quinta-feira, 28 de maio de 2015

"Meu corpo se enche de emoções dementes,
como uma taça sob torneiras intermitentes.
 Se não fosse a poesia,

para onde ela transbordaria?"

quinta-feira, 21 de maio de 2015

E eu, de novo, tentando fazer em versos

Adriano Dias
E eu, de novo, tentando fazer em versos
os pedaços dispersos
que apreendo de quem é você,
cuja beleza,
poesia viva,
quero tornar letra, subjetiva,
mas a arapuca da palavra, sem escolha,
sabota meu projeto
tão logo toco a tinta na folha
e tudo que era você por completo,
e me dominava ainda agorinha,
acaba emoção de esteta,
e mais,
enquanto o texto por si, caminha,
nada perto do que era antes,
eu, apaixonado pelos termos,
melodia das vogais,
pelo ritmo das consoantes,
mergulho no inebriante precipício que só vemos
no exercício da criação da arte.

E esse novo fracasso,
o presente poema que faço
e as delícias de compô-lo,
muito mais que consolo,
proporciona o mesmo nível epifânico de deleite
que tenho ao ver seu rosto, corpo inteiro,
ouvir o canto, sentir seu cheiro.

Nem espero que entenda, tampouco que aceite,
mas saiba que ainda mais lhe devo
na contabilidade dos prazeres que me desperta!
Agora, além de sua realidade concreta,
o gozo de contemplar seu relevo,
soma-se a transcendência a que me elevo,
quando aqui me faço poeta!


Adriano Dias

quarta-feira, 20 de maio de 2015

De bolas e deuses gregos
 Solange Amado
Foi mais ou menos assim. Nunca entendi nadica de nada de futebol. Nunca saquei que aquele cara de preto correndo pra lá e pra cá no meio do campo, aquele incompetente que nunca alcançava a bola, era o juiz. E eu nem desconfiava que a função dele era essa mesma, fugir da bola, mas estar sempre de olho nela e no que os jogadores faziam com ela. Uma espécie assim de agente secreto, ou um detetive encarregado de flagrantes de infidelidade. Pisou na bola, ele apita, deu um bicudo no companheiro, tá fora do jogo. De cartão vermelho eu sacava. Tinha acabado de dar um de presente a um, eu diria, metrossexual, que tinha tido a gentileza de, por sua vez, me presentear com um belo par de chifres. Falta desleal.
Depois daquela rasteira na minha autoestima, não tinha sentido eu perder a chance de agarrar o deus grego que me apareceu assim de repente, depois de um largo tempo de secura. Era a oportunidade de sair do buraco. Só não contava com o fato de que aquela figura mitológica tinha uma estranha obsessão: ele dormia, comia e vivia futebol desde que saltou fora do ventre materno. E desconfio que só se interessava por mulher porque o lay out desta, tinha redondezas semelhantes às de uma bola.
E se um bem maior se alevantava, eu ia virar praticamente um mix de Cristiano Ronaldo com Galvão Bueno. Zagueiro, impedimento, falta, pênalti, atacante, linha de fundo, corner, passaram a fazer parte do meu vocabulário diário. Queimei pestanas numa pós graduação no google. Xingar a mãe do juiz também fazia parte do meu novo aprendizado, não obstante fosse difícil detectar a hora certa de lançar os impropérios, porque eu nunca sabia contra quem ou a favor de quem o senhor de preto estrilava seu apito.
Ao invés do couro macio das poltronas de cinemas, teatros e restaurantes, o cimento duro das arquibancadas passou a acariciar meu traseiro pelo menos, uma vez por semana.
A princípio, aqueles 22 marmanjos correndo atrás de uma bolinha por longos 90 minutos era algo um tanto monótono, pra não dizer meio ridículo e a histeria deslavada de um estádio inteiro, escapava à minha modesta compreensão.
O tempo foi passando, meu deus grego só tinha olhos para aquelas criaturas atléticas com sua bolinha solitária e eu só tinha olhos para ele. Nos intervalos eu agitava bandeiras e tentava agitar seu interesse pela minha pessoa. Infelizmente, nunca logrei sacudir as redes do seu tesão com uma cabeçada certeira, uma bicicleta ou uma folha seca, ou outras posições do kama sutra futebolístico. Minhas tentativas sempre batiam na trave.
O tempo foi passando e me cansei de ser atriz coadjuvante naquela ópera esportiva. Cansei de só encontrá-lo nas reentrâncias. Decidi que meu deus grego não estava com aquela bola toda. O verdadeiro espetáculo estava lá embaixo no gramado. E cada vez meus olhos se voltavam mais pra lá.
Só ao botar pra escanteio e driblar a criatura que se colocava entre mim e  o gramado é que entendi a emoção de um gol de placa e quão libertador é o chute certeiro nas redes da independência. Desde então, não importa quem ganha ou quem perde. Não dependo do resultado do jogo em si. Isso são circunstancias. No momento libertador do gol, não importam subordinação e reticências.
Hoje, confesso que mantenho os deuses gregos bem quietinhos dentro da mitologia. Coloco meu traseiro no cimento frio e fico de olho em 22 deuses de carne e osso. Mantenho sob controle a bolinha, vigio de perto o homem de preto. E se duvidar dou um carrinho em quem barrar meu caminho até o âmago do meu desejo.



Maria Solange Amado Ladeira                solangesolsal@hotmail.com       20/05/14
CORAÇÃO MOLE
Solange Amado
Foi  assim, doutor. Quase que eu desisti, mas graças a Deus tive forças pra cumprir minha palavra até o fim. Não que fosse novidade pra mim. Já abotoei o paletó de muito cabra macho por esse sertão afora. Trabalho limpo e garantido. E ninguém pode dizer que eu exploro. A quantia depende do trabalho que dá apagar o sujeito, e da distância. Quanto mais longe, mais dificultoso o nosso comparecimento, e mais caro. Já percorri todo esse mundaréu de sertão cumprindo a minha obrigação, porque é isso, doutor, quando dou minha palavra, é obrigação, questão de honra. Não carece de botar nada no papel. Só o apalavrado mesmo. Se um dia o senhor tiver precisão de mandar um desafeto dessa para melhor, pode contar com meus serviços. Ainda mais pro senhor, que é homem de respeito.
O que é isso, doutor? Remorso não tem lugar nessa vida. É o destino, doutor. O que tem de ser feito, tem de ser feito. Acontece que sou eu que faço. Me encarrego do serviço, e o camarada fica livre do problema. Só isso. Todo mundo vai empacotar um dia. E se não é de morte morrida, é de morte matada.
É isso. De menos com essa dona. Confesso que fiquei meio balançado, doutor. Ninguem nunca me pediu pra ser apagado. A encomenda era ela mesma, entende? De princípio eu não queria entrar nessa fria. Só podia ser fria. Coisa de gente maluca. Mas ela me convenceu. Eu nunca bebo com os clientes, mas concedi esse benefício porque ela estava disposta a me pagar muito bem por uma merreca de serviço, bem moleza, sem nadica de nada de esforço. Eu não ia mandar pro bispo uma mamata dessas, num é doutor? Era pegar ou largar. Meu erro foi ter demorado tanto. Já falei, não bebo com os clientes, porém, ela carecia de encorajamento pra mais e eu fui ficando. Podia ter puxado o meu berro e resolvido de vez a parada. Mas a idade vai fazendo o coração mole. Sou um cabra duro. Não dou moleza fácil. Mas vacilei e foi aí que me pegaram. Dei bobeira. Nessa minha profissão não tem lugar para arrastar asa pra mulher nenhuma. E pode-se dizer que foi o sucedido. Tantos anos de profissão e nunca fui em cana. Já fiz muito trabalho difícil pra gente importante e não sofri nenhum vacilo. Foi só entrar mulher no meio e a coisa desandou.
Coisa mais simples. Ela queria morrer, não? Pagou direitinho. Era pegar a garrucha e mandar bala. Rápido e limpo. E dar o fora. Mas se é mulher, a coisa vira encrenca. Ela queria encher a cara primeiro e jogar conversa fora, essa choradeira de mulher abandonada, que sempre pega o homem e gruda que nem carrapato. Foi isso, doutor delegado. Só fiz o meu serviço.
Mesmo que o senhor não acredite, sou um homem de respeito, de palavra. Eu mato, mas não minto.
E vou dizer uma coisa, doutor. Se quiser o conselho de um matador experiente, com mulher é cautela redobrada. Matar primeiro e conversar depois.

