escavar sob as cinzas
um sonho
e outros aindas.


OUTRO

Querida,

quem te amou
fui eu,

não sou eu.


EUS

Dos eus
que me habitam
um há que me intriga:

hipócrita, mesquinho.

Mas qualquer dia,
quando estiver dormindo,
eu saio devagarinho,
apago a luz, bato a porta
e o deixo, para sempre,
sozinho.


SOU

Enquanto penso
enquanto pulso
sou um pequeno
Deus avulso.


SAÍDA

Resolvi meu dilema:

antes do fim,
na hora extrema,
vou sair de mim
e viver num poema.

quarta-feira, 8 de novembro de 2017

                                                           Isaac  Ramos

CARDÁPIO LÍRICO
Sirva-me tua concha molhada de versos
Sirva-me um verbo lambuzado de gestos
Sorva-me em gotas como delírios poéticos
Embriaga-te com lírios
Enquanto tocas liras inconfessas.

DOCE METÁFORA
O teu canto é uma nota solta
O teu grito uma carícia frouxa
O teu pranto uma gota louca
Mas o que mais admiro em você
É esse incrível sabor de metáfora.
(RAMOS, 2007, p. 1).

ÚLTIMO POEMA
Sangro centelhas líquidas e dementes
Deságuo em uma mulher exposta ao seu holocausto
Absorvo-a em doses duplas de pecado
Sirvo-me no seu cálice rubro de recato.
Bebo-a em sacrifício silente
Mordo enseadas úmidas de metáforas
Extasio-me na tinta verde dos seus olhos tintos
Liquefaço-me em ritmos que a deliciam.
Gota a gota embebo-a em venenos
Retiro dela o mais puro antídoto
Que evapora nas dobras de um poema
Enquanto escrevo nela o dilema da minha poesia.
(RAMOS, 2007, p. 3).


CONCHAS DE SILÊNCIO

Eu me visto com conchas de silêncio
Solto um grito de verso
Que escorre
Nas areias do deserto...
O oásis me contagia de sinestesias.

TINTAS

Tanto me tentas com tuas tintas
Que tuas tintas tanto me pintam

Tanto me pintas nas tuas linhas
Que tuas linhas tanto me rabiscam
Tanto rabiscas nas minhas páginas
Que minhas páginas tanto me tentam.,

Tintas, tentas, pintas, linhas.
Rabiscas os meus rascunhos
Que eu te passo a limpo.

MUSA PASÁRGADA

                                                        Rosidelma Fraga


Vim outrora pra Pasárgada
E aqui sou amante de índio...
Tenho o verde que anseio,
o flanco denso do rio branco
Que na orla despe meu pranto.

Ao canapé das papoulas
palpitam minhas duas metades:
A metade da alma pantaneira
E o lavrado das cinzas do norte.

Fênix nua, sem pudor, sem Persa,
sem Rei e de grinalda majestosa,
vem cantar e sambar à beira-mar...
E de amar-te tanto, amada Roraima
Travisto-me na cama de Anactória
E tu te tornas minha Musa enamorada.

sábado, 4 de novembro de 2017

Parabéns ppoeta! Que venham os anos!


Uma amiga


Solange Amado

Olhinhos azuis. Cabelos como uma névoa branca em torno do rosto. Mãozinhas pequenas e finas, sempre agitadas. E para por aí sua semelhança com uma doce velhinha. Nem velhinha, nem doce. Aliás, velhinha é a mãe! E doce é a senhora sua avó! Arrisco minha vida ao dizer que tem um ar maternal. E tem. Mas é só para enganar os incautos.
Vez em quando roda a baiana. Tem cabelo nas ventas. Nasceu assim. Pra todo mundo segurar o fôlego quando conversa com ela. Não use diminutivos. Se você disser que ela parece sua vovozinha, tão meiguinha, danou-se. O trem fica feio. Você pode levar um catiripapo no pé da orelha ou um dedo em riste no nariz, pra desfazer de vez essa má impressão de que ela é uma coisinha fofa. Não é. Ela aceita o coisinha. Nunca o fofa.
Segura a vida nos dentes. E cospe o bagaço do que é pouco saboroso. Namora de longe, mas olha meio de banda pro feminil. Homem bom mesmo pra ela é o Bento. Assim meio chucro, pouco lapidado. Aquele que pega, joga na parede e chama de lagartixa. Depois manda flores. Morde e assopra. Vem e vai. Desde que venha na hora H.
Aliás, pra quê garfo e faca? A vida é pra comer com as mãos. Essa coisa insossa, natureba não é com ela. Tem que ir ao tutano. Haja energia pra compartilhar essa viagem.
Produz versos. É importante ressaltar. E quando o Espírito Santo baixa na sua horta, não se faz de rogada. Vai lá e confere. São versos fortes, às vezes ácidos, às vezes amargos, mas o açúcar está sempre no fundo.  E acaba arrastando seus companheiros, seus leitores, seus amigos, ao paraíso, levados pelo canto dessa sereia, meio menina, meio mulher. Um tanto recalcitrante. Meio empacada. Sempre com a espada em riste, lutando com os moinhos de vento da vida e da morte.
Esta é minha amiga Cida. Olhinhos azuis, mãozinhas delicadas, versos fortes, cabelo nas ventas.
Volta e meia bota o dedo no nariz da gente: “Sabe com quem está falando?” Mas é só sacudir que embaixo tem mel.
Feliz aniversário minha amiga! Muita energia e bênçãos!

