segunda-feira, 30 de outubro de 2017

IMPROVISOS


                                            Sebastião Aimone Braga
    

 A palavra rolou no ar. E caiu dentro da xícara da dama de negro, vazio o olhar. Ela, leve, levantou-se da mesa e pousou uma luva sobre o livro, que, ao toque, ofereceu-se página por página.
     Saiu, então, para a noite. Com a outra luva, ainda na mão, acenou para a lua, que lhe correspondeu e cobriu toda a paisagem de prata. Choveram versos sobre seu véu. E o céu cobriu-se de rimas.

As areias e o vento
banem para longe
aquela tarde.
Aqui ainda arde
aquela chama
de quem um dia
me chamava de amor.

     

quarta-feira, 25 de outubro de 2017

Espero


Espero
Neuza Lima
você dizer baixinho
ao meu ouvido,
eu te amo.
Mesmo que nunca tenhas chegado tão perto.

Espero
você pegar-me pela mão
dançar comigo aquela valsa
em minha festa de quinze anos.
Mesmo que nunca tenha havido a festa.

Espero
você deitar-se comigo naquela grama do jardim
mostrar-me o cruzeiro do sul, as três marias.
Mesmo que nunca tenha havido um jardim em nossas vidas

Espero
você me dizer
aquelas doces palavras molhadas de saliva.
Mesmo que nunca tenhas me beijado.

Espero
você atravessar a rua,
vir em minha direção,
feliz por reencontrar-me.
Mesmo que nunca tenhas me visto

Espero
aquela carta
escrita à mão em bico de pena,
entregue pelo carteiro,
no momento exato
em que estou à porta.
Mesmo que nunca soubesses onde moro.

Nosso amor é esperança.
Mesmo que eu o quisesse verdadeiro.

quarta-feira, 18 de outubro de 2017


Tantos eus alí
fiquei presa entre estrelas
um piscar de mim

                                       Fatima Fonseca


                                 Fatima  Fonseca
assim...
sonolenta e espreguiçando
entre as dobras e traças
cantinho de uma caixinha
sou poema inacabado 
fragmentado
batalha perdida.
O que diria a senhora esperança?


grande Buscaglia!!!!!

“... A folha se descobriu a perder a cor, a ficar cada vez mais frágil. Havia sempre frio e a neve pesava sobre ela.
E quando amanheceu veio o vento que arrancou a folha de seu galho. Não doeu. Ela sentiu que flutuava no ar, muito serena.
E, enquanto caía, ela viu a árvore inteira pela primeira vez.
Como era forte e firme! Teve certeza de que a árvore viveria por muito tempo, compreendeu que fora parte de sua vida. E isso deixou-a orgulhosa.
A folha pousou num monte de neve. Estava macio, até mesmo aconchegante. Naquela nova posição, a folha estava mais confortável do que jamais se sentira. Ela fechou os olhos e adormeceu. Não sabia que a folha que fora, seca e aparentemente inútil, se ajuntaria com água e serviria para tornar a árvore mais forte. E, principalmente, não sabia que ali, na árvore e no solo, já havia planos para novas folhas na primavera.
Leo Buscaglia

lições de Aninha

                                           Fátima Fonseca

Entre mim e você
uma cabocla velha de mau olhado,
ancorada ao pé do borralho.
As lavadeiras dos rios.
A menina roceira pés descalços.

Entre mim e você
séculos de existências.
A dureza do cerrado,
trincado pela seca
queimado pelo fogo,
calcinado e renascido.
Que é a existência humana.

Um tacho de melado entre mim e você
doce que me sacode
em losangos versos.
Sou eu esse poema
ajoelhado em seu tabuleiro
mendigando um pedaço de palavra.
que agora mesmo
atravessou a ponte
passou pelo seu olhar cândido
na tentativa de tocar o infinito.
e fazer da vida efêmera
poesia.


domingo, 15 de outubro de 2017

chuva







“Senhor, que minha humildade
seja como a chuva desejada
caindo mansa,
numa terra sedenta
e num telhado velho.” Cora Coralina

sexta-feira, 13 de outubro de 2017

jacintos





"Aromas de jacintos me infinitam."


A Manoel de Barros, ensinador de ignorâncias)


                                                        Mia Couto

Estou sem texto, enriquecido de nada. Aqui, na margem da floresta, me desbicho sem vontades para humanidades. Entendo só de raízes, vésperas de flôr. Me comungo de térmites, socorrido pela construção do chão. No último suspiro do poente é que podem existir todos sóis. Essa é minha hora: me ilimito a morcego. Já não me pesam cidades, o telhado deixa de estar suspenso ao inverso em minhas asas. Me lanço nessa enseada de luz, vermelhos desocupados pelo dia. Nesse entardecer de tudo vou empobrecendo de palavras. Não tenho afilhamento com o papel, estou pronto para ascender a humidade, simples desenho de ausência. Na tenda onde me resguardo me chegam, soltas e díspares, desvisões, pensatempos, proesias. Assim, em miudádivas a Manoel de Barros, meu ensinador de ignorâncias:

