sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Falar


Ferreira Gullar
A poesia é, de fato, o fruto
de um silêncio que sou eu, sois vós,
por isso tenho que baixar a voz
porque, se falo alto, não me escuto.

A poesia é, na verdade, uma
fala ao revés da fala,
como um silêncio que o poeta exuma
do pó, a voz que jaz embaixo
do falar e no falar se cala.

Por isso o poeta tem que falar baixo
baixo quase sem fala em suma
mesmo que não se ouça coisa alguma.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Não sei quem sou...

Fernando Pessoa
Não sei quem sou, que alma tenho.
Quando falo com sinceridade não sei com que sinceridade falo.
Sou variamente outro do que um eu que não sei se existe (se é esses outros)...
Sinto crenças que não tenho.
Enlevam-me ânsias que repudio.
A minha perpétua atenção sobre mim perpetuamente me ponta
traições de alma a um carácter que talvez eu não tenha,
nem ela julga que eu tenho.
Sinto-me múltiplo.
Sou como um quarto com inúmeros espelhos fantásticos
que torcem para reflexões falsas
uma única anterior realidade que não está em nenhuma e está em todas.
Como o panteísta se sente árvore (?) e até a flor,
eu sinto-me vários seres.
Sinto-me viver vidas alheias, em mim, incompletamente,
como se o meu ser participasse de todos os homens,
incompletamente de cada (?),
por uma suma de não-eus sintetizados num eu postiço."

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

O corpo é um quintal


 Márcio Almeida
Maçã do rosto
Batata da perna
Manga da camisa
Cabeça de mamão
Olho de jabuticaba
Cara de banana
Cabelo de milho
Rubor de pimentão
Hálito de cebola:
- Moça, você é um chuchu!
Mas não resolve meu pepino
e escorrega como quiabo.

Quando eu lia Manoel...

Lúcio Flávio Lourenzo
Quando eu lia Manoel,
Completava-me de substância
Surtava delírios infantis
Apanhava fruta madura no pé da letra
e um desespero interno,
me bagunçava

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

semeadura

erva
de
tua
faina
semente
vertida
Se
esvaindo
na
seara
de
meus
pastos.
Lúcia Serra

domingo, 26 de janeiro de 2014

sábado, 25 de janeiro de 2014

O dia da criação

Vinícius de Moraes
I


Hoje é sábado, amanhã é domingo
A vida vem em ondas, como o mar
Os bondes andam em cima dos trilhos
E Nosso Senhor Jesus Cristo morreu na cruz para nos salvar.


Hoje é sábado, amanhã é domingo
Não há nada como o tempo para passar
Foi muita bondade de Nosso Senhor Jesus Cristo
Mas por via das dúvidas livrai-nos meu Deus de todo mal.


Hoje é sábado, amanhã é domingo
Amanhã não gosta de ver ninguém bem
Hoje é que é o dia do presente
O dia é sábado.


Impossível fugir a essa dura realidade
Neste momento todos os bares estão repletos de homens vazios
Todos os namorados estão de mãos entrelaçadas
Todos os maridos estão funcionando regularmente
Todas as mulheres estão atentas
Porque hoje é sábado.



II


Neste momento há um casamento
Porque hoje é sábado
Hoje há um divórcio e um violamento
Porque hoje é sábado
Há um rico que se mata
Porque hoje é sábado
Há um incesto e uma regata
Porque hoje é sábado
Há um espetáculo de gala
Porque hoje é sábado
Há uma mulher que apanha e cala
Porque hoje é sábado
Há um renovar-se de esperanças
Porque hoje é sábado
Há uma profunda discordância
Porque hoje é sábado
Há um sedutor que tomba morto
Porque hoje é sábado
Há um grande espírito-de-porco
Porque hoje é sábado
Há uma mulher que vira homem
Porque hoje é sábado
Há criançinhas que não comem
Porque hoje é sábado
Há um piquenique de políticos
Porque hoje é sábado
Há um grande acréscimo de sífilis
Porque hoje é sábado
Há um ariano e uma mulata
Porque hoje é sábado
Há uma tensão inusitada
Porque hoje é sábado
Há adolescências seminuas
Porque hoje é sábado
Há um vampiro pelas ruas
Porque hoje é sábado
Há um grande aumento no consumo
Porque hoje é sábado
Há um noivo louco de ciúmes
Porque hoje é sábado
Há um garden-party na cadeia
Porque hoje é sábado
Há uma impassível lua cheia
Porque hoje é sábado
Há damas de todas as classes
Porque hoje é sábado
Umas difíceis, outras fáceis
Porque hoje é sábado
Há um beber e um dar sem conta
Porque hoje é sábado
Há uma infeliz que vai de tonta
Porque hoje é sábado
Há um padre passeando à paisana
Porque hoje é sábado
Há um frenesi de dar banana
Porque hoje é sábado
Há a sensação angustiante
Porque hoje é sábado
De uma mulher dentro de um homem
Porque hoje é sábado
Há uma comemoração fantástica
Porque hoje é sábado
Da primeira cirurgia plástica
Porque hoje é sábado
E dando os trâmites por findos
Porque hoje é sábado
Há a perspectiva do domingo
Porque hoje é sábado



