domingo, 31 de agosto de 2014

Tenho (homenagem a Fernando Pessoa)

Fátima Fonseca

eu tenho comigo o afligir de uma dor que deveras sinto
nunca me vi nem achei
carrego o não saber de quantas almas tenho
e sei enfim que nunca saberei de mim

herdei de meus pais fé em Nossa Senhora
tenho Fátima no nome
alma brunhida com um “q” de Portugal

mas,o que me dói não é
o que há no coração
mas essas coisas lindas
que nunca existirão...

por isso, bebo de suas palavras
com uma esperança bem morrida de poesia
de um porvir encontro estrelado
com você Fernando em pessoa.

sábado, 30 de agosto de 2014

Mário Quintana
"E que fique muito mal explicado. Não faço força para ser entendido. Quem faz sentido é soldado."

Consciência Cósmica

 João Guimarães Rosa

Já não preciso de rir.
Os dedos longos do medo
largaram minha fronte.
E as vagas do sofrimento me arrastaram
para o centro do remoinho da grande força,
que agora flui, feroz, dentro e fora de mim...
Já não tenho medo de escalar os cimos
onde o ar limpo e fino pesa para fora,
e nem deixar escorrer a força dos meus músculos,
e deitar-me na lama, o pensamento opiado...
Deixo que o inevitável dance, ao meu redor,
a dança das espadas de todos os momentos.
e deveria rir, se me retasse o riso,
das tormentas que poupam as furnas da minha alma,
dos desastres que erraram o alvo do meu corpo...

quarta-feira, 27 de agosto de 2014

As portas da linguagem estão abertas.


Sebastião Aimone Braga  
A vela inflama e lança seus pássaros, em luz, no ar.
        Tudo debaixo dos olhos, dos óculos, como sóis.
        Camões, Saramago, textos. Pausas, pontos, vírgulas, torrente de palavras. Desencadeadas, emendadas, uníssonas.
        A vela ainda lança seus versos e viagens na pauta da escrita. Passa e repassa por línguas, linguagens. Por intrigas, por tramas, trapaças.
        Torrentes de palavras. Que importa? As portas da linguagem estão abertas.

terça-feira, 26 de agosto de 2014

Viviane Mosé
para uma nova gramática:
imagine um sentimento água. um sentimento árvore.
uma agonia vidro. uma emoção céu. uma espera pedra.
um amor manga. um colorido vento sul. um jeito casa
de ser. uma forma líquida de pensar. uma vida paredes.
uma existência mar. uma solidão cordilheira. uma
alegria pássaro em chuva fina. uma perda corpo.
acho que hoje acordei semente. tenho andado muito temporal. minha irmã vive um momento tudo. a vida às vezes transborda pelos poros. me atinge um estado livro. aurora em meus joelhos. tem pessoas ponte. algumas carregam a gravidade nas costas. já conheci gente buraco negro. eu amo o instante limo. tem um branco em mim. a vida me urca. sofro de saudade anônima. palavras me beijam a boca
(poema do livro Pensamento Chão)

Vestígios


Ana Cecília de Sousa Bastos
Estranha pulsão, esta:
derramar no caderno porções de alma.
A mão, captando sinais invisíveis.
Lenta, no formigueiro em marcha.
Absolutamente só,
enquanto todos perseguem a sagrada hora do
                                              [ trabalho
e dos compromissos bancários.

E depois, palavras escondidas em oculto caderno,
papel rasgado, para que delas não sobrem
vestígios.

Jugo

Obedecer à doce tirania da palavra.

Anular censura, momento, lugar.
Deixar no papel o verso líquido,
esse pálido espelho da alma.

Enquanto deixo-me estar,
impressionada pela cor da palavra
"pálida". 

domingo, 24 de agosto de 2014

GRAMÁTICA.

Emille Kisar
Há dias em que sou ponto,
querendo encerrar coisas.
Em outros, vejo-me vírgula,
que a tudo tenta separar.
Tenho também meus
momentos de dois pontos,
ao tentar enumerar
aquilo que me incomoda.
E quando sou travessão,
é para tirar os nós da garganta,
berrar, se for preciso.
A verdade é que em mim
cabem todas as pontuações.
Afinal, sou um texto diferente
a cada dia.
Um dizer que nunca se acaba.
Bom dia, queridos Leitores do Punhado

LINHA RETA

                   
Cecília Meireles
                   
Não tenteis interromper o pássaro que voa em linha reta
de leste a oeste. Alto e só.