                                                     

O CANTO DO RIO

       
 Sebastião Aimone Braga 

Apparecida tem um todo de rio
Muito azul no mar dos olhos
Águas transparentes, caudalosas
Ondas e paisagens, longa corrente.

Murmúrios e gritos, bentos arrulhos
Nas curvas amplas, derrama-se em versos
Duas margens completadas em filhos
E a terceira, música e transcendência.

Apparecida soa como via continuada
Transparece em idas e vindas.
Escrita de dois pês, muitas letras
E Mattos, espraiar duplo de verdes.

Nasceu perto do mar, Juiz de Fora.
Ares e mistérios das montanhas
Em tons de cinza e azul, horizontes.
Vivência dinâmica da criação paulista.

Máquina de escrever, de poetar,
Buscas e caminhos, águas à flor da pele
Mais um dia, mais e muitos versos
Em seu universo e neste aniversário!
                                                              

                                                        

MUITO ALÉM DO PONTO E VÍRGULA


 Marilurdes Nunes 

Logo no primeiro dia, muitas surpresas.
O professor deu um tema e eu fiquei lá concentrada, tentando escrever alguma coisa inteligente. Mas os minutos eram escassos.
Pouquinho depois de lançar o desafio, ele já cobrava resultados.
Meu caderno estava em branco. Os neurônios talvez estivessem com preguiça, desacostumados daquele ritmo frenético.
Pensei com meus botões: - Ninguém consegue produzir nada neste tempo tão curto. Este professor deve estar biruta.
Mas ele sabia exatamente o que estava fazendo.
Enquanto a minha tempestade de ideias não produziu sequer uma faísca, lá no fundo da sala, alguém disse:
- Já escrevi. Posso ler?
Olhei admirada para aquela senhora. Lindos cabelos brancos, com um cacheado natural, elegante em sua roupa muito bem combinada.
E os olhos?  Duas pedras preciosas, brilhando com luz própria.
Pensei: - Não é possível! Como pode alguém escrever alguma coisa que preste em tão pouco tempo?
Duvidei.
Mas a senhora em questão me surpreendeu com um texto original, criado assim em um zás.
- Quem é essa mulher? Fiquei pensando, curiosa.
Perguntei a um colega: - Como se chama a colega?
- Cida.
- Como é que ela faz isto?
- Ela é boa de ideias.
Cida me conquistou assim, na primeira aula.
Passou a ser, para mim, uma referência.
Gosto de seus textos e do capricho como apresenta o que produz em casa.
Em tudo que ela faz, coloca sentimento, experiência, humor e alma.
E amor também, já que o Bento sempre aparece.
Pelas lições que você sempre me dá:
Obrigada, Cida!





Parabéns Cida!

                           
        
                                  Neuza Lima

Abençoada insônia
E o sono não quis dar sua aparecida.
Bingo!
Vou levantar e escrever para a Cida.
Esta mulher aparecida
De todo lado que se olha se vê.
Agora com seus cabelos à lá moicano,
Mais aparecida ficou.

Seus versos vicejam,
Enchem de vida nossas aulas.
Às vezes cruéis,
Na maioria, suaves e fieis.

