Solange Amado Ladeira
Freud dizia que às vezes um charuto é apenas um charuto. Às
vezes uma flor é apenas uma flor. Fico por aí. Tento não perfumar demais minhas
percepções. Ou a flor fica muito over e o charuto cheio de conotações fálicas,
que só pertencem a mim. Deixo o charuto e a flor em paz. Isso quando estou de
folga, porque na maioria das vezes, gosto de complicar, por premência da
profissão ou por falta do que fazer. Porque é assim com o ser humano, que não é
charuto nem flor. Com ele, o buraco é mais embaixo.
Quando pendurei o diploma de jornalismo e abracei a
psicologia, recebi um conselho duro, inflexível, franco. De alguém com uma
trajetória de vida bem além da Taprobana, e que, num linguajar bem claro e
chulo, me deu um desanimador direto no queixo: “Filha, não é uma boa troca.
Veja, gente é que nem flor. Quando você olha de longe, é tudo lindo, colorido,
chegue mais perto e vai ver que tem algumas folhas secas, não tão viçosas; mais
perto e você verá que tem muitas pétalas murchas e caídas. Arrisque mais perto
e vai ver que ela fica enterrada na merda, o melhor adubo”. Pois é. Ela não
dourou a pílula. O conselho ficou assim meio cru, sem meias palavras. Não há
margem para metáforas. Nesse caso, charuto é charuto.
O caso é que não segui o conselho e demorou pouco pra que eu
reconhecesse a verdade irrefutável da sua afirmativa. Fiel ao meu passado
rebelde, não me assustei com esse bicho papão humano, nem me afastei das
flores. Arregacei as mangas e botei a mão na massa, ou seja, no adubo. E na
maioria das vezes, as flores responderam, erguendo a cabeça.
Até aí tudo bem. O problema é quando uma flor não é bem uma
flor. Ou melhor, quando uma flor não precisa vestir o modelito flor com
absoluta fidelidade. É aí que infinitas possibilidades se abrem. É disto que eu
gosto. Difícil mesmo é convencer uma flor a mudar de padrão, a não seguir a
mesma toada. Sou uma flor, mas não sou só isso. Ninguém é só isso. É o truque
do ser. Pelo menos o truque do ser humano.
E assim, eu ficava por alí, conversando com aquela flor,
enquanto ela tentava desabrochar. Ela não parecia se decidir entre brochar ou
desabrochar. Mas tinha uma escolha. Mesmo que não entenda que essa é nossa
eterna escolha. Mas ela é uma flor e não está acostumada com os humanos e suas
metamorfoses. Em sua cabecinha de flor, não cabe nenhuma quebra de padrão. Não
há lugar para a surpresa, para o novo Não posso esperar muito de uma flor que
só sabe ser flor, sem permitir os entretantos. Só me resta ir
tentando. Flores são desconfiadas. E insisto tanto, que já estou até começando
a me sentir uma flor, mesmo que elas sintam dificuldade de pegar o espírito da
coisa. Eu já peguei. E ainda tenho esperança de que gentes e flores possam
trocar um pouco os papéis, nem que for pra ficar trocando figurinhas. E aí,
quem sabe eu ainda possa FLOREUSER.
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