Não lhe pergunteis se avista cidades, mares, pessoas
ou se tudo é um liso deserto. Vasto e só.

Ele não passa para contemplar essas coisas do mundo.
Ele vem de leste, ele vai para oeste. Alto e só.

Ele vai com sua música dentro dos olhos fechados.
Quando chegar ao fim, abrirá os olhos e cantará sua música.
Vasta e só.



sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Poema do paraíso perdido ou Desabafo de Eva



 Maria Apparecida de Mattos
               ( minha colega da Oficina de Escrita )


Ó Deus, tem dó,
não quero virar pó.

Ó Deus, que droga,
Adão quase me afoga.

Ó Deus, olha minhas cãs,
inventa outras maçãs.

Ó Deus, pra que braveza
se herdei da cobra a esperteza!

Ó Deus, que brincadeira!
Acabei segurando mamadeira.

           

Rubem Alves
"Toda poesia é um ato de feitiçaria cujo objetivo é tornar presente e real aquilo que está ausente e não tem realidade!"

quinta-feira, 21 de agosto de 2014

João Guimarães Rosa
"Só se pode viver perto de outro, e conhecer outra pessoa, sem perigo de ódio, se a gente tem amor."

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

João Guimarães Rosa
"'Quanto mais ando, querendo pessoas, parece que entro mais no sozinho do vago...' - foi o que pensei na ocasião. De pensar assim me desvalendo. Eu tinha culpa de tudo, na minha vida, e não sabia como não ter. Apertou em mim aquela tristeza, da pior de todas, que é a sem razão de motivo; que, quando notei que estava com dor-de-cabeça, e achei que por certo a tristeza vinha era daquilo, isso até me serviu de bom consolo. E eu nem sabia mais o montante que queria, nem aonde eu extenso ia."

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

Clarice Lispector
"Viver é um ato que não premeditei. Brotei das trevas. Eu só sou válida para mim mesma. Tenho que viver aos poucos, não dá para viver tudo de uma vez. Nos braços de alguém eu morro toda. Eu me transfiguro em energia que tem dentro dela o atômico nuclear. Sou o resultado de ter ouvido uma voz quente no pas­sado e de ter descido do trem quase antes dele parar — a pressa é inimiga da perfeição e foi assim que corri para a cidade perdendo logo a estação e a nova par­tida do trem e seu momento privilegiado que desperta espanto tão dolorido que é o apito do trem, que é adeus."


sábado, 16 de agosto de 2014

eu, tu e Zenóbia

Fátima Fonseca




para Zenóbia, aos oitenta e nove anos
um pingo no “í” já é um  verso inteiro

com seu colar  nas mãos 
seus dedos percorrem cada pérola:
no primeiro mistério, eu violeta
no segundo mistério, tu violetas
no terceiro mistério, eles violetam

extasiados de esperanças
todos conjugavam  acompanhando-a:
no quarto mistério, nos violetaremos  

porque  milagre é o presente para todos
a hora não escolhe idade
 violeta é uma flor sedenta de eternidade.

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

ah...! neeeem!
é muito hem, hem, hem
é muita luta
é muita ilusão
pra tão pouco tempo de vida!
meu Deus das alturas,
misericordia!

escrever....

João Guimarães Rosa
"Escrever é um processo químico; o escritor deve ser um alquimista. (...) A alquImia do escrever precisa de sangue do coração. Para poder ser feiticeiro da palavra, para estudar a alquimia do sangue do coração humano, é preciso provir do sertão. (...) Levo o sertão dentro de mim e o mundo no qual vivo é também o sertão." (...) Goethe nasceu no sertão, assim como Dostoievski, Tolstoi, Flaubert, Balzac; ele era, como os outros que eu admiro, um moralista, um homem que vivia com a língua e pensava no infinito. Acho que Goethe foi, em resumo, o único grande poeta da literatura mundial que não escrevia para o dia, mas para o infinito."