Parece que você vai dar uma desaparecida.
Logo você, Aparecida!
Tá bom, a gente deixa.
Mas não demore muito,
Que a santa, também Aparecida,
Traga-te rápido de volta.




quarta-feira, 1 de novembro de 2017

Escrivaninha do Pai


Sebastião Aimone Braga

Meu pai tinha escrivaninha alta. De onde eu contemplava a vida,
Ali representada pelos moradores, balcão, a estrada em frente.
No meio, havia duas gavetas.
Numa, trancada, o dinheiro da venda, o revólver nunca usado.
Na outra: papéis, selos, canivetes, retratos antigos,
Cadernetas dos fregueses, longas histórias de dívidas
Divididas entre jornais velhos, cartas e mistérios
No ministério de infância do menino atônito.


Em cima da escrivaninha, um rádio antigo
Ligo.  Ouço o bom-dia pela manhã
A voz do locutor dialogando comigo.
À tardinha, eram as novelas e D”Artagnans,
Jerônimo, o herói do sertão, Moleque Saci
E os livros que encontrava ali.
À noite, o pai dormia cedo.
E eu ia ouvir meu futebol.
Torcia sozinho em meio ao breu da venda
Vendo a corrida assustada dos ratos.
Quem era aquele atrevido que invadia o espaço,
roubava guaraná e mexia no escondido,
engasgava diante do ídolo, miúdo passo?


Quem era aquele menino?
Quem era aquele pai?
Que história escrevia o destino?


Rádio e escrivaninha não existem mais.
As gavetas são as da memória.
E meu pai descansa num tranquilo cais
Entre as pedras do tempo e da história.


Mas aqui dentro do peito
Ajeito este necessário espanto
Este canto de saudade
Desenhado, cinzento, em sonho.
E pela secura aparente das mãos inábeis,
A repetir imagem e gestos, o poeta
Põe-se a reescrever laços e lembranças.
A palavra e o verso dão a mão à criança.
A vida, agora, puro mergulho. E o pai, distante.
Diante de mim, rádio, escrivaninha e gavetas
Escorrem lentos como o pai, sem esperanças.


segunda-feira, 30 de outubro de 2017

IMPROVISOS


                                            Sebastião Aimone Braga
    

 A palavra rolou no ar. E caiu dentro da xícara da dama de negro, vazio o olhar. Ela, leve, levantou-se da mesa e pousou uma luva sobre o livro, que, ao toque, ofereceu-se página por página.
     Saiu, então, para a noite. Com a outra luva, ainda na mão, acenou para a lua, que lhe correspondeu e cobriu toda a paisagem de prata. Choveram versos sobre seu véu. E o céu cobriu-se de rimas.

As areias e o vento
banem para longe
aquela tarde.
Aqui ainda arde
aquela chama
de quem um dia
me chamava de amor.

     

quarta-feira, 25 de outubro de 2017

Espero


Espero
Neuza Lima
você dizer baixinho
ao meu ouvido,
eu te amo.
Mesmo que nunca tenhas chegado tão perto.

Espero
você pegar-me pela mão
dançar comigo aquela valsa
em minha festa de quinze anos.
Mesmo que nunca tenha havido a festa.

Espero
você deitar-se comigo naquela grama do jardim
mostrar-me o cruzeiro do sul, as três marias.
Mesmo que nunca tenha havido um jardim em nossas vidas

Espero
você me dizer
aquelas doces palavras molhadas de saliva.
Mesmo que nunca tenhas me beijado.

Espero
você atravessar a rua,
vir em minha direção,
feliz por reencontrar-me.
Mesmo que nunca tenhas me visto

Espero
aquela carta
escrita à mão em bico de pena,
entregue pelo carteiro,
no momento exato
em que estou à porta.
Mesmo que nunca soubesses onde moro.

Nosso amor é esperança.
Mesmo que eu o quisesse verdadeiro.

quarta-feira, 18 de outubro de 2017


Tantos eus alí
fiquei presa entre estrelas
um piscar de mim

                                       Fatima Fonseca


                                 Fatima  Fonseca
assim...
sonolenta e espreguiçando
entre as dobras e traças
cantinho de uma caixinha
sou poema inacabado 
fragmentado
batalha perdida.
O que diria a senhora esperança?


grande Buscaglia!!!!!

