quarta-feira, 30 de abril de 2014

ABSOLUTA


Cristina Garcia Lopes

é essa tempestade
que não vem
que se arma oculta
sobre nós
ano após ano

essa tempestade
que dorme comigo
que mora em meu ventre
ansioso
dia após dia

não quer a tempestade
se precipitar de vez
se desatar
no céu
um laço de ferro
sobre a terra
invertida

é essa tempestade
que não vem.

segunda-feira, 21 de abril de 2014

Esta velha angústia


Álvaro de Campos
Esta velha angústia,
Esta angústia que trago há séculos em mim,
Transbordou da vasilha,
Em lágrimas, em grandes imaginações,
Em sonhos em estilo de pesadelo sem terror,
Em grandes emoções súbitas sem sentido nenhum.

Transbordou.
Mal sei como conduzir-me na vida
Com este mal-estar a fazer-me pregas na alma!
Se ao menos endoidecesse deveras!
Mas não: é este estar entre,
Este quase,
Este poder ser que...,
Isto.

Um internado num manicômio é, ao menos, alguém,
Eu sou um internado num manicômio sem manicômio.
Estou doido a frio,
Estou lúcido e louco,
Estou alheio a tudo e igual a todos:
Estou dormindo desperto com sonhos que são loucura
Porque não são sonhos.
Estou assim...

Pobre velha casa da minha infância perdida!
Quem te diria que eu me desacolhesse tanto!
Que é do teu menino? Está maluco.
Que é de quem dormia sossegado sob o teu teto provinciano?
Está maluco.
Quem de quem fui? Está maluco. Hoje é quem eu sou.

Se ao menos eu tivesse uma religião qualquer!
Por exemplo, por aquele manipanso
Que havia em casa, lá nessa, trazido de África.
Era feiíssimo, era grotesco,
Mas havia nele a divindade de tudo em que se crê.
Se eu pudesse crer num manipanso qualquer —
Júpiter, Jeová, a Humanidade —
Qualquer serviria,
Pois o que é tudo senão o que pensamos de tudo?

Estala, coração de vidro pintado!

*        *        *

sexta-feira, 18 de abril de 2014

A MÚSICA

Charles Baudelaire

A música p'ra mim tem seduções de oceano!
Quantas vezes procuro navegar,
Sobre um dorso brumoso, a vela a todo o pano,
Minha pálida estrela a demandar!

O peito saliente, os pulmões distendidos
Como o rijo velame d'um navio,
Intento desvendar os reinos escondidos
Sob o manto da noite escuro e frio;

Sinto vibrar em mim todas as comoções
D'um navio que sulca o vasto mar;
Chuvas temporais, ciclones, convulsões

Conseguem a minh'alma acalentar.
— Mas quando reina a paz, quando a bonança impera,
Que desespero horrivel me exaspera!

quinta-feira, 17 de abril de 2014

RETRATO

 CECILIA MEIRELES

Eu não tinha este rosto de hoje,
Assim calmo, assim triste, assim magro,
Nem estes olhos tão vazios,
Nem o lábio amargo.
Eu não tinha estas mãos sem força,
Tão paradas e frias e mortas;
Eu não tinha este coração
Que nem se mostra.
Eu não dei por esta mudança,
Tão simples, tão certa, tão fácil:
- Em que espelho ficou perdida
A minha face?

quarta-feira, 16 de abril de 2014

rio

      BERTOLD BRECHT
Do rio que tudo arrasta se
diz que é violento
Mas ninguém diz violentas as
margens que o comprimem.

                                               

terça-feira, 15 de abril de 2014

necessidade...

Fátima Fonseca
pressa, 
vaidade, 
necessidade de ser reconhecido,
necessidade de ser amado, 
necessidade de comer palavras,
esse tal desamparo, 
essa tal necessidade.
necessidade...necessidade...
 “eta vida besta, meu Deus.” 
Não é Drummond?

sábado, 12 de abril de 2014

minha infância na roça.


Fátima Fonseca

o coaxar dos sapos
o canto solitário dos grilos
piados, berros  e latidos 
cortando o silencio
vento que entrava pelas frestas
apagando o fogo trêmulo das lamparinas
tenho comigo o medo das noites escuras.

minha avó serena e segura catava feijão
numa peneira a beira do fogão.

às vezes me faço alheia e forte
como era minha avó

outras vezes, porém
basta um grito,
uma sirene
um noticiário ruim
ou até mesmo um dia nublado e sem sol
para me abandonar ao medo
e escancará as portas e cancelas
das noites escuras da minha infância na roça.

MOMENTO

 Augusto Sérgio Bastos
 
A vida, por exemplo,
esse intervalo
de cores reticentes,
tem no ar a despedida.

Respiração discreta,
a via clara
o vinho tinto,
pouco a pouco
me ponho na ponta dos pés.