EMBRIAGAI-VOS


Charles Baudelaire
É necessário estar sempre bêbado. Tudo se reduz a isso; eis o único problema. Para não sentirdes o fardo horrível do tempo, que vos abate e vos faz pender para a terra, é preciso que vos embriagueis sem cessar. Mas – de quê? De vinho, de poesia ou de virtude, como achardes melhor. Contanto que vos embriagueis. E, se algumas vezes, nos degraus de um palácio, na verde relva de um fosso, na desolada solidão do vosso quarto, despertardes com a embriaguez já atenuada ou desaparecida, perguntai ao vento, à vaga, à estrela, aos pássaros, ao relógio, a tudo o que foge, a tudo o que geme, a tudo o que rola, a tudo o que canta, a tudo o que fala, perguntai-lhes que horas são; e o vento, e a vaga, e a estrela, e o pássaro, e o relógio, hão de vos responder: – É hora de embriagar-se! Para não serdes os martirizados escravos do tempo, embriagai-vos; embriagai-vos sem tréguas! De vinho, de poesia ou de virtude, como achardes melhor.

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

página de mim


Fátima Fonseca
no chão dessa página
sonhos desfolhados me transfiguram
eu sou esse vazio sem versos sem personagens
a espera de pensamentos e palavras não ditas

já entardeceu
e eu aqui ainda juntando letras
que coisa!
continuo perdida
pensei que avançaria uma idade mais lúcida
mas não,  ainda sou essa expectativa que nasce e morre sem função

o vazio dessa folha continua a me saquear olhares
parece desconfiada
ou quem sabe
apenas observa esses meus pés no chão,  na lua
ou tenta entender as inverdades que eu preciso inventar
para viver.

terça-feira, 12 de agosto de 2014

Bilhete

Mario Quintana

Se tu me amas, ama-me baixinho
Não o grites de cima dos telhados
Deixa em paz os passarinhos
Deixa em paz a mim!
Se me queres,
enfim,
tem de ser bem devagarinho, Amada,
que a vida é breve, e o amor mais breve ainda...

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

SENTIMENTOS


Augusto Vieira
Sigo os meus sentimentos
Eles me dizem os destinos
De todos os meus momentos,
Até dos meus desatinos.
E vou fundo, bem fundão
Pelos caminhos do sentir
Ainda que meu coração
Se machuque no porvir.

Ficou na lembrança...

Suzana Braga
Ficou na lembrança...
Meu Pai
Meu pai era assim:
Menino grande
De riso fácil,
Brincava com o diário.
Seria frágil?
Meu pai era assim:
Troçava da vida
Escondia a tristeza
Tamponava as feridas
Mesmo as mais doloridas.
E seguia,
meio atabalhoado.
Meu pai era assim:
Flanava,
Viajava,
Sonhava.
Mentia?
Meu pai era assim:
A infância resplandecida
Nos seus gestos,
No deitar sobre as águas
Nas coisas que inventava.
No sabor de sentia
Na fruta recém colhida,
No gole de uma cachacinha
No preparo da caipirinha.
Nos jogos de linguagem,
Nas brincadeiras,
nas anedotas que contava.
Meu pai foi assim:
Partiu como um passarinho
Voou em busca de outro menino,
Que, de longe, o chamava.
Meu pai é assim;
Lembrança que me acompanha,
Pó de pirlimpimpim,
tão leve,
Que espalha
E fica
Até o nunca mais,
nunca mais, nunca mais.

sábado, 9 de agosto de 2014

 João Guimarães Rosa
"...digo. Esta vida está cheia de ocultos caminhos. Se o senhor souber, sabe; não sabendo, não me entenderá."

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Gente é mais ou menos como rio:

Viviane Mosé
Gente é mais ou menos como rio:
Tem os que gostam de perigo e se lançam de grandes alturas
Tem os de muitos braços que atiram pra todos os lados
Tem os de muitos redemoinhos que comem bois e gente
Tem os que gostam demais de si e viram lago
Tem os que só sabem correr parados
São os empoçados os pantaneiros os alagados
Tem os que transam com a terra formando ilhas
O fundo de alguns é de pedra. Tem os de peixes coloridos
Outros têm água clarinha. E tem gente córrego seco
E tem gente riacho escuro. Alguns a terra engole vivos
E tem até rio que corre pra trás
O rio que eu sou nasceu em janeiro
Tem gente que tem o costume de vazar pelos cantos.
No começo vaza calada. Aos poucos. Aos pingos.
Mas se pega gosto principia o derrame.
Escorre quando fala. Escorre quando anda.
Não tem mais braço nem cabelo que segure.
Parece que vicia em ficar transbordada.
Mas tem gente que quando transborda é pra dentro
E corre o risco de ficar represada. E represa, você sabe.
Se aumenta muito arrebenta.
Mas se a pessoa ensaia um jeito de derramar pra fora
Aí vai fazendo leito. Vai abrindo seu caminho na terra
E a terra parece que se abre para ela passar. Às vezes não.

