domingo, 30 de setembro de 2012

Rubem Fonseca



“A beleza é triste pois ela está no lugar de algo que se foi. O tempo perdido não pode ser recuperado. Sua beleza só pode ser vivida como ausência: a beleza dói… Magia é isto: invocar o que se foi, mas que continua a nos habitar. Ou será poesia?”

sábado, 29 de setembro de 2012

Ferreira Gullar



Dentro de mim – mas onde?
no céu
da boca? debaixo
da pele? -
fulge de repente um largo verde esquecido

dentro de mim
ou fora
(em algum lugar nenhum)
de mim
um largo como se fosse um lago
e quase a transbordar de verde

ouvia a miúda algazarra da relva
rente ao chão

ah aquela inesperada toalha verde viva
em meio à cidade em ruínas!
(o relâmpago me atinge agora numa cozinhaq dea rua Duvivier)

De tais espantos somos feitos”

sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Guimarães Rosa



Quem quiser saber meu nome
carece perguntar não:
eu me chamo lenha seca,
carvão de barbatimão…”

“Amarro fitas no raio,
formo as estrelas em par,
faço o inferno fechar porta,
dou cachaça ao sabiá,
boto gibão no tatu,
calço espora em marruá;
sojigo onça pelas tetas,
mò de os meninos mamar!”

“Ô ninho de passarim,
ovinho de passarinhar:
se eu não gostar de mim,
quem é mais que vai gostar?

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Fernando Pessoa



Não se acostume com o que não o faz feliz, revolte-se quando julgar necessário. 
Alague seu coração de esperanças, mas não deixe que ele se afogue nelas. 
Se achar que precisa voltar, volte! 
Se perceber que precisa seguir, siga! 
Se estiver tudo errado, comece novamente. 
Se estiver tudo certo, continue.
Se sentir saudades, mate-a. 
Se perder um amor, não se perca! 
Se o achar, segure-o!


Ser feliz é encontrar força no perdão, esperanças nas batalhas, segurança no palco do medo, amor nos desencontros. É agradecer a Deus a cada minuto pelo milagre da vida.
Fernando Pessoa


quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Cora Coralina




Não Sei

Não sei... se a vida é curta ou longa demais pra nós,
Mas sei que nada do que vivemos tem sentido,
se não tocamos o coração das pessoas.
Muitas vezes basta ser:
Colo que acolhe,
Braço que envolve,
Palavra que conforta,
Silêncio que respeita,
Alegria que contagia,
Lágrima que corre,
Olhar que acaricia,
Desejo que sacia,
Amor que promove.
E isso não é coisa de outro mundo, é o que dá sentido à vida.
É o que faz com que ela não seja nem curta, nem longa demais,
Mas que seja intensa, verdadeira, pura... Enquanto durar"

Manoel de Barros


Sou mais a palavra ao ponto de entulho.
Amo arrastar algumas no caco de vidro,
envergá-las pro chão, corrompê-las, -
até que padeçam de mim e me sujem de branco.
Manoel de Barros

terça-feira, 25 de setembro de 2012

Fábio Rocha



A magia da poesia
é encher a lua vazia
aproximar o tempo distante
chorar nos ombros da alegria
eternizar um mínimo instante.

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Flor Bela Espanca



É Primavera agora, meu Amor!
O campo despe a veste de estamenha;
Não há árvore nenhuma que não tenha
O coração aberto, todo em flor!
.
Ah! Deixa-te vogar, calmo, ao sabor
Da vida... não há bem que nos não venha
Dum mal que o nosso orgulho em vão desdenha!
Não há bem que não possa ser melhor!
.
Também despi meu triste burel pardo,
E agora cheiro a rosmaninho e a nardo
E ando agora tonta, à tua espera...
.
Pus rosas cor-de-rosa em meus cabelos...
Parecem um rosal! Vem desprendê-los!
Meu Amor, meu Amor, é Primavera!...

sábado, 22 de setembro de 2012

Primavera



Primavera
                                                    Fátima Fonseca
  
 sangue verde
pés de barro
 alma vegetal.
desfiz em rosas
no cio da primavera

quem me vê cândida e terna
despertando  admiração 

não faz ideia da minha trajetória
nem das vezes em que pensei desistir
meio a seca, meio as enchentes.

pensei até noutro destino
e me deixar levar pelas águas torrentes

meus espinhos afiados?
deles não desfaço!
são eles meus líricos segredos.