“... A folha se descobriu a perder a cor, a ficar cada vez mais frágil. Havia sempre frio e a neve pesava sobre ela.
E quando amanheceu veio o vento que arrancou a folha de seu galho. Não doeu. Ela sentiu que flutuava no ar, muito serena.
E, enquanto caía, ela viu a árvore inteira pela primeira vez.
Como era forte e firme! Teve certeza de que a árvore viveria por muito tempo, compreendeu que fora parte de sua vida. E isso deixou-a orgulhosa.
A folha pousou num monte de neve. Estava macio, até mesmo aconchegante. Naquela nova posição, a folha estava mais confortável do que jamais se sentira. Ela fechou os olhos e adormeceu. Não sabia que a folha que fora, seca e aparentemente inútil, se ajuntaria com água e serviria para tornar a árvore mais forte. E, principalmente, não sabia que ali, na árvore e no solo, já havia planos para novas folhas na primavera.
Leo Buscaglia

lições de Aninha

                                           Fátima Fonseca

Entre mim e você
uma cabocla velha de mau olhado,
ancorada ao pé do borralho.
As lavadeiras dos rios.
A menina roceira pés descalços.

Entre mim e você
séculos de existências.
A dureza do cerrado,
trincado pela seca
queimado pelo fogo,
calcinado e renascido.
Que é a existência humana.

Um tacho de melado entre mim e você
doce que me sacode
em losangos versos.
Sou eu esse poema
ajoelhado em seu tabuleiro
mendigando um pedaço de palavra.
que agora mesmo
atravessou a ponte
passou pelo seu olhar cândido
na tentativa de tocar o infinito.
e fazer da vida efêmera
poesia.


domingo, 15 de outubro de 2017

chuva







“Senhor, que minha humildade
seja como a chuva desejada
caindo mansa,
numa terra sedenta
e num telhado velho.” Cora Coralina

sexta-feira, 13 de outubro de 2017

jacintos





"Aromas de jacintos me infinitam."


A Manoel de Barros, ensinador de ignorâncias)


                                                        Mia Couto

Estou sem texto, enriquecido de nada. Aqui, na margem da floresta, me desbicho sem vontades para humanidades. Entendo só de raízes, vésperas de flôr. Me comungo de térmites, socorrido pela construção do chão. No último suspiro do poente é que podem existir todos sóis. Essa é minha hora: me ilimito a morcego. Já não me pesam cidades, o telhado deixa de estar suspenso ao inverso em minhas asas. Me lanço nessa enseada de luz, vermelhos desocupados pelo dia. Nesse entardecer de tudo vou empobrecendo de palavras. Não tenho afilhamento com o papel, estou pronto para ascender a humidade, simples desenho de ausência. Na tenda onde me resguardo me chegam, soltas e díspares, desvisões, pensatempos, proesias. Assim, em miudádivas a Manoel de Barros, meu ensinador de ignorâncias:

A primavera cabe dentro do grilo.
Cigarras se alfabetizam de silêncios.
No liso da parede,
a osga se prepara para transparências,
ganhando a forma do nada.
Enquanto o ramo
vai transitando para camaleão
a aranha confunde madrugada com sotão.
Na mafurreira,
sobem ninhos de arribação, ovos do arco-íris.
Minha tenda se engrandece em teia.
A mosca se inadverte na armadilha.
Igual o amor
que me rouba artes de viver.
Formigas transportam
infinitamente a terra.
Estarão mudando
eternamente de planeta ?
Estarão engolindo o mundo ?
Insectos sonham ser olhados pelo sol.
Mas só a chama da vela os vê.
Já o ovo é iluminado por dentro,
tocado pela luz do infinito.
O ovo repete o estreante início,
a redundante gravidez do mundo.
Por isso, este surpreendido ovo
não tem competência para meu jantar.
Pena o estomago não entender poesias.

Nada se parece tanto: poente e amanhecer.
Defeitos na tela do firmamento?
Instantâneas aves,
andorinheiras, pedras que se despoentam.
A noite acende o escuro.
Tudo semelha tudo.
Só a coruja atrapalha a eternidade.

Está chovendo horas,
a água está a ganhar-me semelhanças.
Escuto ventos, derrames de céu.
Parecem-me luas e são lábios.
A tua boca me ilude, sou culpado de teu corpo.
Saudade: sou mais tu que tu.

Escuto, depois, a enchente.
Longe, a água desobedece a paisagens.
O rio toma banho de troncos,
raízes da água se soltam.
Sigo de catarata, luz encharcada.
E peço desculpa à margem:
desconhecia as unhas de minha transbordância.

Meu sonho está cego para razões.
Sei só escrever palavras que não há.
O sono me encaracola:
estou a ser pensado por pedras,
me habilito a chão, o desfuturo.

Mia Couto