Maria Solange Amado Ladeira                            solangesolsal@hotmail.com

29/10/13
COMPASSO BINÁRIO
Solange Amado
Um azul intenso, brilhante como um espelho refletindo o sol. Um mar de lembranças. Toda a água escapando dos meus olhos, salgada, ardente, picante, molhando o mar e um mundo de imagens agridoces. Lembranças que acalento num ir e vir de ondas modorrentas como aquele final de tarde, mantendo em banho maria a minha melancolia. Aquela onda que vinha, tocava meus pés com a mesma leveza de uma mulher criança, uma doce e incansável guerreira, vigiando atentamente a nossa infância e nos permitindo cortar o D da palavra deficiência, transformando-a pelo resto de nossas vidas, na eficiência  de tornar possível a alegria, ingenuidade e leveza de pés descalços, água fria e segurança de um Procon humano. Menina eterna, voltava agora, junto com aquela onda para um beijo esparramado de espuma, naquele final do dia. Mal tive tempo de lhe dizer baixinho “obrigada” e lá ia ela de volta para o alto mar. Nem bem aquela onda de emoções abandonava as minhas retinas, outra o trazia no seu bojo: meu primeiro amor, aquele do primeiro beijo, do primeiro espanto, do primeiro pranto de dor, a primeira bendita sacanagem, que nos faz vislumbrar um mundo de prazer até então desconhecido do meu universo de pirralha. Meu grande e vasto amigo Gabriel foi meu primeiro esqueleto no armário; seguiram-se outros bem mais amargos. Nenhum tão gentil e com uma esqueletice tão inocente. Meu amigo Gabriel que me dedicou um capítulo no livro da sua vida, e se foi tão cedo, volta por um instante e me agarra os pés num beijo rápido, suave e salgado. Um a um, num vai e vem incesssante, o mar, como a vida, generoso e avaro, me traz e me leva meus fantasmas em frações de segundo: minha babá, tão querida e nefasta, que cheia de candura me embalava com um carinho regado a histórias de terror, infernizando o meu sono com pesadelos numa frequência monótona e contínua, como as ondas que vão e vêm nesse fim de tarde. Era bom. Era ruim. Mas não somos todos assim, paradoxais? Seja lá o que for, não houve tempo para despedidas. O mar levou a doçura, o terror, os pesadelos, sem me dar tempo de entender esse odiamor paradoxal de minha infância. Deito-me na areia. A próxima onda mexe nos meus cabelos, reconheço os dedos da minha avó ao me fazer dormir. Beijo aquela água salgada, lambo minhas recordações com voluptuosidade. Não sei quando nos reencontraremos. Foi só um momento fugaz em clave de sol. Momento em que o grande maestro do universo regeu o côro das minhas recordações no compasso binário do mar.
                                Maria Solange Amado Ladeira – solangesolsal@hotmail.com

                                11/09/12
CARECE SONHAR
 Solange Amado 
Nabokov sonhava com a Lolita e dormia com a Vera, eu durmo com meu travesseiro e sonho com o George Clooney. A vida é uma mixórdia. A realidade é dura. Por essas e outras é que eu recomendo o sonho. Não que eu recomende o mundo da lua como rota principal na escalada desse Himalaia espinhoso que é a vida. Não carece tanto. Mesmo porque, quando a gente sobe assim tão alto, periga não conseguir descer, e o máximo que podemos atingir daí em diante, é um Hospital Psiquiátrico. Então, já perceberam que é importante assegurar o caminho de volta. Longe de mim querer meter alguém numa bananosa com esses conselhos duvidosos. Tenho ótimas intenções.
E então, esclarecido o primeiro ponto, continuo afirmando que sonhar é imprescindível. Não me perguntem por que. Careço de um número maior de neurônios pra dispor de uma explicação científica capaz de satisfazê-los. Digamos que sonhar é tirar férias da realidade meia boca que nos rodeia.
Eu por mim, vez em quando arrumo as malas, me despeço das minhas prendas domésticas, das miudezas do dia a dia, dos meninos, do cachorro, e vou acampar no glamour de Hollywood. Lá, mesmo com minhas duas polegadas a mais, dou o maior ibope com o George. Abro caminho entre os paparazzi, distribuo autógrafos, piso na calçada da fama com o ar blasé próprio das beldades, e quando fico cansada de tanta bajulação, volto para o meu anonimato. É simples. Sonhar não dá muito trabalho.
Às vezes, meu lado transcendental leva a melhor e procuro pastos mais verdejantes para alimentar a minha alma. Já fui acampar com monges tibetanos: silencio e paz como contraponto a essa loucura poluída do mundo real. Não durou muito, é verdade. Não me adaptei ao jejum, à tigelinha de arroz e ao sino da madrugada, mas não é um sonho de se jogar fora.
A grande sacada é não fazer do sonho um pesadelo. Já vi muito sonho atingir o Cabo das Tormentas e naufragar. Não deixa de ser uma ameaça. O segredo é não deixar o seu desejo ultrapassar a barreira do som. Pisar no freio. Esse é o segredo. Se frequentemente tropeçamos na realidade e podemos deslizar no sonho, não significa que a gente deva ir com muita sede ao pote. Aprendi isso a duras penas.
Minha mãe sonhava alto. Quando a coisa ficava feia, e a coisa frequentemente ficava feia numa casa com 6 crianças, trabalheira, cachorro, gato, papagaio, as labutas de professora e dinheiro curto, ela escapava para os livros; quando os livros não davam conta, ela malhava o piano. Desconfio que esse recurso também tenha ficado pequeno. Então, o jeito era sonhar, e se o tamanho do sonho não dava pra aguentar o tranco, o jeito era sonhar um pouco mais alto – tudo isso e o céu também – sempre um pouco mais alto. Com o olhar perdido desejava o céu. Até que alçou vôo.
Ainda tive esperança de que ela achasse o caminho de volta. Mas é aí que mora o perigo. Não deu.
Acho que foi um sonho bom. O pesadelo ficou do lado de cá. Azar o nosso!