(Entre o cinza do amanhã
e o branco da espera,
me permito o azul)

A porta aberta,
o vão do tempo,
a vida apenas,
este momento.

sexta-feira, 11 de abril de 2014

A UM TI QUE EU INVENTEI


Antonio Gedeão

Pensar em ti é coisa delicada.
É um diluir de tinta espessa e farta
e o passá-la em finíssima aguada
com um pincel de marta.

Um pesar grãos de nada em mínima balança,
um armar de arames cauteloso e atento,
um proteger a chama contra o vento,
pentear cabelinhos de criança.

Um desembaraçar de linhas de costura,
um correr sobre lã que ninguém saiba e ouça,
um planar de gaivota como um lábio a sorrir.

Penso em ti com tamanha ternura
como se fosses vidro ou película de louça
que apenas com o pensar te pudesses partir.

quinta-feira, 10 de abril de 2014

SOU CALMARIA

Alexandre Tambelli 

Eu vi na minha vida
O tempo passando.
Eu vi cada desejo se dissipando
Com o mal tempo.

A tempestade perdida
Em um ato, em outro contratempo.
E da magia das gotas d'água
Apenas vi, uma ponta de mágoa.

Por que não vivi?
Se tive todo caminho.
Por que o sol eu não vi?

Porque sou a fortaleza secreta
Que do sonho, livre e sozinho
Prefere a calmaria, simples e discreta.

quarta-feira, 9 de abril de 2014

restos de mim


Fátima Fonseca
entulhados 
contidos na calçada
restos de mim
retalhos de memorias
fardos de inutilidades  
sobras de sonhos  que não existem
mortes de importâncias desfeitas
por desalegrias
por necessidades
por estupidez

esse lixo me olha de banda
só para me dizer
tu  morres todos os dias
ainda assim,  ajunta
mesmo sabendo que nada te pertente.


terça-feira, 8 de abril de 2014

Outono

Miguel Torga

Tarde pintada
Por não sei que pintor.
Nunca vi tanta cor
Tão colorida!
Se é de morte ou de vida,
Não é comigo.
Eu, simplesmente, digo
Que há fantasia
Neste dia,
Que o mundo me parece
Vestido por ciganas adivinhas,
E que gosto de o ver, e me apetece
Ter folhas, como as vinhas.


segunda-feira, 7 de abril de 2014

Victor Oliveira Mateus
Morre-se de tanta coisa
Quanto a mim morro-me de ausência
morro-me com todo este céu a cair-me por entre os dedos;
pedacinhos de memória pendurados
morro-me também...da melancolia
quando tu, sem eu saber porquê,
nem te aproximas nem acenas
ah sim, também se morre de silêncio


A MEU FAVOR


Alexandre O'Neill

A meu favor
Tenho o verde secreto dos teus olhos
Algumas palavras de ódio, algumas palavras de amor
O tapete que vai partir para o infinito
Esta noite ou uma noite qualquer

A meu favor
As paredes que insultam devagar
Certo refúgio acima do murmúrio
Que da vida corrente teime em vir
O barco escondido pela folhagem
O jardim onde a aventura recomeça.

sábado, 5 de abril de 2014

Escrita da Alma

Mario Macedo de Almeida
Com simpatia ou antipatia,
o tempo escreve cada dia...
Muito mais que os sonhos
e os nossos pensamentos...
Nossas pegadas nos celebram
e sem duvida elas nos revelam!
Indiferentes aos nossos desejos
e até mesmo o que acreditamos...
Nossas pegadas são a escrita da alma!

quinta-feira, 3 de abril de 2014

SOLETRANDO A SOLIDÃO

Ana Merij

A dor que sinto não é de vazios
Dentro de mim,
vozes - ternuras
mãos  - aquecidas
palavras - ecoantes
promessas – vidas

Dentro de mim,
um rio
uma pedra
uma trilha
uma rua
uma estrela
um apito
um trem
uma aldeia

A dor que sinto é de cheios
Dentro de mim... moradas
Carrego multidões alvoroçadas

A dor que sinto... não é de retalhos

Padeço de inteiros!

quarta-feira, 2 de abril de 2014

Sobre Partir

Álvaro de Campos  

Porque é sempre de nós que nos separamos quando deixamos alguém,
É sempre de nós que partimos quando deixamos a costa,
A casa, o campo, a margem [...]
Tudo que vimos é nós, vivemos só nós o mundo.
Não temos senão nós dentro e fora de nós,
Não temos nada, não temos nada, não temos nada...

terça-feira, 1 de abril de 2014

Quando


 Álvaro de Campos 
Heterônimo de Fernando Pessoa
Quando olho para mim não me percebo.
Tenho tanto a mania de sentir
Que me extravio às vezes ao sair
Das próprias sensações que eu recebo.

O ar que respiro, este licor que bebo,
Pertencem ao meu modo de existir,
E eu nunca sei como hei de concluir
As sensações que a meu pesar concebo.

Nem nunca, propriamente reparei,
Se na verdade sinto o que sinto. Eu
Serei tal qual pareço em mim? Serei

Tal qual me julgo verdadeiramente?
Mesmo ante as sensações sou um pouco ateu,
Nem sei bem se sou eu quem em mim sente.