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Vinícius de Moraes



Pela luz dos olhos teus

Quando a luz dos olhos meus
E a luz dos olhos teus
Resolvem se encontrar
Ai que bom que isso é meu Deus
Que frio que me dá o encontro desse olhar
Mas se a luz dos olhos teus
Resiste aos olhos meus só p'ra me provocar
Meu amor, juro por Deus me sinto incendiar
Meu amor, juro por Deus
Que a luz dos olhos meus já não pode esperar
Quero a luz dos olhos meus
Na luz dos olhos teus sem mais lará-lará
Pela luz dos olhos teus
Eu acho meu amor que só se pode achar
Que a luz dos olhos meus precisa se casar.

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Pedro Augusto do Nascimento



Ânsia                                                      
                                 
Tudo treva, perpetua  escuridão! ... 
Luz, para que? se é meu tristonho fado, 
Vagar sem leme, vida sem clarão, 
Numa penumbra imensa mergulhado!
Para amar, já não tenho coração! 
Meu amor 
Me consome, Oh! Deus quero o teu perdão 
Pra viver neste mundo sossegado.

E da treva, então, uma voz me fala 
Vai peregrino, banha-te na luz: 
Luz da crença, da fé cheia de calma.

A luz que é vida, amor: - a luz do céu 
Mais sublime, que emana de Jesus. 
Da minha dor, Deus meu, tira-me o véu.

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Pablo Neruda



A Dança

"Não te amo como se fosse rosa de sal, topázio
ou flecha de cravos que propagam o fogo:
te amo como se amam certas coisas obscuras,
secretamente, entre a sombra e a alma.
.
Te amo como a planta que não floresce e
 leva dentro de si, oculta, a luz daquelas flores.
e graças a teu amor vive escuro em meu corpo
o apertado aroma que ascende da terra.
.
Te amo sem saber como, nem quando, nem onde,
te amo diretamente sem problemas nem orgulho:
assim te amo porque não sei amar de outra maneira,
.
Se não assim, deste modo, em que não sou nem és.
tão perto que a tua mão sobre meu peito é minha
tão perto que se fecham teus olhos com meu sonho."

terça-feira, 18 de setembro de 2012

Sou traça roedora livros de poesias




traça literária          
Suspiro o existir rasgando caminhos entre
os poemas 
mastigo
palavras e craquelo as em versos               


segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Viviane Mosé



"Eu poderia chorar de coisas assim:
Corre um rio de minha boca, corre um rio de minhas mãos.
Dos meus olhos corre um rio.
Na verdade sofro de excessos, que me dão certo vocabulário
Como derramar, escorrer, atravessar.
Tenho a impressão de que tudo vaza em sobras.
Tenho dificuldade em caber.
Pra caber mais, derramo por nada, derramo sem motivo.
Vou acalmar meu excesso pensei (...)
Palavras são estacas fincadas ao chão.
Pedras onde piso nessa imensa correnteza que atravesso."



Gente é mais ou menos como rio:
Tem os que gostam de perigo e se lançam de grandes alturas
Tem os de muitos braços que atiram pra todos os lados
Tem os de muitos redemoinhos que comem bois e gente
Tem os que gostam demais de si e viram lago
Tem os que só sabem correr parados
São os empoçados os pantaneiros os alagados
Tem os que transam com a terra formando ilhas
O fundo de alguns é de pedra. Tem os de peixes coloridos
Outros têm água clarinha. E tem gente córrego seco
E tem gente riacho escuro. Alguns a terra engole vivos
E tem até rio que corre pra trás
O rio que eu sou nasceu em janeiro

Dalila Teles Veras



RITO DE PASSAGEM

Que sabemos nós
seres chorosos
à beira da morte
do outro?

Que sabemos nós
seres medrosos
à beira da vida
à beira de nós mesmos?

Que sabemos nós
da barca à espera
da passagem
do mistério?