Maria Solange Amado Ladeira      solangesolsal@hotmail.com       25/03/2014
AMOR DE OUTONO
Solange Amado
Foi o que ele declarou: “Na curva perigosa dos cinqüenta derrapei nesse amor”. Pra Carlos Drumond de Andrade foi o bastante, acho. Começou e acabou por aí, na curva perigosa dos cinqüenta. Pra mim, foi um pouco mais adiante. E não foi uma derrapada, o que me permitiria, mais cedo ou mais tarde, fincar pé e me firmar na minha dignidade. Foi mais uma trombada. Um caminhão fenemê pela frente, e numa curva fatal: a dos sessenta. Ainda não me levantei e nem quero. Pra que?
Meu fusquinha antediluviano vinha pela estrada cochilando por tantos anos que nem viu a curva, nem reparou nos sinais da estrada, nem atentou para o que vinha pela frente, tão à vontade eu estava no volante familiar das minhas emoções.
É isso. Quando os ventos da sexygenariedade me fustigaram, peguei firme as rédeas do meu coração. Nem pensar em sair da estrada. Nada de descompasso. Se CDA, apesar de todos os cuidados, foi derrapar lá atrás na curva dos cinqüenta, era preciso botar as barbas de molho, que nos sessenta o perigo é redobrado. Não que a idade torne a paixão menos ou mais ridícula. Toda paixão é de uma babaquice atroz.  O problema, se querem saber, é a turbulência que sacoleja a vida e nos deixa assim meio que cegos num tiroteio, sem direção. O ridículo não preocupa. É uma palavra que não existe no dicionário do que estão bêbados de amor. E em sendo assim, eu não me importo nem um pouco em subir em cima da mesa e fazer um striptease de emoções, no bar da meia idade, ou de qualquer idade. O medo é descer daí, quando o tempo pra passar a ressaca e recuperar a dignidade se esvai muito depressa.
Pensando bem, isso diz respeito ao futuro e não adianta elocubrar quando só o que eu tenho é o hoje. Por enquanto, só quero me equilibrar nessa incerteza, me lambuzar e abusar do prazer de ser amada e mais ainda: usufruir do presente, desse presente que me foi dado no outono da vida.
Tô atravessando fora da faixa, da faixa etária se insistem, e se vou ser atropelada ou não, isso interessa pouco, porque não há escolha. Se a vida não tem repeteco, é viver e viver.
Cair de cima da mesa de uma paixonite no outono da vida é problemático, como já alertou um amigo. Quedas são perigosas para os mais velhos, a recuperação é lenta e dolorosa e sempre deixa seqüelas. Tá, mas eu vou em frente. Na contramão. Mais seqüelas que a vida já me deixou? Será só mais uma cicatriz ridícula antes que a cortina se feche e o espetáculo termine. A rapa do tacho que eu lambo lubricamente até a última gota. Talvez assim, eu possa exorcizar um medo,  que Mercedes Sosa parecia compartilhar comigo, quando lançava em sua canção, o grito: “que la reseca muerte no me encuentre, vacia e sola sin haber hecho lo suficiente”.  Que a morte árida não me encontre, vazia e só, sem haver feito o suficiente. Deve bastar.



Maria Solange Amado Ladeira     solangesolsal@hotmail.com


ACHTUNG! VERBOTEN!
 Solange Amado 
Aeroporto é como parto, diz um amigo meu.  A gente tem de esquecer da peleja das malas, do cansaço,  dos corredores infinitos, dos aviões apertados, pra poder tentar de novo. Uma vez esquecidas as dores do aeroporto, lá vamos  nós de mala e cuia pagar uns micos básicos pelo mundo afora. Encontrei uma amiga, na Suiça, fazendo movimentos vigorosos de natação, na frente de uma vendedora pra explicar que queria um relógio à prova d’água. Em Praga, após ter pedido uma informação em inglês a um guarda, meu amigo e eu ouvimos uma longa explicação em tcheco sobre como encontrar determinada rua. Tentamos inutilmente deter o caudal de palavras ininteligíveis, até que nossas bocas foram tomando o formato de um OOOOOO um tanto imbecil e explodimos os três numa gargalhada incontida. Em Budapest, tentávamos bravamente decifrar um cardápio em húngaro, maldizendo os hieróglifos à nossa frente e o garçon, que se mantinha impassível como um dois de paus, alheio ao nosso drama, até que ele soltou: “podem falar em português. Eu sou de Lisboa”. Foi uma festa, um alívio e um contrangimento. É verdade. Tudo isso faz parte do cardápio do viajante, tão certo como o prazer, a dor e a surpresa de encarar o diferente. O único detalhe desagradável é quando você se torna o centro do “imbròglio”. Aí, a coisa aperta.
Pra falar a verdade, nunca antes me deparei com o verboten radical do alemão. Sou neófita em rigidez de regras e ordens, habitante que sou do “jeitinho brasileiro”. Assim, nossa turminha, com o otimismo próprio dos viajandantes, comprou ingresso para percorrer 18 museus, embora eu ache que, em matéria de museu, três é uma quantidade pra lá de suficiente; mesmo porque, sempre tenho medo de que me confundam com um fóssil e não me deixem sair. Escolhemos primeiro o Museu egípcio. Na véspera, uma senhora paulista permaneceu de pé na frente do busto de Nefertiti em profunda e emocionada reverência. Vai daí que ficou todo mundo doido pra descobrir o feitiço da rainha egípcia. Lá fora, a temperatura era de 3 graus. Nos armamos de casacos, cachecóis, toucas, máquinas fotográficas, óculos, fones de ouvido, uma parafernália de dar dó, e partimos pra enfrentar o armagedon egípcio. E eis que, logo de cara, a eficiência alemã nos atropela: Nein! Nein! Nein! Fomos expoliados de toda a carga de agasalhos, máquinas e adereços; uma alemã corpulenta, com cara de poucos amigos junta toda a tralha e nos entrega uma plaquinha com um número; fazemos uma fila (alemão faz fila pra tudo) e marchamos museu adentro, quer dizer, os outros marcharam, porque eu... Nein! Nein! Nein! Esqueci de tirar minha bolsinha atravessada no ombro. Com ela não haveria Nefertiti. Tentei pegar a plaquinha salvadora com meu amigo, mas, ele já estava umas duas salas adiante. Nein! Nein! Nein! Não posso penetrar no museu com aquele objeto altamente suspeito. O jeito foi voltar à sala de strip tease.  Um casal que estava hospedado no mesmo hotel, gentilmente permitiu que eu colocasse minha bolsa junto com a parafernália deles, no mesmo cabide. Eles, presumivelmente,  também não iriam demorar e eu sabia qual era o cabide. Solucionado o impasse, pude ver os segredos egípcios e verificar devidamente a perfeição da Nefertiti, . Meia hora de caminhada e resolvemos pegar nossos breguetes; tínhamos pressa em partir para o segundo museu. Foi aí que a coisa azedou. Meu amigo entregou a plaquinha, a fraulein a recebeu com cara de poucos amigos e resgatamos nossas roupas, mas... cadê minha bolsa? Estava no cabide do outro casal. Explicamos o fato em português, espanhol, e inglês, mas, a mulher permanecia com cara de dromedário cansado, apontava a plaquinha e dizia: “Nein! Nein! Nein! Impasse formado. Encontramos uma brasileira que traduziu o impasse para o alemão. Inútil. A mulher apontava a plaquinha e repetia Nein! Nein! Nein! Estávamos diante do muro de Berlim. A coordenadora do Museu é chamada, pergunto a ela se posso entrar no compartimento dos agasalhos para procurar minha bolsa. Nein! Nein! Nein! Regras são regras. Duas horas de negociações e o jeitinho brasileiro consegue uma pequena vitória, entro ladeada por um guarda e pela coordenadora, e lá está minha bolsa, e como na música do Roberto Carlos, “meu cachorro me sorri latindo”, minha bolsa me espera sorrindo. Ufa! Alívio! Estendo rápido a mão pra ela, mas uma bota nazista quase arranca meu dedinho do pé. Nein! Nein! Nein!  A bolsa pertence ao casal que possui a plaquinha. Digo à coordenadora que pode abrir, pegar meus documentos e comparar com o passaporte que trago na cintura. Nein! Nein! Nein! Ninguém pode abrir antes do retorno do casal e da plaquinha. Entro em desespero. Quem pode abrir a bolsa? Angela Merckel, o Santo Padre? Hitler trazido às pressas do bunker ali perto?  Dir-se-ia que é um teatro do absurdo, parece até Becket com sua “Esperando Godot”. Só que eu não estava esperando Godot, estava esperando minha bolsa, a um braço de distância e inalcançável. Já estava cansada desse non sense. Lá fora, meu amigo fazia um discurso pra fraulein mal humorada: “Você vai ver, sua nazista, vou lhe rogar uma praga, quando a gente sair daqui, você vai trocar todas essas plaquinhas e isso aqui vai virar o inferno de Dante”. Inútil perder o latim. Ninguém entendia nada e a mulher olhava pra ele impassível, com o mesmo ar de dromedário cansado. Mais uma hora se passou antes que o casal fanático por museus, finalmente aparecesse e todos corressem ao seu encontro. A libertação! Ah! Mas, se estão pensando que foi facinho resolver aquele impasse agora que a plaquinha salvadora aparecera? Nein! Nein! Nein! Regras são regras no mundo alemão. Meus amigos tiveram de se enfiar no final de uma fila quilométrica que vagarosamente recuperava seus haveres. Só então, resgatei minha bolsa e o “imbróglio” se desfez.
Agora vocês me perguntam, arriscarei eu, algum dia, a enfrentar mais uma vez a burrocracia alemã? Pode ser, mas, ao museu de Nefertiti? NEIN! NEIN! NEIN!