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Amanhecer

- João Guimarães Rosa
Floresce, na orilha da campina,
esguio ipê
de copa metálica e esterlina.
Das mil corolas,
saem vespas, abelhas e besouros,
polvilhados de ouro,
a enxamear no leste, onde vão pousando
nas piritas das acácias amarelas.
Dos charcos frios
sobem a caçá-los redes longas,
lentas e rasgadas de neblina.
Nuvens deslizam, despetaladas,
e altas, altas,
garças brancas planam.
Dançam fadas alvas,
cantam almas aladas,
na taça ampla,
na prata lavada,
na jarra clara da manhã...

terça-feira, 5 de agosto de 2014

hoje é já outro dia.


Fátima Fonseca
tarde remota
baralhar identidade
disfarces
saqueava olhares

fração de segundos
renascia de suas cinzas
intensidade e uma felicidade
que só aconteceu naquela tarde remota.
depois segui vazia na cova do vento


Pratique o Desapego

Fernando Pessoa 
Sempre é preciso saber quando uma etapa chega ao final. Se insistirmos em permanecer nela mais do que o tempo necessário, perdemos a alegria e o sentido das outras etapas que precisamos viver. Encerrando ciclos, fechando portas, terminando capítulos. Não importa o nome que damos, o que importa é deixar no passado os momentos que já se acabaram. As coisas passam, e o melhor que fazemos é deixar que elas possam ir embora. Deixar ir embora. Soltar. Desprender-se. Ninguém está jogando nesta vida com cartas marcadas, portanto às vezes ganhamos, e às vezes perdemos. Antes de começar um capítulo novo, é preciso terminar o antigo: diga a si mesmo que o que passou, jamais voltará. Lembre-se de que houve uma época em que podia viver sem aquilo - nada é insubstituível, um hábito não é uma necessidade. Encerrando ciclos. Não por causa do orgulho, por incapacidade, ou por soberba, mas porque simplesmente aquilo já não se encaixa mais na sua vida. Feche a porta, mude o disco, limpe a casa, sacuda a poeira.

domingo, 3 de agosto de 2014

poesia que eu te quero


Fátima Fonseca
Quisera eu
hastear a bandeira de Manuel
falar com os anjos de Augusto
caminhar pelos prados de Adélia
carpinejar feito Fabricio
Ah...! quisera eu
ter em minha pauta as claves do Ronald
o rosa do Guimarães
fazer doces com as receitas de Aninha
enfeitar meu vaso com  flores  belas
que de tão enigmáticas podem Spancar.
Ah...! quisera eu...

sábado, 2 de agosto de 2014

Gosto mesmo...


Fátima Fonseca

 gosto das  florzinhas miúdas
essas que debruçam pelas margens das estradas
empoeiradas,
desprezadas,
indomáveis,
valentes,
 brotando,
 nascendo,
 esparramando e vivendo...

Para Manoel de Barros :

Fátima Fonseca
Para Manoel de Barros : Estou nos deslimites da palavra, releio o livro das ignorãças.
“Ando completa de vazios. Tentei descobrir na alma alguma coisa mais profunda do que não saber nada sobre as coisas profundas.
Consegui não descobrir.
Eu sou o medo da lucidez.
Tenho uma dor de concha extraviada.
Uma dor de pedaços que não voltam.
Eu sou muitas pessoas destroçadas.
Meu olhar tem odor de extinção
Tenho abandonos por dentro e por fora.
Preciso do desperdício das palavras para conter-me. Penso me renovar usando borboletas”

sexta-feira, 1 de agosto de 2014

AS RUAS

Mia Couto

No tempo
em que havia ruas,
ao fim da tarde
minha mãe nos convocava:
era a hora do regresso.
E a rua entrava
conosco em casa.
Tanto o Tempo
morava em nós
que dispensávamos futuro.
Recolhida em meu quarto,
a cidade adormecia
no mesmo embalo da nossa mãe.
À entrada da cama,
eu sacudia a areia dos sonhos
e despertava vidas além.
Entre casa e mundo
nenhuma porta cabia:
que fechadura encerra
os dois lados do infinito?