segunda-feira, 31 de março de 2014

domingo, 30 de março de 2014

MEU VELEIRO


Licínia Quitério

Tenho um veleiro amarrado na varanda do olhar. Solto-o no odor salgado das tardes de verão e fico a vê-lo sorrir enquanto cavalga ondas meninas. Elegante e ágil esta nau de inventos, navegando à vista de todas as praias. Sabe de cor seu tempo de passeio, no verso e reverso da rota que traçou. Quando relembro a hora, ele regressa, revigorado, à sua amarração, seu cais, seu porto, seu país. Flor do Mar, meu veleiro, minha terra firme, minha única viagem.

sábado, 29 de março de 2014

DESCUIDADO


Ademir Antonio Bacca

tantas vezes abri a mala
no meio da rua
em busca de alguma coisa tua

uma fotografia
um bilhete
um objeto esquecido
ao acaso

mas,
descuidado,
toda vez
que abro a mala
no meio da rua
sempre me foge
alguma coisa
tua

sexta-feira, 28 de março de 2014

TALVEZ QUE SEJA A BRISA


Fernando Pessoa
Talvez que seja a brisa
Que ronda o fim da estrada,
Talvez seja o silêncio,
Talvez não seja nada...

Que coisa é que na tarde
Me entristece sem ser?
Sinto como se houvesse
Um mal que acontecer.

Mas sinto o mal que vem
Como se já passasse...
Que coisa é que faz isto
Sentir-se e recordar-se?

terça-feira, 25 de março de 2014

Manoel de Barros
Chove torto no vão das árvores.
Chove nos pássaros e nas pedras.
O rio ficou de pé e me olha pelos vidros.
Alcanço com as mãos o cheiro dos telhados.
Um tordo avisou que é Março"

segunda-feira, 24 de março de 2014

DESPEDIDAS


Affonso Romano de Sant'Anna

Começo a olhar as coisas
como quem, se despedindo, se surpreende
com a singularidade
que cada coisa tem
de ser e estar.

Um beija-flor no entardecer desta montanha
a meio metro de mim, tão íntimo,
essas flores às quatro horas da tarde, tão cúmplices,
a umidade da grama na sola dos pés, as estrelas
daqui a pouco, que intimidade tenho com as estrelas
quanto mais habito a noite!

Nada mais é gratuito, tudo é ritual
Começo a amar as coisas
com o desprendimento que só têm
os que amando tudo o que perderam
já não mentem.

domingo, 23 de março de 2014


Márcia Sartorelo
Minha primeira casa - os braços de minha mãe
os laços - tantos.
Minha primeira casa - nos traços de minha mão
os espaços - brancos.

sexta-feira, 21 de março de 2014

Reciclo

      
Maria Sílvia Vargas Boaventura 

No coffee shop
encharcada  de inverno e verão
ela  pede um chá morno

O moço da Ásia
túnica  amarelo ouro
olhos  doces e amendoados
varre toda a melancolia
e  matéria gasta
num país tão frio

Ela se veste de folhas caídas
engole  o outono
e  parte para o seu dia brasileiro.

                                                               

quinta-feira, 20 de março de 2014

hoje começa o outono, para ser preciso às 13h57min. segue um poema outonal:


Ronald Claver
o outono é um concerto
que oscila entre o verde
e o vento
é música que se guarda
na pauta do coração
aragem tardia caindo
no abril dos cabelos
desfolhando os sonhos
que ficaram no vento. 

A RENDEIRA


Adriano Espínola

Na teia da manhã que se desvela
a rendeira compõe seu labirinto,
movendo sem saber e por instinto
a rede dos instantes numa tela
Ponto a ponto, paciente, tenta ela
traçar no branco linho mais distinto
a trama de um desenho tão sucinto
como a jornada humana se revela.

Em frente, o mar desfia a eternidade
noutra tela de espuma e esquecimento
enquanto, entrelaçado, o pensamento
costura sobre o sonho a realidade.

Em que perdida tela mais extrema
foi tecida a rendeira e este poema?

quarta-feira, 19 de março de 2014

ANOITECER

A Dolores

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
É a hora em que o sino toca,
mas aqui não há sinos;
há somente buzinas,
sirenes roucas, apitos
aflitos, pungentes, trágicos,
uivando escuro segredo;
desta hora tenho medo.