— Nada

Por isso tememos

Rubem Alves



"A alegria é um pássaro que só vem quando quer. Ela é livre. 
O máximo que podemos fazer é quebrar todas as gaiolas e cantar uma canção de amor, na esperança de que ela nos ouça. 
Oração é o nome que se dá a esta canção para invocar a alegria."


sábado, 15 de setembro de 2012

"...Eu que me aguente comigo e com os comigos de mim."...



Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa

Contudo, contudo,
Também houve gládios e flâmulas de cores
Na Primavera do que sonhei de mim.
Também a esperança
Orvalhou os campos da minha visão involuntária,
Também tive quem também me sorrisse.
Hoje estou como se esse tivesse sido outro.
Quem fui não me lembra senão como uma história apensa.
Quem serei não me interessa, como o futuro do mundo.

Caí pela escada abaixo subitamente,
E até o som de cair era a gargalhada da queda.
Cada degrau era a testemunha importuna e dura
Do ridículo que fiz de mim.

Pobre do que perdeu o lugar oferecido por não ter casaco limpo com que aparecesse,
Mas pobre também do que, sendo rico e nobre,
Perdeu o lugar do amor por não ter casaco bom dentro do desejo.
Sou imparcial como a neve.
Nunca preferi o pobre ao rico,
Como, em mim, nunca preferi nada a nada.

Vi sempre o mundo independentemente de mim.
Por trás disso estavam as minhas sensações vivíssimas,
Mas isso era outro mundo.
Contudo a minha mágoa nunca me fez ver negro o que era cor de laranja.
Acima de tudo o mundo externo!




Eu que me aguente comigo e com os comigos de mim…

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Bárbara Lédo



Eu que nem ao menos sei quantos passos dei até chegar aqui
Me faço de vítima, me escondo no escuro, não sei como agir
São escolhas tortas de um passado
Um sopro de um vento
Leve, calado
Simples, selado

Eu que nem ao menos sei se sou quem sou
Entre espaços estranhos e corpos oblíquos e o pouco que sobrou
Sou um olhar confuso
Uma bala perdida
Uma mente em pedaços
Personalidade encardida
Alma ferida

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Lêdo Ivo



A CREPITAÇÃO

Qualquer vida é naufrágio e perdimento.
Quando chegamos ao fim da restinga
encontramos apenas mar e vento.

Onde estão nossos sonhos? Um errante
raio de sol sumiu entre a folhagem,
dentro de nós o dia fez-se pálido.

Cercado pela luz da madrugada
e de mim rodeado, estou sozinho
entre as grutas da terra e a ira do mar.

Última luz da derradeira festa,
crepita na manhã a eternidade.
E a eternidade é tudo o que me resta.



O DIA INACABADO

Como todos os homens, sou inacabado.
Jamais termino de ser.
Após a noite breve um longo amanhecer
me detém no umbral do dia.
Perco o que ganho no sonho e no desejo
quando a mim mesmo me acrescento.
Toda vez que me somo, subtraio-me,
uma porção levada pelo vento.
Incompleto no dia inacabado,
livre de ser ainda como e quando,
sigo a marcha das plantas e das estrelas.
E o que me falta e sobra é o meu contentamento.


OS POEMAS

É meu corpo que escreve os meus poemas.
Minha alma é a sucursal da minha mão.
As palavras me buscam no silêncio.
Palavras são estrelas que reclamam
o papel branco: céu, constelação.

Mia Couto



Vocação para o silêncio 
"Uns nasceram para cantar, outros para dançar, outros nasceram simplesmente para serem outros. 
Eu nasci para estar calado. 
Minha única vocação é o silencio: tenho inclinação para não falar, um talento para apurar silêncios. 
Escrevo bem, silêncios, no plural, sim, porque não há um único silêncio. 
E todo o silêncio é musica em estado de gravidez."
Mia Couto, In Antes de nascer o Mundo

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Celso Mendes





Eu ando a caça de palavras aladas

que possam compor versos planadores

e recheados de desimportância.



Palavras-borboleta, conhecedoras

do voo e da metamorfose,

donas de seu destino.

Não desejo aprisionar significâncias.



Se for à noite,

que sejam palavras vaga-lumes

ou de estrelas falantes.

