Mia Couto
Estou
sem texto, enriquecido de nada. Aqui, na margem da floresta, me desbicho sem
vontades para humanidades. Entendo só de raízes, vésperas de flôr. Me comungo
de térmites, socorrido pela construção do chão. No último suspiro do poente é
que podem existir todos sóis. Essa é minha hora: me ilimito a morcego. Já não
me pesam cidades, o telhado deixa de estar suspenso ao inverso em minhas asas.
Me lanço nessa enseada de luz, vermelhos desocupados pelo dia. Nesse entardecer
de tudo vou empobrecendo de palavras. Não tenho afilhamento com o papel, estou
pronto para ascender a humidade, simples desenho de ausência. Na tenda onde me
resguardo me chegam, soltas e díspares, desvisões, pensatempos, proesias.
Assim, em miudádivas a Manoel de Barros, meu ensinador de ignorâncias:
A
primavera cabe dentro do grilo.
Cigarras
se alfabetizam de silêncios.
No liso
da parede,
a osga
se prepara para transparências,
ganhando
a forma do nada.
Enquanto
o ramo
vai
transitando para camaleão
a
aranha confunde madrugada com sotão.
Na mafurreira,
sobem
ninhos de arribação, ovos do arco-íris.
Minha
tenda se engrandece em teia.
A mosca
se inadverte na armadilha.
Igual o
amor
que me
rouba artes de viver.
Formigas
transportam
infinitamente
a terra.
Estarão
mudando
eternamente
de planeta ?
Estarão
engolindo o mundo ?
Insectos
sonham ser olhados pelo sol.
Mas só
a chama da vela os vê.
Já o
ovo é iluminado por dentro,
tocado
pela luz do infinito.
O ovo
repete o estreante início,
a
redundante gravidez do mundo.
Por
isso, este surpreendido ovo
não tem
competência para meu jantar.
Pena o
estomago não entender poesias.
Nada se
parece tanto: poente e amanhecer.
Defeitos
na tela do firmamento?
Instantâneas
aves,
andorinheiras,
pedras que se despoentam.
A noite
acende o escuro.
Tudo
semelha tudo.
Só a
coruja atrapalha a eternidade.
Está
chovendo horas,
a água
está a ganhar-me semelhanças.
Escuto
ventos, derrames de céu.
Parecem-me
luas e são lábios.
A tua
boca me ilude, sou culpado de teu corpo.
Saudade:
sou mais tu que tu.
Escuto,
depois, a enchente.
Longe,
a água desobedece a paisagens.
O rio
toma banho de troncos,
raízes
da água se soltam.
Sigo de
catarata, luz encharcada.
E peço
desculpa à margem:
desconhecia
as unhas de minha transbordância.
Meu
sonho está cego para razões.
Sei só
escrever palavras que não há.
O sono
me encaracola:
estou a
ser pensado por pedras,
me
habilito a chão, o desfuturo.
Mia
Couto
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