Maria Solange Amado Ladeira  solangesolsal@hotmail.com

23/10/2012
A CULPA
  Solange Amado
As coisas estão ficando esquisitas. A raposa está tomando conta das uvas. E assim, nasce uma desconfiança universal e infinita, sem precedentes. Rola a maior paranoia. E eu no meio disso tudo tendo de administrar meus fantasmas. Ando até desconfiada de mim.
Explico. Tenho certeza de que tenho culpa. Mensalão, lavajato, bala perdida, qualquer negócio. Eu me escondo debaixo da mesa, dentro do guarda roupa, na casa do vizinho, mas não escapo.
Bom, o vaso chinês da vovó eu quebrei mesmo, disso eu me lembro. A porta da geladeira também parece que tive participação ativa. É verdade também que esganei o filhotinho da gata. Mas aí, foi uma questão de falta de coordenação motora. Foi um assassinato cheio de boas intenções. Eu só queria abraça-lo e beijá-lo, mas ninguém me avisou que minha coordenação motora de cortadora de cana não serviria para passarinhos, gatinhos, e pintinhos de estimação. E se tivessem avisado, mal saída das fraldas, eu não teria mesmo nenhuma condição de não esganar filhotinhos de espécimes variadas. Mesmo assim, sem chance. Eu não ficava livre das chineladas.
Vai daí que é por isso que hoje não tenho mais assassinatos no meu currículo, nem pequenos roubos (não tenho registro dos grandes), mas de tanto ser castigada, fui me acostumando com essa vida viciada de 50 tons de cinza. Foi inevitável. Incorporei a culpa.
Nunca passou pela cabeça da minha família que eu não tinha o dom de me bilocar. Que eu não poderia estar na escola e ao mesmo tempo invadir o escritório do meu pai e entornar guaraná nos seus processos. Minha família de Sherloques nunca se preocupava com esses detalhes de menor importância, fora que entre meus irmãos, já havia, naquele tempo, a figura da delação premiada. E uma infinidade de dedos duros.
Com o tempo, aprendi que se era para o bem de todos e felicidade geral da nação, era melhor me declarar culpada.
Com esse passado me condenando, e como os pretensos culpados dos malfeitos múltiplos que assolam esse país nunca aparecem, e a grossa grana desviada virou estrelinha, só me resta assumir a culpa e esperar a chinelada na bunda.
Não vou ser a primeira. Li esses dias que uma senhora respeitável, descobriu debaixo da casa dela, um cemitério de escravos. Pois nos próximos dias, pretendo abrir o meu armário e expor ao mundo uma respeitável ossada de malfeitos, que remonta ao século passado.
Vai daí que, na falta de alguma outra criatura mais traumatizada por um passado perverso, assumo a culpa da roubalheira que assola esse país. Não me resta outra alternativa, levando-se em conta a minha vida pregressa. Mas que me perdoem vocês mais esperançosos: não sei onde está a grana. Eu e o Maluf não temos contas na Suiça. Sou modestamente uma mulher do lar. Se quiserem uma mulher dólar, podem tirar o cavalo da chuva. Não vai rolar.
E em sendo assim, acho que vai adiantar pouco esse meu prurido de “mea culpa”. No frigir dos ovos, a única coisa que eu posso devolver, é um grampeador que surrupiei da mesa de um colega de serviço em 1970. Mas aviso que não está funcionando mais. Tal qual essas minhas boas intenções. Afinal, de boas intenções o inferno está cheio!