III


Por todas essas razões deverias ter sido riscado do Livro das Origens,
ó Sexto Dia da Criação.
De fato, depois da Ouverture do Fiat e da divisão de luzes e trevas
E depois, da separação das águas, e depois, da fecundação da terra
E depois, da gênese dos peixes e das aves e dos animais da terra
Melhor fora que o Senhor das Esferas tivesse descansado.
Na verdade, o homem não era necessário
Nem tu, mulher, ser vegetal, dona do abismo, que queres como
as plantas, imovelmente e nunca saciada
Tu que carregas no meio de ti o vórtice supremo da paixão.
Mal procedeu o Senhor em não descansar durante os dois últimos dias
Trinta séculos lutou a humanidade pela semana inglesa
Descansasse o Senhor e simplesmente não existiríamos
Seríamos talvez pólos infinitamente pequenos de partículas cósmicas
em queda invisível na
terra.
Não viveríamos da degola dos animais e da asfixia dos peixes
Não seríamos paridos em dor nem suaríamos o pão nosso de cada dia
Não sofreríamos males de amor nem desejaríamos a mulher do próximo
Não teríamos escola, serviço militar, casamento civil, imposto sobre a renda
e missa de
sétimo dia.
Seria a indizível beleza e harmonia do plano verde das terras e das
águas em núpcias
A paz e o poder maior das plantas e dos astros em colóquio
A pureza maior do instinto dos peixes, das aves e dos animais em [cópula.
Ao revés, precisamos ser lógicos, freqüentemente dogmáticos
Precisamos encarar o problema das colocações morais e estéticas
Ser sociais, cultivar hábitos, rir sem vontade e até praticar amor sem vontade
Tudo isso porque o Senhor cismou em não descansar no Sexto Dia e [sim no Sétimo
E para não ficar com as vastas mãos abanando
Resolveu fazer o homem à sua imagem e semelhança
Possivelmente, isto é, muito provavelmente
Porque era sábado.

sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

Felicidade


Olinda Ribeiro 

Se cantares para mim eu gosto

Se me beijares eu deixo

Se me abraçares suspiro

Se me amares Eu canto!

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

poesia


Federico García Lorca

Mas o que vou dizer da Poesia?
O que vou dizer destas nuvens, deste céu?
Olhar, olhar, olhá-las, olhá-lo, e nada mais.
Compreenderás que um poeta
não pode dizer nada da poesia.
Isso fica para os críticos e professores.
Mas nem tu, nem eu, nem poeta algum
 sabemos o que é a poesia."

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Mais distante que todas as estrelas


Federico García Lorca
E eu me sinto oco
de paixão e de música.
Louco relógio que canta
mortas horas antigas.
Eu pronuncio teu nome,
nesta noite escura,
e teu nome me soa
mais distante que nunca.
Mais distante que todas as estrelas
e mais dolente que a mansa chuva.
Amar-te-ei como então
alguma vez? Que culpa
tem meu coração?
Se a névoa se esfuma,
que outra paixão me espera?
Será tranquila e pura?
Se meus dedos pudessem
desfolhar a lua


segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

CANÇÃO


Emílio Moura

Que consciência dividida
me faz ser dois e, em seguida,
me torna um só, mas sem vida?

Quem me trouxe a este degredo?
Quem me jogou desde cedo
em labirintos de medo?