É a hora em que o pássaro volta,
mas de há muito não há pássaros;
só multidões compactas
escorrendo exaustas
como espesso óleo
que impregna o lajedo;
desta hora tenho medo.

É a hora do descanso,
mas o descanso vem tarde,
o corpo não pede sono,
depois de tanto rodar;
pede paz — morte — mergulho
no poço mais ermo e quedo;
desta hora tenho medo.

Hora de delicadeza,
gasalho, sombra, silêncio.
Haverá disso no mundo?
É antes a hora dos corvos,
bicando em mim, meu passado,
meu futuro, meu degredo;
desta hora, sim, tenho medo.


terça-feira, 18 de março de 2014

Todas as manhãs...


Omar Kháyyám  
Todas as manhãs, 
o orvalho pesa sobre as tulipas, 
os jacintos e as violetas, 
até que o sol venha aliviá-los desse belo fardo.
 Todas as manhãs, 
sinto o coração mais pesado no meu peito, 
mas logo o seu olhar dissipa a mina tristeza.

segunda-feira, 17 de março de 2014

A Edgard Allan Poe

  Fátima Fonseca
Um enigmático corvo
despena  versos no outono dos meus olhos

negreja o verbo
 provoca um remoer de assombro e magia
ela morre...tu morres...eu morro...

justo hoje,
que  uma espécie de medo me subtrai

aliás, agora dei para ensimesmar-me
com a brevidade da vida
ou melhor com  a morte

asas levantam voos
não! não é mau presságio
 beleza e  Poe-sia


“há de ser isso e nada mais “

O CORVO (tradução de Machado de Assis)


Edgar Allan Poe
Em certo dia, à hora
Da meia-noite que apavora,
Eu, caindo de sono e exausto de fadiga,
Ao pé de muita lauda antiga,
De uma velha doutrina agora morta,
Ia pensando, quando ouvi à porta
Do meu quarto um soar devagarinho,
E disse estas palavras tais:
"É alguém que me bate à porta de mansinho;
Há de ser isso e nada mais".
Ah! bem me lembro! bem me lembro!
Era no glacial dezembro;
Cada brasa do lar sobre o colchão refletia
A sua última agonia.
Eu ansioso pelo Sol, buscava
Sacar daqueles livros que estudava
Repouso (em vão!) à dor esmagadora
Destas saudades imortais
Pela que ora nos céus anjos chamam Lenora,
E que ninguém chamará mais.

E o rumor triste, vago, brando
Das cortinas ia acordando
Dentro em meu coração um rumor não sabido,
Nunca por ele padecido.
Enfim, por aplacá-lo aqui, no peito,
Levantei-me de pronto, e "Com efeito,
(Disse), é visita amiga e retardada
"Que bate a estas horas tais.
"É visita que pede à minha porta entrada:
"Há de ser isso e nada mais".

Minh'alma então sentiu-se forte;
Não mais vacilo, e desta sorte
Falo: "Imploro de vós - ou senhor ou senhora,
Me desculpeis tanta demora.
"Mas como eu, precisando de descanso
"Já cochilava, e tão de manso e manso,
"Batestes, não fui logo, prestemente,
"Certificar-me que aí estais".
Disse; a porta escancar, acho a noite somente,
somente a noite, e nada mais.

Com longo olhar escruto a sombra
Que me amedronta, que me assombra.
E sonho o que nenhum mortal há já sonhado,
Mas o silêncio amplo e calado,
Calado fica; a quietação quieta;
Só tu, palavra única e dileta,
Lenora, tu, com um suspiro escasso,
Da minha triste boca sais;
E o eco, que te ouviu, murmurou-te no espaço;
Foi isso apenas, nada mais.

Entro co'a alma incendiada.
Logo depois outra pancada
Soa um pouco mais forte; eu, voltando-me a ela:
"Seguramente, há na janela
Älguma coisa que sussurra. Abramos,
"Eia, fora o temor, eia, vejamos
"A explicação do caso misterioso
Dessas duas pancadas tais,
"Devolvamos a paz ao coração medroso,
"Obra do vento, e nada mais".

Abro a janela, e de repente,
Vejo tumultuosamente
Um nobre corvo entrar, digno de antigos dias.
Não despendeu em cortesias
Um minuto, um instante. Tinha o aspecto
de um lord ou de uma lady. E pronto e reto,
Movendo no ar as suas negras alas,
Acima voa dos portais,
Trepa, no alto da porta em um busto de Palas:
Trepado fica, e nada mais.