Maria Solange Amado Ladeira  -             solangesolsal@hotmail.com       03/03/2015


sábado, 16 de maio de 2015

"E me inventei neste gosto de especular idéia."
- João Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas.

sexta-feira, 15 de maio de 2015

Cassimiro de Abreu
Meus Oito Anos
Oh ! que saudades que eu tenho
Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais !
Que amor, que sonhos, que flores,
Naquelas tardes fagueiras
À sombra das bananeiras,
Debaixo dos laranjais !
Como são belos os dias
Do despontar da existência !
– Respira a alma inocência
Como perfumes a flor;
O mar é – lago sereno,
O céu – um manto azulado,
O mundo – um sonho dourado,
A vida – um hino d’amor !
Que auroras, que sol, que vida,
Que noites de melodia
Naquela doce alegria,
Naquele ingênuo folgar !
O céu bordado d’estrelas,
A terra de aromas cheia,
As ondas beijando a areia
E a lua beijando o mar !
Oh ! dias de minha infância !
Oh ! meu céu de primavera !
Que doce a vida não era
Nessa risonha manhã !
Em vez de mágoas de agora,
Eu tinha nessas delícias
De minha mãe as carícias
E beijos de minha irmã !
Livre filho das montanhas,
Eu ia bem satisfeito,
De camisa aberta ao peito,
– Pés descalços, braços nus –
Correndo pelas campinas
À roda das cachoeiras,
Atrás das asas ligeiras
Das borboletas azuis !
Naqueles tempos ditosos
Ia colher as pitangas,
Trepava a tirar as mangas,
Brincava à beira do mar;
Rezava às Ave-Marias,
Achava o céu sempre lindo,
Adormecia sorrindo,
E despertava a cantar !
Oh ! que saudades que eu tenho
Da aurora da minha vida
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais !
– Que amor, que sonhos, que flores,
Naquelas tardes fagueiras
À sombra das bananeiras,
Debaixo dos laranjais !
Casimiro de Abreu
E a segunda,
Subi num pé de maracujá
Pra ver meu amor passá
Ele não passou,
Pra que ficar lá?
Soneto
Chico Buarque
Por que me descobriste no abandono
Com que tortura me arrancaste um beijo
Por que me incendiaste de desejo
Quando eu estava bem, morta de sono
Com que mentira abriste meu segredo
De que romance antigo me roubaste
Com que raio de luz me iluminaste
Quando eu estava bem, morta de medo
Por que não me deixaste adormecida
E me indicaste o mar, com que navio
E me deixaste só, com que saída
Por que desceste ao meu porão sombrio
Com que direito me ensinaste a vida
Quando eu estava bem, morta de frio
E este, realmente verdadeiro:

quinta-feira, 14 de maio de 2015

A poetisa a poetizar

Na arte de edificar versos
Constrói-se um universo
Palavras e argamassa
Concreto e sentimento...

Na arte da POETISA
No verbo POETIZAR
Constrói-se mundos risonhos
Constrói-se mundos de sonhos:

De pedras cascalhos paixão
De sonhos e vergalhão
Edifício de palavras
Prédios de ilusão

A POETISA engenheira
No alto de sua poesia
POETIZA os seus sonhos
Faz de nuvens sua euforia...

Irene Cristina dos Santos Costa

quarta-feira, 13 de maio de 2015

O filósofo Kierkegaard me ensinou que cultura
é o caminho que o homem percorre para se conhecer.
Sócrates fez o seu caminho de cultura e ao fim
falou que só sabia que não sabia de nada.

Não tinha as certezas científicas. Mas que aprendera coisas
di-menor com a natureza. Aprendeu que as folhas
das árvores servem para nos ensinar a cair sem
alardes. Disse que fosse ele caracol vegetado
sobre pedras, ele iria gostar. Iria certamente
aprender o idioma que as rãs falam com as águas
e ia conversar com as rãs.

E gostasse mais de ensinar que a exuberância maior está nos insetos
do que nas paisagens. Seu rosto tinha um lado de
ave. Por isso ele podia conhecer todos os pássaros
do mundo pelo coração de seus cantos. Estudara
nos livros demais. Porém aprendia melhor no ver,
no ouvir, no pegar, no provar e no cheirar.

Chegou por vezes de alcançar o sotaque das origens.
Se admirava de como um grilo sozinho, um só pequeno
grilo, podia desmontar os silêncios de uma noite!
Eu vivi antigamente com Sócrates, Platão, Aristóteles —
esse pessoal.

Eles falavam nas aulas: Quem se aproxima das origens se renova.
Píndaro falava pra mim que usava todos os fósseis linguísticos que
achava para renovar sua poesia. Os mestres pregavam
que o fascínio poético vem das raízes da fala.

Sócrates falava que as expressões mais eróticas
são donzelas. E que a Beleza se explica melhor
por não haver razão nenhuma nela. O que mais eu sei
sobre Sócrates é que ele viveu uma ascese de mosca. Manoel de Barros

INFÂNCIA

Um gosto de amora
comida com sol. A vida
chamava-se "Agora".
*****
entrando em tua alma ,começo a procurar,desesperadamente
uma coisa qualquer que não quero encontrar.
*****
Todo o amor não é mais do que um "eu" que transborda.
*****
Por que estás assim,
violeta? Que borboleta
morreu no jardim?
Guilherme de Almeida
O PENSAMENTO
O ar. A folha. A fuga.
No lago, um círculo vago.
No rosto, uma ruga.
INFÂNCIA
Um gosto de amora
comida com sol. A vida
chamava-se "Agora".
 GUILHERME DE ALMEIDA

terça-feira, 12 de maio de 2015

“Lento e suave bordado.
Brisa e bolero,
leve e ousado,
tatuado na alma
distraída do vento”.
Jairo De Britto

domingo, 10 de maio de 2015

Mãezinha
Andam em mim fantasmas, sombras, ais...
Coisas que eu sinto em mim, que eu sinto agora;
Névoas de dantes, dum longínquo outrora;
Castelos d'oiro em mundos irreais...
Gotas d'água tombando... Roseirais
A desfolhar-se em mim como quem chora...
— E um ano vale um dia ou uma hora,
Se tu me vais fugindo mais e mais!...
Ó meu Amor, meu seio é como um berço
Ondula brandamente... Brandamente...
Num ritmo escultural d'onda ou de verso!
No mundo quem te vê?! Ele é enorme!...
Amor, sou tua mãe! Vá... docemente
Poisa a cabeça... fecha os olhos... dorme...
Florbela Espanca