Estou cansado de opacidades,

de seriedades,

do inútil marrom que não sabe sorrir.



Feliz eu ficaria se delas nascesse

um poema com a mesma inutilidade

dos aviõezinhos de papel,

tantas vezes atirados ao vento

bem de  lá da minha infância... 

Carlos Drummond de Andrade




Eta vida besta, meu Deus.!


Cidadezinha Qualquer
Casas entre bananeiras
mulheres entre laranjeiras
pomar amor cantar.
Um homem vai devagar.
Um cachorro vai devagar.
Um burro vai devagar.
Devagar… as janelas olham.
Eta vida besta, meu Deus.

Caio Fernando Abreu


Caio Fernando Abreu



"Ando meio fatigado de procuras inúteis e sedes afetivas insaciáveis."

"Meu coração tá ferido de amar errado."

"Acho espantoso viver, acumular memórias, afetos."

"É preciso estar distraído e não esperando absolutamente nada. Não há nada a ser esperado. Nem desesperado."

"Tô exausto de construir e demolir fantasias. Não quero me encantar com ninguém."

"Quem diria que viver ia dar nisso?"

"Mas sempre me pergunto por que, raios, a gente tem que partir. Voltar, depois, quase impossível."

"Loucura, eu penso, é sempre um extremo de lucidez. Um limite insuportável."

"Num deserto de almas também desertas, uma alma especial reconhece de imediato a outra."

"A gente se apertou um contra o outro. A gente queria ficar apertado assim porque nos completávamos desse jeito, o corpo de um sendo a metade perdida do corpo do outro."

José Saramago



Retrato do Poeta Quando Jovem

Há na memória um rio onde navegam
Os barcos da infância, em arcadas
De ramos inquietos que despregam
Sobre as águas as folhas recurvadas.

Há um bater de remos compassado
No silêncio da lisa madrugada,
Ondas brandas se afastam para o lado
Com rumor da seda amarrotada.

Há um nascer do Sol no sítio exacto,
À hora que mais conta duma vida,
Um acordar dos olhos e do tacto,
Um ansiar de sede inextinguida.

Hà um retrato de água e de quebranto
Que do fundo rompeu desta memória,
E tudo quanto é rio abre no canto
Que conta do retrato a velha história.

Mia Couto



Fui Sabendo de Mim 

Fui sabendo de mim 
por aquilo que perdia 

pedaços que saíram de mim 
com o mistério de serem poucos 
e valerem só quando os perdia 

fui ficando 
por umbrais 
aquém do passo 
que nunca ousei 

eu vi 
a árvore morta 
e soube que mentia 

terça-feira, 11 de setembro de 2012

José Saramago



Poema à boca fechada

Não direi:
Que o silêncio me sufoca e amordaça.
Calado estou, calado ficarei,
Pois que a língua que falo é de outra raça.

Palavras consumidas se acumulam,
Se represam, cisterna de águas mortas,
Ácidas mágoas em limos transformadas,
Vaza de fundo em que há raízes tortas.

Não direi:
Que nem sequer o esforço de as dizer merecem,
Palavras que não digam quanto sei
Neste retiro em que me não conhecem.

Nem só lodos se arrastam, nem só lamas,
Nem só animais bóiam, mortos, medos,
Túrgidos frutos em cachos se entrelaçam
No negro poço de onde sobem dedos.

Só direi,
Crispadamente recolhido e mudo,
Que quem se cala quando me calei
Não poderá morrer sem dizer tudo.

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

domingo, 9 de setembro de 2012

Guimarães Rosa



Quando sentires a saudade retroar
Fecha os teus olhos e verás o meu sorriso.
E ternamente te direi a sussurrar:
O nosso amor a cada instante está mais vivo!

Quem sabe ainda vibrará em teus ouvidos
Uma voz macia a recitar muitos poemas...
E a te expressar que este amor em nós ungindo
Suportará toda distância sem problemas...