A primavera cabe dentro do grilo.
Cigarras se alfabetizam de silêncios.
No liso da parede,
a osga se prepara para transparências,
ganhando a forma do nada.
Enquanto o ramo
vai transitando para camaleão
a aranha confunde madrugada com sotão.
Na mafurreira,
sobem ninhos de arribação, ovos do arco-íris.
Minha tenda se engrandece em teia.
A mosca se inadverte na armadilha.
Igual o amor
que me rouba artes de viver.
Formigas transportam
infinitamente a terra.
Estarão mudando
eternamente de planeta ?
Estarão engolindo o mundo ?
Insectos sonham ser olhados pelo sol.
Mas só a chama da vela os vê.
Já o ovo é iluminado por dentro,
tocado pela luz do infinito.
O ovo repete o estreante início,
a redundante gravidez do mundo.
Por isso, este surpreendido ovo
não tem competência para meu jantar.
Pena o estomago não entender poesias.

Nada se parece tanto: poente e amanhecer.
Defeitos na tela do firmamento?
Instantâneas aves,
andorinheiras, pedras que se despoentam.
A noite acende o escuro.
Tudo semelha tudo.
Só a coruja atrapalha a eternidade.

Está chovendo horas,
a água está a ganhar-me semelhanças.
Escuto ventos, derrames de céu.
Parecem-me luas e são lábios.
A tua boca me ilude, sou culpado de teu corpo.
Saudade: sou mais tu que tu.

Escuto, depois, a enchente.
Longe, a água desobedece a paisagens.
O rio toma banho de troncos,
raízes da água se soltam.
Sigo de catarata, luz encharcada.
E peço desculpa à margem:
desconhecia as unhas de minha transbordância.

Meu sonho está cego para razões.
Sei só escrever palavras que não há.
O sono me encaracola:
estou a ser pensado por pedras,
me habilito a chão, o desfuturo.

Mia Couto


UM ABRAÇO PARA MANOEL



Dizem que entre nós
há oceanos e terras com peso de distância.
Talvez. Quem sabe de certezas não é o poeta.
O mundo que é nosso
é sempre tão pequeno e tão infindo
que só cabe em olhar de menino.

Contra essa distância
tu me deste uma sabedora desgeografia
e engravidando palavra africana
tornei-me tão vizinho
que ganhei intimidades
com a barriga do teu chão brasileiro.

E é sempre o mesmo chão,
a mesma poeira nos versos,
a mesma peneira separando os grãos,
a mesma infância nos devolvendo a palavra
a mesma palavra devolvendo a infância.

E assim,
sem lonjura,
na mesma água
riscaremos a palavra
que incendeia a nuvem.

MIA COUTO


Ele era um andarilho
Ele tinha um olhar cheio de sol

Ele sempre me pareceu a liberdade em trapos
O silêncio honrava a sua vida.
Manoel de Barros
As coisas jogadas fora por motivo de traste
São alvo da minha estima
Prediletamente latas.
Latas são pessoas léxicas pobres porém concretas.
Se você jogar na terra uma lata por motivo de
Traste: mendigos, cozinheiras ou poetas podem pegar.
[...]
Eu queria que os trastes iluminassem.
Que os trastes iluminassem.
(BARROS, 2004l)

sou eu que invento minhas doenças. Mas eu, velho e sozinho, o
que posso fazer? Estar doente é minha única maneira de provar
que estou vivo. É por isso que frequento o hospital, vezes e vezes, a
exibir minhas maleitas. Só nesses momentos, doutor, eu sou atendido.
Mal atendido, quase sempre. Mas nessa infinita fila de espera, me vem
a ilusão de me vizinhar do mundo. Os doentes são a minha família, o
hospital é o meu tecto e o senhor é o meu pai, pai de todos os meus
pais. (COUTO, 2009, ).

O segredo


                                                 Francisco Miguel Moura

Foi ontem mesmo a cena que componho,
me está presente, e ainda sou feliz.
Aconteceu-me a mim como aprendiz
do amor, aquele que me quero e imponho.


Posso contá-la? Nem de pé me ponho!
Tinha um jovem feitiço e o olhar contente,
uma fenda entre os dois dentes da frente
e o seio farto entremostrando o sonho...


Logo tomou-me as mãos, deu-me um sorriso.
Lembrando, então, de antiga namorada,
beijei-lhe o rosto, sem perder o juízo.


E ela abraçou-me acarinhando a tez...
Hoje relembro a cena apaixonada
como se houvesse uma segunda vez.

segunda-feira, 9 de outubro de 2017

Suicídio de uma poeta



Enigmático: fruta temporão
estranhável, diferente, rara
nem sempre colhida
até o destino recebe-la caída.

"O mundo quer me mal,
porque ninguém
tem asas como eu tenho!”
disse Florbela Espanca.

Ainda sobre o tempo
e cada coisa no seu tempo
penso no sofrimento
dos que nasceram
cem anos a frente de sua época.

Ninguém é mesmo tão suficiente
dias e noites entrelaçam
e que nenhum poeta morra por isso
rompendo com seu próprio tempo de partida. 
                                                                                Fátima Fonseca