Que sombra, estigma ou segredo
se grava, trêmulo, a medo,
em minha face plural?

Quem te conta o que não digo
e dorme sempre comigo
sono de pedra e de cal?

domingo, 19 de janeiro de 2014

Eternamente Manoel

Éder Rodrigues

"Quem anda no trilho é trem de ferro, sou água
que corre entre pedras: Uberdade caça jeito."
Manoel de Barros

-I-

Pela paz que as ígnorãças poemam,
colo um a um dos estilhaços
que sequer vão conformar meu reflexo
em estatura de barro ou vertigem de espelhos.
Venho de lugar nenhum
depois de tanta lembrança enterrada em ritos de pedra-sabão.
Não passei a vida tentando me desvendar,
a mercê dos tantos eus que a solidão coleciona.

- II -

Fiel aos passos que o corpo fraqueja
Sigo quando o olho umedece por dentro a pertura do mar.
Não guardo sensações num pote de conservas
Trago comigo só uma bússola quebrada,      
com nortes incertos e nenhum pertence.
Demora, mas a vida se rende às dádivas do não chegar.

- III -

Sei pouco de lugar, raiz, pertencimento.
Meu coração foi criado no peito mesmo,
longe da didática dos rumos.
Meu desejo não pega carona.

Costuma ir a pé quando avista o interior das coisas.
Só mergulha quando se afrouxa o insuportável das vestes.

-IV-

Já me livrei dos lemas,
não engarrafo poemas e só furto poentes.
Sei que construíram deus de cimento e areia,
ainda que desabe cada milímetro concreto
frente às dúvidas de quando o que se avermelha
em existência é o fundo das gentes
e não a altura dos santuários.

-V-

0 que insinuam como corpo, eu peco como estrada.
Parto sem nenhuma pressa
Sem carecer de uma identidade fixa
para justificar os girassóis que deixo como metade.
Pauso o movimento perpétuo da máquina do mundo
com o piar sucessivo dos pardais
que ressuscitam a orgia
no escondido dos laranjais.

- VI -

Há tempos deixei as escrituras
A estrutura do teto pelas chuvas de agosto
A terra em si que nunca me arranhou posses.
Sepultarei meus mortos no fundo do mar
onde mora um piano inventado que serve
de companhia quando a dor pesa séculos por dentro
aquém às superfícies.

-VII-

Se o amor ficou fora de época
Desafio a moda lendo as linhas do corpo todo
e ainda dou aula de caligrafia para
umedecer a sutileza das cartas e o mistério da palavra.
Desculpa se meus certificados não tiveram parede
Se os bichos que estimo largo soltos ao léu
Esquecimento faz parte do mundo
e na encruzilhadas dos corpos,
perde quem não se trilha pelos quatro cantos
onde os trens brincam de eternidade.

- VIII -

Despedida não faz parte de mim
Carrego no bolso retratinho de mãe
Saudade eu curo com chá,
mas quando deito fedendo laranja
é o colo dela que imagino para dormir.
Vim só para pedir tua benção Manoel
Ainda não encontrei aquele velho navio
Mas a arte já me ensinou.
a atravessar o mar dentro de um barco de papel.

sábado, 18 de janeiro de 2014

MOCIDADE


JOSÉ VIRGÍLIO GONÇALVES
Você, a gaiola.
Eu, passarinho.

Você, a fruta.
Eu, o desejo.

Você, a água.
Eu moço.

o que posso ser
além da ânsia
de sede
do poço?

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

TREM DE MINAS

Wilson Pereira

O amor
é um trem de desejos
um trem antigo
antigo demais

que vem carregado
de sonhos… e de queijos
lá de Minas Gerais.

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

RETIRANTE


Izabel Hirata
Sou galho de árvore partida
Folha que o vento leva
Areia brilhando na praia
Em noites de lua cheia
Canto, sou ave em retirada
Sou tudo isso, e mais nada

Saio olhando
O que foi minha boiada
Já não me resta mais nada
A não ser engolir em seco um soluço,
e a poeira da estrada.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

NADA ESQUEÇO:

Diva Goulart

o olhar, a palavra, o gesto,
tudo o que matou em mim, a alegria.
Em sonhos já não caio.
Pertenço agora ao mundo e sei
de terra e ar, de água e fogo
que o viver é a certeza
de um passo, depois outro.
Mas ainda existe
a porta que não abro
atrás da qual está meu rosto.