Quiçá, teus lábios sentirão um beijo leve
Como uma pluma a flutuar por sobre a neve,
Como uma gota de orvalho indo ao chão.
Lembrar-te-ás toda ternura que expressamos,
Sempre que juntos, a emoção que partilhamos...
Nem a distância apaga a chama da paixão.


sábado, 8 de setembro de 2012

FABRÍCIO CARPINEJAR



Décima elegia

Só na velhice o vento não ressuscita.
A água dos olhos entra na surdez da neve
e escuta a oração do estômago, dos rins, do pulmão.
O sono desce com a marcha dos ratos no assoalho.
Tudo foi julgado e devemos durar nas escolhas.

Só na velhice os grilos denunciam o meio-dia.
O exílio é na carne.
Esmorece o esforço de conciliar a verdade
com a realidade.
A neblina nos enterra vivos.

Só na velhice o pó atravessa a parede da brasa,
o riso atravessa o osso.
Deciframos a descendência do vinho.
Os segredos não são contados
porque ninguém quer ouvi-los.
O lume raso do aposento é apanhado pela ave
a pousar o bule das penas na estante do mar.

Só na velhice acomodo a bagagem nos bolsos do casaco.
O suspiro é mais audível que o clamor.
Recusamos o excesso, basta uma escova e uma toalha.

Só na velhice os músculos são armas engatilhadas.
O nome passa a me carregar.
É penoso subir os andares da voz,
nos abrigamos no térreo de um assobio.
Pedimos desculpa às cadeiras e licença ao pão.
O ódio esquece sua vingança.
Amamos o que não temos.

Só na velhice digo bom dia e recebo
a resposta de noite.
Convém dispor da cautela e se despedir aos poucos.

Só na velhice quantos sofrem à toa
para narrar em detalhes seu sofrimento.
O pesadelo impõe dois turnos de trabalho.
Investigo-me a ponto de ser meu inimigo.
Sustentamos o atrito com o céu, plagiando
com as pálpebras o vôo anzolado, céreo, das borboletas.

Só na velhice há o receio em folhear edições raras
e rasgar uma página gasta do manuseio.
Embalo a espuma como um neto.
Confundimos a ordem do sinal da cruz.
O luto não é trégua e descanso, mas a pior luta.

Só na velhice a forma está na força do sopro.
Respeito Lázaro, que a custo de um milagre
faleceu duas vezes.
O medo é de dormir na luz.
Lamento ter sido indiscreto
com minha dor e discreto com minha alegria.

Só na velhice a mesa fica repleta de ausências.
Chego ao fim, uma corda que aprende seu limite
após arrebentar-se em música.
Creio na cerração das manhãs.
Conforto-me em ser apenas homem.

Envelheci,
tenho muita infância pela frente.

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Paulo José Cunha



POETAI, POETAS, POESIA!
QUE A MORTE É NO DIA-A-DIA!

toda palavra semeia 
a flor do próprio veneno 
e cada frase vagueia 
na versão do seu momento
toda palavra retesa 
a corda do próprio arco 
não faça versos não fale 
o que valeu já não vale
mesmo que seja perverso 
anote o verso resista 
toda palavra se explica 
no próprio verso em que habita
no instante exato do crime 
toda palavra é uma pista 
não se explique tome um porre 
o que foi dito é o que morre
rasgue os versos vá embora 
renegue tudo o que fez 
copie de novo outra vez 
passe a limpo e jogue fora 


quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Clarice Lispector



...Que minha solidão me sirva de companhia.
que eu tenha a coragem de me enfrentar.
que eu saiba ficar com o nada
e mesmo assim me sentir
como se estivesse plena de tudo.

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

João Cabral de Melo Neto



Os Três Mal-Amados


O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.



O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas. O amor comeu metros e metros de gravatas. O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus. O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos.



O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minhas dietas. Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas, meus raios-X. Comeu meus testes mentais, meus exames de urina.



O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia. Comeu em meus livros de prosa as citações em verso. Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos.



Faminto, o amor devorou os utensílios de meu uso: pente, navalha, escovas, tesouras de unhas, canivete. Faminto ainda, o amor devorou o uso de meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada no banheiro, o aquecedor de água de fogo morto mas que parecia uma usina.



O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.



O amor voltou para comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.



O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas. O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina do largo, com os primos que tudo sabiam sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas de automóvel.



O amor comeu meu Estado e minha cidade. Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré. Comeu os mangues crespos e de folhas duras, comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas chaminés. Comeu o cheiro de cana cortada e o cheiro de maresia. Comeu até essas coisas de que eu desesperava por não saber falar delas em verso.