Diante da ave feia e escura,
Naquela rígida postura,
Com o gosto severo, - o triste pensamento
Sorriu-me ali por um momento,
E eu disse: "Ó tu que das noturnas plagas
"Vens, embora a cabeça nua tragas,
"Sem topete, não és ave medrosa,
"Dize os teus nomes senhoriais;
"Como te chamas tu na grande noite umbrosa?"
E o corvo disse: "Nunca mais".

Vendo que o pássaro entendia
A pergunta que eu lhe fazia,
Fico atônito, embora a resposta que dera
Dificilmente lha entendera.
Na verdade, jamais homem há visto
Coisa na terra semelhante a isto:
Uma ave negra, friamente posta
Num busto, acima dos portais,
Ouvir uma pergunta a dizer em resposta
Que este é seu nome: "Nunca mais".

No entanto, o corvo solitário
Não teve outro vocabulário.
Como se essa palavra escassa que ali disse
Toda sua alma resumisse,
Nenhuma outra proferiu, nenhuma.
Não chegou a mecher uma só pluma,
Até que eu murmurei: "Perdi outrora
"Tantos amigos tão leais!
"Perderei também este em regressando a aurora".
E o corvo disse: "Nunca mais!"

Estremeço. A resposta ouvida
É tão exata! é tão cabida!
"Certamente, digo eu, essa é toda a ciência
"Que ele trouxe da convivência
"De algum mestre infeliz e acabrunhado
"Que o implacável destino há castigado
"Tão tenaz, tão sem pausa, nem fadiga,
"Que dos seus cantos usuais
"Só lhe ficou, na amarga e última cantiga,
"Esse estribilho: "Nunca mais".

Segunda vez nesse momento
Sorriu-me o triste pensamento;
Vou sentar-me defronte ao corvo magro e rudo;
E, mergulhando no veludo
Da poltrona que eu mesmo ali trouxera,
Achar procuro a lúgubre quimera,
A alma, o sentido, o pávido segredo
Daquelas sílabas fatais,
Entender o que quis dizer a ave do medo
Grasnando a frase: "Nunca mais".

Assim pôsto, devaneando,
Meditando, conjeturando,
Não lhe falava mais; mas, se lhe não falava,
Sentia o olhar que me abrasava.
Conjeturando fui, tranqüilo, a gosto,
Com a cabeça no macio encosto
Onde os raios da Lâmpada caíam,
Onde as tranças angelicais
De outra cabeça outrora ali se desparziam
E agora não se esparzem mais.

Supus então que o ar, mais denso,
Todo se enchia de um incenso,
Obra de serafins que, pelo chão roçando
Do quarto, estavam meneando
Um ligeiro turíbulo invisível:
E eu exclamei então: "Um Deus sensível
"Manda repouso à dor que te devora
"Destas saudades imortais.
"Eia, esquece, eia, olvida essa extinta Lenora".
E o corvo disse: "Nunca mais".

"Profeta, ou o que quer que sejas!
"Ave ou demônio que negrejas!
"Profeta sempre, escuta: Ou venhas tu do inferno
"Onde reside o mal eterno,
"Ou simplesmente náufrago escapado
"Venhas do temporal que te há lançado
"Nesta casa onde o Horror, o Horror profundo
"Tem os seus lares triunfais,
"Dize-me: existe acaso um bálsamo no mundo?"
E o corvo disse: "Nunca mais".

"Profeta, ou o que quer que sejas!
"Ave ou demônio que negrejas!
"Profeta sempre, escuta, atende, escuta, atende!
"Por esse céu que além se estende,
"Pelo Deus que ambos adoramos, fala,
"Dize a esta alma se é dado inda escutá-la
"No Éden celeste a virgem que ela chora
"Nestes retiros sepulcrais,
"Essa que ora nos céus anjos chamam Lenora!"
E o corvo disse: "Nunca mais!"

"Ave ou demônio que negrejas!
"Profeta, ou o que quer que sejas!
"Cessa, ai, cessa! (clamei, levantando-me) cessa!
"Regressando ao temporal, regressa
"À tua noite, deixa-me comigo...
"Vai-te, não fique no meu casto abrigo
"Pluma que lembre essa mentira tua.
"Tira-me ao peito essas fatais
"Garras que abrindo vão a minha dor já crua"
E o corvo disse: "Nunca mais".

