segunda-feira, 22 de junho de 2015

QUADRILHA
Ela era Maria. Havia o João, pai dela. E ainda o Antônio e o Pedro. Não faltava nenhum elemento na quadrilha. João era quem comandava essa dança. A dança das cadeiras. Não roubavam bancos porque não havia bancos na cidade, tirante os bancos da praça, que esses já estavam em estado tão crítico que não carecia de levar para casa. Ainda assim formavam uma quadrilha. Maria amava Antônio, que era pobre, e namorava Pedro, que era rico. Azar o do Antônio! Até aí nenhuma novidade. Acontece que João se arrepiava todo quando via os olhares que Antônio e Maria trocavam depois da missa das 10, lá na pracinha. Não acreditava nessa coisa de amor, ou melhor, acreditava piamente no amor ao dinheiro. Daí, pegava pesado no pé da Maria. Grana trazia respeito, conforto, prosperidade, e o negócio era trazer Maria na rédea curta, antes que ela arrastasse de vez a asa por aquele traste do Antônio e aparecesse prenha qualquer dia desses. Aí, o projeto de casar Maria com Pedro ia de uma vez por todas por água abaixo.
Aliás, andava meio irritado com Pedro, que ia deixando meio bambo aquele teretetê com a Maria. No seu entender, homem que é homem parte direto pros finalmentes, mas tinha de ser paciente com ele. Pedro era fazendeiro rico, é certo, mas um tanto pra logo. Corria um boato na cidade que um coice de burro na cabeça prejudicara o plissado das suas ideias; ficou assim meio troncho, carecia de um empurrãozinho às vezes, de um adjutório pra tomar umas atitudes, e no que dependesse da mão enérgica do João, o casório não ia demorar.
Maria encaminhada na vida, dinheiro no bolso e ele pegando as rebarbas. Era o rumo que as coisas iam tomar.
E tomaram. Dias das bodas chegando. Muita preparação. Correria. A cidade modorrenta criou vida. Maria saia do caritó e enricava de vez. Mas Maria não pensava assim. E desde quando devia pensar? A vida toda foi pra dizer amém ao pai. Não só ela, todo mundo. Pedro era um deles. Nem sabia se Pedro era capaz de fazer um filho sem ajuda de João. E Antônio? Tinha de admitir. Antônio era bom nos entretantos, mas nos finalmentes carecia de coragem. Daquele mato nunca que iria sair coelho. E então?
E a coisa ia nessa marcha. A cidade inteira apostando. Maria enfrentaria o pai? D. Finoca, a costureira apostava em Antônio, bonito e charmoso. D. Custódia, mulher do sacristão, ao contrário, acreditava que o dinheiro, com ou sem a pasmaceira do Pedro, falaria mais alto.
Os dias foram passando. Vigilancia ferrenha do João. Maria ia acompanhando o andar da carruagem, visitava a costureira, doceiras, bordadeiras. Preparativos em marcha, de vento em popa. E por que não? Maria sempre tinha sido a obediência personificada.
Aí chega o grande dia. Todo mundo enfatiotado. Noivo na porta da igreja. João estourando de orgulho com a festança. E nem sinal de Antônio. Tudo perfeito.
E toca o povo a esperar. O carro da noiva não chegava. Maria ficou se aprontando com algumas amigas. Mulher é assim mesmo. A horas passavam. Angústia. Todo mundo frenético: Maria sumiu!!
A noite já ia alta quando descobriram que o Zé da padaria também tinha sumido. A compreensão veio vindo e se instalando na moita, naqueles cérebros embotados de cidadezinha modorrenta: entre o Antônio e o Pedro havia o Zé.
Até que fazia sentido. Maria buscava pão de manhã, de tarde e de noite. 5 minutos de café. Prazo suficiente pra rolar um clima. E por que não?
Não foi o Antonio, não foi o Pedro, não foi o mordomo. Foi o Zé. Elementar, meu caro Watson!!!