terça-feira, 5 de maio de 2015

Amado X Machado

Solange Amado Ladeira
Acho que sempre me senti atraída por heróis um tanto ao quanto desajeitados. Na minha adolescência, me apaixonei por um autor chamado Karl May. Tinha uma coleção de livros com títulos lindos, como: “Sob o Curdistão bravio”. Seu personagem principal era um nômade do deserto, cuja aparência e figurino fugiam do convencional, mas macho o suficiente  pra montar um cavalo árabe em pêlo e correr pelo deserto socorrendo donzelas que caiam em mãos dos bandoleiros que infestavam o pedaço. Mesmo agora, que não sou mais uma donzela suspirosa, seu nome não me sai da cachola: Hadji Halef Omar Ben Hadji Abul Abbas Ibn Hadji Dawud Al Gossara. Hadji é o fiel que faz a peregrinação até Meca, a cidade sagrada dos muçulmanos. Ben Hadji: o filho do Hadji; Ibn Hadji: o neto do Hadji. Nenhum deles tinha feito a tal peregrinação. Mas isso é só um detalhe. O que interessa aqui é esse tipo esquerdo de herói, como o detetive Sam Spade, do inesquecível Dashiel Hammet, personagens sempre fora dos esquadros, meio inacabados, precisando de retoques.
E isto posto, fico tentada a pegar alguns personagens de Machado de Assis que me deram bastante frisson, como Capitu e Bentinho e misturar num liquidificador com Gabriela e d. Flor de Jorge Amado. Vocês vão jurar que Machado andou lendo Jorge Amado e vice versa. Botem em d. Flor de Jorge Amado, os olhos de ressaca de Capitu, em Gabriela, os olhos de cigana oblíquos e dissimulados, e temperem Capitu com cravo e canela, uma pitadinha de sal e sol. Misturem num liquidificador a sem vergonhice explícita de umas, com a sensualidade dissimulada de outra. E provem. O gosto é parecido. E bom.
E o que dirão de Bentinho e do farmacêutico Teodoro Madureira, marido de d. Flor? No dizer de Machado, Bentinho “conhecia as regras do escrever, sem suspeitar as do amar; tinha orgias de latim e era virgem de mulheres”. O marido de D. Flor não ficava atrás. A mistura dos dois dá uma desesperada burocracia sexual, prazer de  repartição pública. A explosão sexual de Capitu, de D. Flor e de Gabriela, passa por cima de seus parceiros numa dança sensual, a dança da primeira, delicada, harmoniosa, insinuante, a dança das outras, agressiva, forte, erótica. Mulheres irmãs, e o desespero de uma fogueira que não se pode apagar com um conta gotas. É essa a receita que permite rimar Amado com Machado. Uma mistura que dá caldo, e continua a provocar prazer de se degustar em qualquer momento. Mesmo que seja só uma tentativa inacabada, porque – essa é a semelhança : o que nunca foi.
De resto, penso que o epitáfio que Machado colocou no túmulo de Bentinho serve para todos nós, com as mesmas letras bem pequenas: “tentou ser, não conseguiu; tentou ter, não possuiu; tentou continuar, não prosseguiu, e nessa vida de expectativas frustradas, tentou amar... pois bem, não conseguiu”. Afinal, amar é verbo transitivo. Ou não?                             Ma. Solange Amado Ladeira  02/09/2014



DE GENTE E DE FLORES

Solange Amado Ladeira

Freud dizia que às vezes um charuto é apenas um charuto. Às vezes uma flor é apenas uma flor. Fico por aí. Tento não perfumar demais minhas percepções. Ou a flor fica muito over e o charuto cheio de conotações fálicas, que só pertencem a mim. Deixo o charuto e a flor em paz. Isso quando estou de folga, porque na maioria das vezes, gosto de complicar, por premência da profissão ou por falta do que fazer. Porque é assim com o ser humano, que não é charuto nem flor. Com ele, o buraco é mais embaixo.
Quando pendurei o diploma de jornalismo e abracei a psicologia, recebi um conselho duro, inflexível, franco. De alguém com uma trajetória de vida bem além da Taprobana, e que, num linguajar bem claro e chulo, me deu um desanimador direto no queixo: “Filha, não é uma boa troca. Veja, gente é que nem flor. Quando você olha de longe, é tudo lindo, colorido, chegue mais perto e vai ver que tem algumas folhas secas, não tão viçosas; mais perto e você verá que tem muitas pétalas murchas e caídas. Arrisque mais perto e vai ver que ela fica enterrada na merda, o melhor adubo”. Pois é. Ela não dourou a pílula. O conselho ficou assim meio cru, sem meias palavras. Não há margem para metáforas. Nesse caso, charuto é charuto.
O caso é que não segui o conselho e demorou pouco pra que eu reconhecesse a verdade irrefutável da sua afirmativa. Fiel ao meu passado rebelde, não me assustei com esse bicho papão humano, nem me afastei das flores. Arregacei as mangas e botei a mão na massa, ou seja, no adubo. E na maioria das vezes, as flores responderam, erguendo a cabeça.
Até aí tudo bem. O problema é quando uma flor não é bem uma flor. Ou melhor, quando uma flor não precisa vestir o modelito flor com absoluta fidelidade. É aí que infinitas possibilidades se abrem. É disto que eu gosto. Difícil mesmo é convencer uma flor a mudar de padrão, a não seguir a mesma toada. Sou uma flor, mas não sou só isso. Ninguém é só isso. É o truque do ser. Pelo menos o truque do ser humano.
E assim, eu ficava por alí, conversando com aquela flor, enquanto ela tentava desabrochar. Ela não parecia se decidir entre brochar ou desabrochar. Mas tinha uma escolha. Mesmo que não entenda que essa é nossa eterna escolha. Mas ela é uma flor e não está acostumada com os humanos e suas metamorfoses. Em sua cabecinha de flor, não cabe nenhuma quebra de padrão. Não há lugar para a surpresa, para o novo Não posso esperar muito de uma flor que só sabe ser flor, sem permitir os entretantos. Só me resta ir tentando. Flores são desconfiadas. E insisto tanto, que já estou até começando a me sentir uma flor, mesmo que elas sintam dificuldade de pegar o espírito da coisa. Eu já peguei. E ainda tenho esperança de que gentes e flores possam trocar um pouco os papéis, nem que for pra ficar trocando figurinhas. E aí, quem sabe eu ainda possa FLOREUSER.