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

MIM

Darcy Ribeiro

O tempo transcorre em mim
Celeremente. Tão afoito que finda.
Acho que sei, afinal, a que vim.
E já me vou. Uma pena.
Não há tempo mais pra mim.
Volto à silente matéria cósmica
Que em mim, um dia, se organizou
Para me ser. Uma vez, uma vez somente.

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Como dizia o poeta...


Vinícius de Moraes e Toquinho
Como dizia o poeta
Quem já passou por essa vida e não viveu
Pode ser mais, mas sabe menos do que eu
Porque a vida só se dá pra quem se deu
Pra quem amou, pra quem chorou, pra quem sofreu
Ah, quem nunca curtiu uma paixão nunca vai ter nada, não
Não há mal pior do que a descrença
Mesmo o amor que não compensa é melhor que a solidão
Abre os teus braços, meu irmão, deixa cair
Pra que somar se a gente pode dividir
Eu francamente já não quero nem saber
De quem não vai porque tem medo de sofrer
Ai de quem não rasga o coração, esse não vai ter perdão
Quem nunca curtiu uma paixão, nunca vai ter nada, não

quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

AUSÊNCIA

Carlos Drummond de Andrade

Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.

domingo, 5 de janeiro de 2014

DESEJOS

Carlos Drummond de Andrade

Desejo a vocês...
Fruto do mato
Cheiro de jardim
Namoro no portão
Domingo sem chuva
Segunda sem mau humor
Sábado com seu amor
Filme do Carlitos
Chope com amigos
Crônica de Rubem Braga
Viver sem inimigos
Filme antigo na TV
Ter uma pessoa especial
E que ela goste de você
Música de Tom com letra de Chico
Frango caipira em pensão do interior
Ouvir uma palavra amável
Ter uma surpresa agradável
Ver a Banda passar
Noite de lua cheia
Rever uma velha amizade
Ter fé em Deus
Não ter que ouvir a palavra não
Nem nunca, nem jamais e adeus.
Rir como criança
Ouvir canto de passarinho.
Sarar de resfriado
Escrever um poema de Amor
Que nunca será rasgado
Formar um par ideal
Tomar banho de cachoeira
Pegar um bronzeado legal
Aprender um nova canção
Esperar alguém na estação
Queijo com goiabada
Pôr-do-Sol na roça
Uma festa
Um violão
Uma seresta
Recordar um amor antigo
Ter um ombro sempre amigo
Bater palmas de alegria
Uma tarde amena
Calçar um velho chinelo
Sentar numa velha poltrona
Tocar violão para alguém
Ouvir a chuva no telhado
Vinho branco
Bolero de Ravel
E muito carinho meu.

sábado, 4 de janeiro de 2014

infância na roça


Fátima Fonseca
pelos cacos de telhas envelhecidas
o dia acorda a menina
vestido de cores e brilho.

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

Repouso



Dá-me tua mão
E eu te levarei aos campos musicados pela canção das colheitas
Cheguemos antes que os pássaros nos disputem os frutos,
Antes que os insetos se alimentem das folhas entreabertas.
Dá-me tua mão
E eu te levarei a gozar a alegria do solo agradecido,
Te darei por leito a terra amiga
E repousarei tua cabeça envelhecida
Na relva silenciosa dos campos.
Nada te perguntarei,
Apenas ouvirás o cantar das águas adolescentes
E as palavras do meu olhar sobre tua face muito amada.

quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

Sou lunática



Fátima Fonseca
Uma tristeza áspera
que  me angustia
sempre voa de mãos juntas
para os céus.

No primeiro quarto
a lua me recebe e diz:
Não se exaspere
fique tranaquila.

Quando chego ao último quarto
ela me alerta:
- É preciso alimentar mais poesia.

- Vida complicada pra quê?
se tudo é ilusão
pergunto a lua nova.
- Paciencia! Ela me responde.

A lua cheia divina
derrama sobre mim energia
mesmo eu não sabendo
se sou matéria, vento, perdição...

Não demora
logo um sorriso minguante
se junta a mim
para chorarmos esperança

Mas nada é para sempre
a lua repetitiva ensinar