Maria Solange Amado Ladeira              solangesolsal@hotmail.com         16/06/15
PIANO  PIANO
Fico eu aqui pensando com meus botões. Ou melhor, estava eu aqui matutando com meu fecho éclair, que botão sem casa não funciona, e como os recursos para o “Minha casa, minha vida” sumiram do mapa, temos que ser criativos. Talvez seja melhor matutar com um velcro, só pra ficar de bem com a era digital. Não importa, estou aqui elocubrando sobre como a vida é que nem kinder ôvo, sempre trazendo surpresinhas. Nem sempre fabulosas, mas que sempre obrigam a gente a se inquietar: posso abrir esse pacote? O que traz? Até quando? Até onde? Papo inútil, mas inevitável. O vício de se ser humano. Fazer o que?
Ontem eu botei reparo na cachorrada que a minha amiga tem em casa. Barulhentos, agitados no que parecia uma angustia existencial quase humana. Quando eu já pensava em chamar a SWAT pra botar ordem no pedaço, eis que chega a cavalaria americana na pessoa de um cara pequeno, franzino, que tem uma profissão interessante: “passeador de cachorro”. Um sumiço de uma hora e os bichos chegaram tão doces e calminhos, que estou pensando seriamente em contratar um passeador de mim.
Talvez seja essa a solução para os pruridos de inquietação que andam me sacudindo. Às vezes eles chegam como um terremoto grau 8 na escala Richter, que me fazem subir pelas paredes dessa vidinha mais ou menos normal que eu levo. Às vezes, eles se aproximam como um bradisismo, bem sensual, bem tremendinho, comendo pelas beiradinhas, como um bicho de pé invasivo, meio prazer, meio dor. Um moto contínuo de estímulos que cutucam e cutucam e não dão trégua. Vale qualquer coisa pra me livrar do incômodo; até um passeador de cachorro. Pelo menos, ele deve saber algum segredo de como acalmar espíritos conturbados.
Seja como for, não obstante eu viver às voltas com o fato de ser apenas uma mulher e não uma cachorra, de um modo geral, consigo administrar, tanto terremotos quanto bradisismos ocasionais. A coisa aperta mesmo quando isso acontece com os chamados seres inanimados. É onde chegamos. Ao piano. Eu tinha um piano. Ou melhor, o piano me tinha, porque ele já estava lá quando eu nasci. E esta é a história de um triste e angustiado fim, sem mecanismos de defesa ou um eventual  passeador de cachorros pra dar um refresco. Posso resumir assim:
Era um vez um piano, cujo, vivia num apartamento de tamanho médio, numa família de tamanho médio, de classe média, numa cidade de tamanho médio. Tudo medíocre, como já notaram. Acontece que o piano era inglês, aristocrático e acima de tudo, tinha muito talento, um belo som e sempre respondeu aos estímulos de dedos sensíveis, divinamente mancomunados com gênios como Beethoven, Mozart, Chopin. Nessa toada, nosso piano foi se acostumando a um tratamento cinco estrelas, mãos e dedos top de linha. Um tratamento refinado, seus dentes só degustavam alimentos de primeira. Champagne e paté de foie gras, com direito a biquinho e tudo.
Até que essa vida kinder ôvo veio com o tsunami surpresa e avacalhou essa trajetória de vitórias e bom gosto. As mãos que o acariciavam desapareceram subitamente. Nunca mais Bach, Beethoven, Mozart. Ocasionalmente o “bife” mal tocado, um batuque aleatório com mãos sujas, até o cachorro da família tirava uma casquinha naqueles dentes brancos/pretos e impecáveis. O tempo foi passando, os dentes maltratados foram caindo e sem a providencia de um implante, o piano ficou banguela. Sua voz emudeceu, ou melhor, perdeu a força; começou a atravessar e ser atropelado nas suas harmonias e eterna desafinações.  E eis que um dia um carroceiro passou por alí e a família, ou o que restava da família, que não sabia o que fazer com um piano desdentado e sujo, doou aquele elefante branco, não importando se sua ascendência pertencia à mais alta nobreza britânica. Triste e melancólico fim. O mesmo para objetos animados e inanimados.
É alarmante, mas é isto: se depois dessa minha experiência continuarem pensando que “piano piano si va lontano”. O buraco é mais embaixo. A moral dessa história mostra que “piano piano, de vai mesmo é ao cemitério”.




Maria Solange Amado Ladeira                        solangesolsal@hotmail.com