Maria Solange Amado Ladeira             solangesolsal@hotmail.com           11

LOUCURA

Solange Amado Ladeira
Como um texto quadrado, a tarde modorrenta não prometia nada. Na vitrine, a parafernália eletrônica me acenou, e eu parei. Quando a monotonia é muito grande, até a obviedade é benvinda. Não custava olhar tantas máquinas fotográficas complicadas, objetos cujo funcionamento vai além do meu QI irritantemente normal. Só sei que parei. Foi então que senti a bofetada na cara. Um susto e definitivamente a modorrice da tarde foi para o espaço.
Tudo culpa dela. E ela estava lá. Imóvel. Me olhando curiosamente. Não havia nenhuma animosidade no olhar. Ator e ação pareciam divorciados. Mas o tapa foi doído e audível. Olhei na cara dela, ainda assustada. Então entendi. Nós nos reconhecemos.
Nosso primeiro encontro remonta aos idos de 1976 ou 1977, não estou bem certa; nos corredores do Hospital Raul Soares. Como estagiária, eu ocupava a sala de Psicologia. O corredor estava isolado, vazio e silencioso quando ela apareceu na porta da sala. Alguém me havia dito que uma das pacientes, em crise de fúria, havia escapado dos enfermeiros e estava escondida em algum lugar. É claro, foi baixar na sala onde eu trabalhava, no lado oposto ao das enfermarias. Sou sempre merecendente dessas surpresas. E a surpresa adentrou o recinto cheia de hematomas, lábios inchados e feridos. Não sei dizer em que carraspanas se meteu, antes ou durante a internação. Queria café, ou melhor, exigia. Só isso. Um cafezinho básico, um five o´clock tea, uma prosa arrevesada no meio da tarde. O papo eu tinha, meio reticente, meio tateante, engolindo o medo e devolvendo uma falsa segurança que não convencia nem uma criancinha de berço. O café, infelizmente, havia sido cortado pela eterna falta de recursos dos órgãos públicos. Então, café, nem pensar, nem xícara, mas a garrafa estava lá, como testemunho de um tempo em que as vacas eram mais gordas.
“Se não tiver café, eu retalho você com essa gilete”. E como num gesto de prestidigitação, a gilete se materializou em suas mãos”.
Caracas! Nunca me destaquei pela coragem! Minhas pernas só pensavam em bater em retirada, mas havia uma gilete entre mim e a porta. Eu sabia que a cavalaria americana chegaria, só não sabia se antes ou depois de eu virar carninha moída. O jeito era tentar ganhar tempo, jogar conversa fora, aliás, jogar e a palavra exata. As palavras saiam de mim num texto trêmulo e improvisado, qual Sherazade enrolando o sultão num texto maluco café com gilete. Finalmente, os enfermeiros me libertaram, não muito delicadamente, diga-se de passagem, que as circunstancias não permitiam, saltaram sobre ela e a arrastaram. Miseravelmente eu a deixei à própria sorte. Não lhe paguei o cafezinho prometido. Urgia livrar minha cara. Agora, quase 40 anos depois, ela deu o troco. Tive vontade de convidá-la para um café, mas vai que no meio do processo houvesse a desova de alguma gilete... A tarde quadrada já tinha ficado redonda demais.
Voltemos ao presente: ontem, sem dramas ou giletes, tomei café com uma amiga, pessoa culta, educada, finisssima, catedrática em uma prestigiada universidade, e que jamais elevou a voz em nenhuma circunstancia. Ela estava mortificada. Seu pai faleceu há alguns meses, e coube-lhe providenciar o cancelamento das linhas de telefones usadas por ele. Operação simples. Quadrada. Óbvia. Leva-se o atestado de óbito e solicita-se o desligamento à Cia. Telefônica. Certo? Errado. A atendente informou que só o titular pode pedir o desligamento do contrato. “Bom, mas o proprietário morreu, minha jovem”. Então, “ele tem de lhe passar uma procuração”. E a coisa foi por aí, num diálogo maluco de surdos. A atendente exigia que o morto comparecesse em pessoa ou então, autorizasse “de próprio punho” a operação. A doideira levou alguns dias, e só teve um END que eu não diria muito HAPPY, quando minha amiga chutou o balde perdeu completamente as estribeiras, baixou um clima de zona de baixo meretrício e minha amiga desovou palavrões que ela nem sabia que sabia, depositados quiçá no seu subconsciente. Completamente deprimida, ela terminou o relato com a informação: “Acredita que eu roguei as pragas mais horrorosas na moça? A minha fúria era tão grande por não conseguir que ela entendesse, meu ódio era tão intenso por aquela perda de tempo, aquele non sense que, literalmente, enlouqueci”.
E é dessa loucura que se trata aqui. A que vive nos cantinhos. Se a normalidade, como diz Lacan, é monótona, sem esperança, não precisamos temer porque ela não existe. A vida é um Raul Soares a céu aberto. Mesmo o texto quadrado tem cantinhos e é nos cantinhos que mora a loucura. No fundo do corredor isolado. São esses momentos fora do quadro, do quadrado, do esquadro que nos mostram a imensidão de possibilidades dessa quadratura a  que chamamos de mesmice.
São esses relâmpagos na vida e no texto que levaram William Faulkner a escrever: “o que a literatura faz é acender um fósforo no campo, no meio da noite. Um fósforo não ilumina quase nada, mas nos permite ver quanta escuridão existe ao redor”.



Maria Solange Amado Ladeira              solangesolsal@hotmail.com          28/04/15




Ajoelhou, tem de rezar!

Solange Amado ladeira
Às vezes, fico elocubrando de onde vem esse meu enorme interesse por livros policiais e histórias de suspense, coisas que consumo em doses consideráveis. É um mistério insondável, mas ao examinar o caso sob uma determinada vertente, uma pista parece elementar. Seja lá o que for, a coisa toda remonta a um tempo remoto da minha infância. Pensando bem, o mistério sempre fez parte do meu cotidiano.
Minha casa era uma creche. Seis crianças iam e vinham, entravam e saiam num moto contínuo de energia. Minha mãe se dividia entre casa, trabalho e o estudo de piano; não podia prestar atenção a cada um dos filhos. Isso deixava a minha curiosidade à solta.
A cidade na época era pequenina. Meu pai era um dos dois juízes que se ocupavam dos “imbróglios” que aconteciam por lá e que iam parar no Forum. Os processos se avolumavam no seu escritório, que ocupava o quarto mais importante da casa, rodeado de estantes recheadas de livros, subindo por todas as paredes, com uma enorme escrivaninha no meio.
E é aí que entra o meu tesão pelo mistério. Nesses calhamaços que se empilhavam ao alcance da minha curiosidade.
Nós crianças, éramos proibidas de entrar naquele santuário, sempre fechado. E se era proibido, era comigo mesmo. Alguma coisa deliciosa devia acontecer dentro daqueles tijolaços que chegavam aos montes à minha casa.
Bem antes de ir para a escola, eu já sabia ler. Meio tatibitate a princípio, rapidamente, a leitura começou a abrir portas à minha bisbilhotice.
Logo que minha mãe e meu pai saiam para o trabalho e as empregadas se entregavam às suas tarefas, eu abria sorrateiramente as portas daquele santuário, já com um gostinho doce do proibido na boca, e me punha a folhear e tentar decodificar aquela misteriosa linguagem da justiça.
As fotos não eram divertidas, eu passava rápido por gente estropiada, esfaqueada e litros de sangue pelo chão, corpos, principalmente de mulheres, mas era o texto que me implicava mais. A maioria dos crimes acontecia em um lugar chamado “o baixo meretrício”, um lugar, evidentemente muito perigoso e eu não sabia como ou por que alguém ia querer frequentar um lugar tão suspeito. Minha língua coçava com a vontade de perguntar, mas certamente, isso me traria complicações.
A coisa ainda se agravava mais, de vez que tinha um advogado, um tanto janota, baixinho, gordo e vermelhinho que ia com frequência à minha casa e quando um de nós atendia a campainha, ele dizia: “o meritíssimo está?” Para os meus ouvidos infantis, aquilo soava como “o meretrissimo está?” Caramba! Meu pai devia ter qualquer cargo no baixo meretrício e isso não combinava em nada com o homem sério e pacífico que eu conhecia, mas ainda havia algo que aumentava as minhas suspeitas: os dois juízes da cidade eram muito amigos e andavam sempre juntos – meu pai baixo e gordinho, o outro alto e forte. Meu irmão mais velho, absolutamente irônico gostava de comentar: “lá vão, o baixo e o alto meretríssimo”. E aí? Como resolver esse mistério?
Outros mistérios ainda se somavam a esses dentro daqueles alfarrábios – o corpo estava sempre em “decúbito dorsal”. Até hoje nunca ouvi ninguém perguntar ao outro se dorme em “decúbito dorsal”, pelo menos na minha família, acho que ninguém dorme em “decúbito dorsal”. Eu separava as sílabas de-cu-bi-to. Conclui que era um palavrão, daí só ser usado no baixo meretrício.
Ainda mais difícil era resolver o mistério da quantidade de gente que morria de “délivrance forçada”. Mesmo depois que aprendi a consultar o dicionário, o mistério continuou porque a palavra não existe em nenhum deles. Demorou um tempo pra eu alcançar aquele linguajar esotérico e é triste compreender que a linguagem pode ter mudado (espero), mas os abortos continuam matando tantas mulheres por aí, e não só as meretrizes.
E pasmem, 90% da mulherada guardava sempre uma “peça íntima” na bolsa... Eu dava tratos à bola tentando adivinhar que diabo de peça era essa, inutilmente.
Extrair alguma compreensão daquele linguajar, com seis anos de idade, era submeter meus miolos a uma “délivrance forçada”, eu presumo. E eu tentava, bravamente.
Ando meio afastada de expressões jurídicas e afins, mas ainda hoje penso que a justiça tem muito a aprender com a encantadora obviedade das crianças, que dispensam os rodeios e nos pegam frequentemente de calças na mão, o que nos impede de “escorregar” pelos meandros da linguagem e da situação.
Lembro-me quando meu irmão, então com três ou quatro anos atendeu à campainha. Algum advogado figuraça da cidade procurava pelo meu pai. Informado pelo menino de que ele não estava e vendo que não poderia deixar nenhum recado com uma criança tão pequena, pediu para falar com minha mãe. Meu irmão saiu aos berros em direção ao banheiro onde minha mãe acabara de entrar. De lá de dentro ouviu um resmungo: “Caramba! Nem nessa hora eu tenho um pouco de paz!” Meu irmãozinho não conversou, deu meia  volta e informou também aos berros ao cidadão que esperava impaciente na porta, da maneira mais direta possível, que minha mãe estava envolvida numa ocupação que demandava muita paz e não queria ser incomodada.
É claro que quase foi vítima de um infanticídio. Saia justa inevitável, mas ninguém pôde alegar que não viu, ouviu ou não entendeu. Português mais claro não existe. Estamos necessitados dessa transparência na justiça.
E se consegui ao longo de tantos anos decifrar essa linguagem esotérica dos processos que percorri na minha infância. Se isso se tornou um “cherchez la femme” um tanto obsessivo e voraz. Não importa. O que importa é que continuamos complicando os crimes, no baixo ou no alto meretrício. A coisa é simples: ajoelhou, tem de rezar.