E o corvo aí fica; ei-lo trepado
No branco mármore lavrado
Da antiga Palas; ei-lo imutável, ferrenho.
Parece, ao ver-lhe o duro cenho,
Um demônio sonhando. A luz caída
Do lampião sobre a ave aborrecida
No chão espraia a triste sombra; e fora
Daquelas linhas funerais
Que flutuam no chão, a minha alma que chora
Não sai mais, nunca, nunca mais!
Edgar Allan Poe

Monica de Aquino
O peixe que ontem
sugava transparências
amanheceu morto de excesso.
A morte é leve
e pesa a superfície.

Encheu-se o aquário
de vazios
e rastros esparsos sobre o vidro
confundem memória e silêncio.

O peixe que ontem
mastigava a ausência
destilou-me a espera.
A vida breve
dispensa a superfície.

Encheram-se de vazios
os meus restos –
iscas dispersas entre as águas
confetes que não me alimentam.

O peixe que ontem
distraia o absurdo
enfeitou amor e luto.

A vida é febre
e ferve, e agora
é recriar o aquário oculto
limpar vidro, excesso
líquido.

Limpar o peixe: comê-lo;
e transbordar
o vazio.

sexta-feira, 14 de março de 2014

Guardar

Antonio Cícero

Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.
Em cofre não se guarda coisa alguma.
Em cofre perde-se a coisa à vista.
Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por
admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.
Guardar uma coisa é vigiá-la,,isto é, fazer vigília por
ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela,
isto é, estar por ela e ser por ela.
Por isso melhor se guarda o voo de um pássaro
Do que um pássaro sem voos.
Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica,
por isso se declara e declama um poema:
Para guardá-lo:
Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:
Guarde o que quer que guarda um poema:
Por isso o lance do poema:
Por guardar-se o que se quer guardar.

DIÁLOGO


A Morte disse ao homem: - Cinza e nada,

Eis o que forma a tua humana essência,

Que se destina à vala da indigência,

Que se te abre ao termo da jornada...

Hás de voltar à terra amontoada

Com os teus sonhos desfeitos sem clemência,

Silenciando a voz da consciência,

Que, em ti, sempre viveu atormentada...

Porém falou a Vida ao homem triste:

- És imortal, e tudo quanto existe

Há de existir por toda a eternidade...

Nenhuma luta sobre a Terra é vã

E nada vive sem ter amanhã

Para a glória do Amor e da Verdade!...

Antero de Quental

Estrabismo


Numa noite sombria e de tristeza,

Mais escura que o abismo mais escuro,

Tomou conta de mim tal incerteza,

Que planeei descanso prematuro...

Deixando-me levar à correnteza

De desespero tormentoso e duro,

Cedi à tentação e, sem nobreza,

Fugi à vida em gesto que esconjuro.

Mas a morte ansiada era egoísmo,

Fruto, talvez, de crônico estrabismo,

Com que sempre fitei a própria imagem...

Pois a dor de ninguém é dor maior

Do que a dor de quem sofre ao derredor

E prossegue vivendo com coragem!...

Florbela Espanca

(Soneto recebido pelo médium Carlos A. Baccelli, em reunião

pública realizada no Núcleo Familiar Espírita "Mentor Amigo")

Sombra e Luz



Sombra e Luz
Vem a noite, volta o dia,
Cresce o broto, nasce a flor,
Vai a dor, surge a alegria
Dourando a manhã do Amor.
Assim, depois da amargura
Que a vida terrena traz,
A alma encontra na Altura
A luz, a ventura e a paz.
Xavier Francisco Cândido

Poema à boca fechada


José Saramago
Não direi:
Que o silêncio me sufoca e amordaça.
Calado estou, calado ficarei,
Pois que a língua que falo é de outra raça.

Palavras consumidas se acumulam,
Se represam, cisterna de águas mortas,
Ácidas mágoas em limos transformadas,
Vaza de fundo em que há raízes tortas.

Não direi:
Que nem sequer o esforço de as dizer merecem,
Palavras que não digam quanto sei
Neste retiro em que me não conhecem.

Nem só lodos se arrastam, nem só lamas,
Nem só animais bóiam, mortos, medos,
Túrgidos frutos em cachos se entrelaçam
No negro poço de onde sobem dedos.