O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que as linhas de minha mão asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande poeta. Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala.



O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte.




terça-feira, 4 de setembro de 2012

Clarice Lispector


Quero escrever

Quero escrever 
o borrão 
vermelho de sangue 

Quero 
escrever o borrão vermelho de sangue 
com as gotas e coágulos pingando 
de dentro para dentro. 
Quero escrever amarelo-ouro 
com raios de translucidez. 
Que não me entendam 
pouco-se-me-dá. 
Nada tenho a perder. 
Jogo tudo na violência 
que sempre me povoou, 
o grito áspero e agudo e prolongado, 
o grito que eu, 
por falso respeito humano, 
não dei. 

Mas aqui vai o meu berro 
me rasgando as profundas entranhas 
de onde brota o estertor ambicionado. 
Quero abarcar o mundo 
com o terremoto causado pelo grito. 
O clímax de minha vida será a morte. 

Quero escrever noções 
sem o uso abusivo da palavra. 
Só me resta ficar nua: 
nada tenho mais a perder.

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Hilda Hilst



Se te pareço noturna e imperfeita
Olha-me de novo. Porque esta noite 
Olhei-me a mim, como se tu me olhasses.
E era como se a água
desejasse.

Escapar de sua casa que é o rio
E deslizando apenas, nem tocar a margem.

Te olhei. E há um tempo.
Entendo que sou terra. Há tanto tempo
Espero
Que o teu corpo de água mais fraterno
Se estenda sobre o meu. Pastor e nauta

Olha-me de novo. Com menos altivez.
E mais atento.

Chico Xavier.



"Um pequeno grão de alegria dentro do coração de cada um é capaz de transformar qualquer coisa, pois a vida é construída nos sonhos e concretizada no amor."

domingo, 2 de setembro de 2012

Cora Coralina



A GLEBA ME TRANSFIGURA

Sinto que sou abelha no seu artesanato.
Meus versos tem cheiro de mato, dos bois e dos currais.
Eu vivo no terreiro dos sítios e das fazendas primitivas.
(...)
Minha identificação profunda e amorosa
com a terra e com os que nela trabalham.
A gleba me transfigura. Dentro da gleba,
ouvindo o mugido da vacada, o mééé dos bezerros.
O roncar e focinhar dos porcos o cantar dos galos,
o cacarejar das poedeiras, o latir do cães,
eu me identifico.
Sou arvore, sou tronco, sou raiz, sou folha,
sou graveto sou mato, sou paiol
e sou a velha tulha de barro.

pela minha voz cantam todos os pássaros,
piam as cobras
e coaxam as rãs, mugem todas as boiadas que
vão pelas estradas.
Sou espiga e o grão que retornam a terra.
Minha pena (esferográfica) é a enxada que vai cavando,
é o arado milenário que sulca.
Meus versos tem relances de enxada, gume de foice
e o peso do machado.
Cheiro de currais e gosto de terra.
(...)
Amo aterra de um velho amor consagrado.
Através de gerações de avós rústicos, encartados
nas minas e na terra latifundiária, sesmeiros.
A gleba está dentro de mim. Eu sou a terra.
(...)
Em mim a planta renasce e flosrece, sementeia e sobrevive.
Sou a espiga e o grão fecundo que retorna à terra.
Minha pena é enxada do plantador, é o arado que vai sulcando.
Para a colheita das gerações.
Eu sou o velho paiol e a velha tulha roceira.
Eu sou a terra milenária, eu venho de milênios
Eu sou a mulher mais antiga do mundo, plantada
e fecundada no ventre escuro da terra.

sábado, 1 de setembro de 2012

Cora Coralina



Eu sou o caule
dessas trepadeiras sem classe,
nascidas na frincha das pedras:
Bravias.
Renitentes.
Indomáveis.
Cortadas.
Maltratadas.
Pisadas.
E renascendo.





Tão lindo isso, meu Deus!!

Affonso Romano de Sant'Ann



Estou feliz, em febre.

Outros politizam suas dores.

Eu me polenizo

ou polemizo 

- com as flores