Maria Solange Amado Ladeira – solangesolsal@hotmail.com   dez/2012. 

A VISITA

Maria Solange Amado Ladeira    
Padre Cirilo andava cansado do seu rebanho. Aliás, andava cansado. Ponto. Um rebanho que mais parecia boi de matadouro; nenhuma reação. Nem coceirinha de bicho de pé, nada fazia aquela lamentável audiência sair dos esquadros. Às vezes, tinha a impressão de que, se se lançasse numa disparatada homilia de duas horas em grego, aquele olhar passivo e malemolente da platéia continuaria a revelar a marcha lenta de um crepúsculo, que parecia habitar eternamente o povo daquelas paragens.
Nem era preciso muita perspicácia para chegar ao diagnóstico: “Excesso de passado, escassez de futuro”. Nem espalhar pregos nos bancos da Igreja faria aquela gente tirar o traseiro da poltrona, do berço esplêndido da estagnação. Nenhuma perspectiva. Nenhum prurido de esperança. E o que é pior, aquilo pegava. Desesperança é algo contagioso. Padre Cirilo começava a sentir os sintomas dessa epidemia.
E eis que, no meio dessa modorra sertaneja, lá vinha uma notícia alvissareira: talvez embarcando nas águas papais, em sua opção pela pobreza, o Sr. Arcebispo resolveu que era hora de visitar os primos pobres da paróquia. Agora era engraxar os sapatos, remendar a batina, trocar os panos do altar e agitar a mulherada da paróquia na preparação dos acepipes a serem consumidos pela tropa arcebispal. Lá vinha o Sr. Arcebispo trazer água fresca para a secura das almas do sertão, sacudir a poeira da estrada e quem sabe, conduzir aquele rebanho de reses desgarradas para algum pasto mais promissor. Cirilo teve um comichão de esperança. Quem sabe?
Era uma visita breve, uma pausa de descanso na viagem do arcebispo – comer alguns quitutes, celebrar a Santa Missa, aliviar a bexiga e seguir viagem. Não era muito, é verdade, mas tinha de ser o bastante nesse rincão que nem constava no mapa.
Era aquele o grande dia! Igreja enfeitada, fatiota nova, rebanho em peso cheio de curiosidade, e lá vem o arcebispo com o séquito púrpura, beija mãos, rapapés, um frenesi de santidade.
Fazia um calor dos diabos, o gordo sacerdote, suando em bicas e com o estomago nas costas, topou a cachacinha da terra e a famosa feijoada da dona Raimundina, que ninguém ousava desprezar e onde orelhas, pés, gordurinhas de um porquinho especialmente abatido para a ocasião, boiavam vigorosamente entrelaçados em gulosa paixão.
E como não existe pecado do lado de baixo do Equador, nem o da gula, a Missa foi ficando na corda do sino e o latim do arcebispo mais grudento do que arroz de cadeia.
Cirilo, aflito, não conseguiu evitar a tragédia. A visita desandou junto com o intestino do prelado visitante, conspurcando o templo Santo, espalhando um odor estranho e inesperado, não exatamente de santidade e manchando a reputação dos visitantes e a solenidade do acontecimento.
A manguaça do arcebispo caiu como uma bomba entre as ovelhas do seu humilde rebanho. Ninguém sabia o que fazer, até o piriri de Sua Reverendissima se encarregar de nivelar realidades e expectativas entre o mundo colorido de púrpura clerical e o mundo cinzento da poeira sertaneja. Pés escalavrados, chapéu nas mãos, bronzeado e desconfiança adquiridos na labuta solitária da roça, a gente foi se chegando. Logo apareceu um providencial chá de boldo, café forte, ervas diversas, palpites das comadres e mais biritas pros homens. O resto da visita foi de tapinhas nas costas, cantoria de viola e até se esboçou um bailarico.
Ite Missa est, pensou Cirilo. Mas vamos e venhamos, nada como uma boa dor de barriga para aproximar dois mundos tão incompatíveis. Pelo menos por um dia, o ar ficou menos denso, as diferenças se diluíram e se pôde respirar esperança.


Maria Solange Amado Ladeira     solangesolsal@hotmail.com  13/08/13