Só direi,
Crispadamente recolhido e mudo,
Que quem se cala quando me calei
Não poderá morrer sem dizer tudo.


quinta-feira, 13 de março de 2014

COMO SE COMPORTAR NA SOLIDÃO


Raquel Junqueira Guimarães

E justo ali
onde a estrada ia desaparecendo como no filme de Carlitos,
onde a noite ia se despedindo
onde a solidão ia se esquecendo em sonho
Justo ali
como no fim de um arco-íris
a lua se curvou diante de nós, não toda,
como tinha que ser
Meia lua
como o meio da vida de um escritor
Deixe, deixe
Tudo vai acabar numa boa
Quem sabe a meia lua por escrever
amanheça em mim uma nova escrita?


Gracias a La vida


Suzana Dumont Braga
Na entrada no ocaso,
Há gosto de alvorecer.
A vida insiste
em diversos tons do viver.

Nas travessias
Perco certezas.
Desaprendo.
Tropeço.
Me arrebento,
Invento.

Bordo,
faço e desfaço
nós.
Entrelaço linhas do tempo:
infância retornada com os netos
infindo aprendizado de ser mãe
história dos que primeiro me acolheram.

Expando-me
Em viagens ao estrangeiro
de mim.

Aconchego-me
em colo de amizades sinceras
no dedicado amor do companheiro

No meio de tudo,
Mesmo quando está escuro,
Uma teimosa alegria
acena lá no horizonte.
A vida?
É sempre por escrever.


quarta-feira, 12 de março de 2014

Para além da curva da estrada

Alberto Caeiro 
Heterónimo de Fernando Pessoa
Para Além da Curva da Estrada
Talvez haja um poço, e talvez um castelo,
E talvez apenas a continuação da estrada.
Não sei nem pergunto.
Enquanto vou na estrada antes da curva
Só olho para a estrada antes da curva,
Porque não posso ver senão a estrada antes da curva.
De nada me serviria estar olhando para outro lado
E para aquilo que não vejo.
Importemo-nos apenas com o lugar onde estamos.
Há beleza bastante em estar aqui e não noutra parte qualquer.
Se há alguém para além da curva da estrada,
Esses que se preocupem com o que há para além da curva da estrada.
Essa é que é a estrada para eles.
Se nós tivermos que chegar lá, quando lá chegarmos saberemos.
Por ora só sabemos que lá não estamos.
Aqui há só a estrada antes da curva, e antes da curva
Há a estrada sem curva nenhuma.


terça-feira, 11 de março de 2014

Mas cantam!...


Vitor Hugo
Seja como os pássaros que,
 ao pousarem, um instante,
sobre os ramos muito leves,
sentem-nos ceder,
mas cantam!
eles sabem que possuem asas.

domingo, 9 de março de 2014

A PRIMEIRA VEZ QUE ENTENDI

Affonso Romano de Sant’Anna

A primeira vez que entendi do mundo
alguma coisa
foi quando na infância
cortei o rabo de uma lagartixa
e ele continuou se mexendo.

De lá pra cá
fui percebendo que as coisas permanecem
vivas e tortas
que o amor não acaba assim
que é difícil extirpar o mal pela raiz.

A segunda vez que entendi do mundo
alguma coisa
foi quando na adolescência me arrancaram
do lado esquerdo três certezas
e eu tive que seguir em frente.

De lá pra cá
aprendi a achar no escuro o rumo
e sou capaz de decifrar mensagens
seja nas nuvens
ou no grafite de qualquer muro.

sexta-feira, 7 de março de 2014

Com licença poética

Adélia Prado
Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou tão feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
– dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.

quarta-feira, 5 de março de 2014

..você cresceu em mim


Caio Fernando Abreu
..você cresceu em mim de um jeito completamente insuspeito, assim como se você fosse apenas uma semente e eu plantasse você esperando ver uma plantinha qualquer, pequena, rala, uma avenca, talvez samambaia, no máximo uma roseira, é, não estou sendo agressivo não, esperava de você apenas coisas assim, avenca, samambaia, roseira, mas nunca, em nenhum momento essa coisa enorme que me obrigou a abrir todas as janelas, e depois as portas, e pouco a pouco derrubar todas as paredes e arrancar o telhado para que você crescesse livremente"

"Para uma avenca partindo" em "O Ovo Apunhalado"

sábado, 1 de março de 2014

Ela...

Renata Fagundes
Ela era uma mulher de fibra, guerreira
mas tinha mania de sentir o som
ouvir os tons
desnudar o corpo
e cantar em silêncio