sexta-feira, 29 de setembro de 2017

Mamãe faz 99 anos

                                             Yacyr Anderson Freitas

com os olhos colados á janela
não parece ter mais que sete primaveras

ledo engano:
cobra notícias da tia Florinda
morta no final dos anos
30

"peça para Florinda refogar taioba pra mim
ninguém faz taioba
daquele jeito
nem maçã de peito
com aipim."

nada posso
contra meu riso
e o desmedido
de sua fome

ela me olha de um jeito esquisito
e volta a perguntar o meu nome.

sexta-feira, 22 de setembro de 2017

Menina dos olhos


                                            Fátima Fonseca
Com o tempo
as necessidades
não são mais as mesmas

o conforto vem antes da estética
a serenidade vem antes da beleza
a paz vem antes do certo
o coração está bem abaixo da cabeça
e nenhum amor
veste minhas palavras de cores
para encher os olhos.

E agora essa menina
em rasos d’água me espia e diz:
Esse sopro de lucidez não devia doer.
Mas dói.






quinta-feira, 7 de setembro de 2017

A CATADORA DE LETRAS





A CATADORA DE LETRAS*

Gláucia Maria Vasconcellos Vale

O quarto da Carolina
não era só de despejo
três quartos
eram desejo

o primeiro dos desejos
era de ser rainha
marcada em ferro de passar roupa
de muitas  casas de família
queria morar em jardins
casa de alvenaria

o segundo dos desejos
era vencer mulher
mula teimosa destemida
fêmea sem macho parideira
com liberdade
de parir

o terceiro dos  desejos
era escrever sinfonia
movimentos no lamento
dos gritos blefes bofetadas
instrumentos trapos traços 
nos cacos
de cada  dia

em seu quarto
 de despejos
Carolina catava letras
recolhia fantasias
tiradas da boca do lixo
colhia as palavras
construindo sua saga

Carolina vira latas
queria virar poesia
fome de livro e comida
galo de briga
gato de beco
chute no estômago
raio de sol

de Sacramento à São Paulo
 foi um mal pisado salto
sem eira  nem beira
comendo pão
socado pelo diabo
foi morar
no Canindé

osso duro de roer
caroço em barriga vazia

com papelão lata madeira
cuspe tormento suor
levantou
seu barraco

pelas ruas ela vaga
pelas luas suas asas
empurrando seu carrinho
separando suas peças
catando caderno velho
papel manchado retorcido
faça frio faça sol
dia de chuva ou de festa
faça luto haja luta!

catadora de papel
cata papel e miséria
cata coice
ferro velho
muita briga
carrapato
cata piolho no beco
cata pulga na cacunda
cata lenha pro fogão
cata feijão quando tem
cata arroz de muitas pedras

cata vento quando chove
cata-vento gira e solta
prende e prega
sua letra
presa no sujo do papel

catapulta

cada palavra
catada
luta transgride mistura
confundindo os motivos
busca as letras da fartura
 os caminhos da fortuna
no caldo grosso da vida
mora em um castelo cor de ouro
que reluz na luz do sol
suas roupas
são de estrelas

uma a uma
as palavras
ferem mais que mil espadas
criam os caminhos da vida
os códigos de letras
com pinceladas de dor
odores de excremento
barro podre
favela
miséria
despejadas em seu quarto

em alicerces de papel
demole as construções
pedra a pedra
para fazer
sua morada
beco a beco
berro a berro

recicla o papel usado
o papelão do barraco
o papel do favelado
revela a historia da cidade
negra e fêmea e pobre
e vive e narra e escreve
favelados deserdados
trabalhadores sofredores

tantos becos sem saída
só se sai pela culatra:
foi rosa despetalada?

Carolina de Jesus
que deixou de ser  Bibita
construiu sua morada
de mulher e de guerreira
de pedreira das palavras
construtora das letras
compositora da história
sua casa
resta intacta
sua letra
sem retoque.













segunda-feira, 4 de setembro de 2017

QUIMERAS


Já me cansa
ter esperança.

De tanta quimera desfeita
aprendi a existir de sobras,
neste tempo de quases e nuncas.

Morro
de tanto vida por viver.

Calo-me
de quanta palavra esbanjada.

Desvaneço
de tanto beijo adiado.

O meu quarto
é o mundo inteiro sem mundo.

Quem me dera ser anjo
e sentir leve a terra
sob os meus pés alados.

Quem me dera
uma casa de nascença,
quem me dera um lume de crença,
um incêndio de todos os recomeços.

Quem dera
o quarto fosse de barro tenro,
um lugar de príncipe e princípios.

No sono
em que finjo adormecer
perco a noite
e o seu balouço de sonhos.

Sob o umbral da insónia
dou de beber a anjos
que se extinguem
na poeira dos desertos

Mia Couto “Vagas e Lumes“