sábado, 28 de junho de 2014

Raquel Junqueira
Eu bendigo a língua
que escreve saudade
que diz em mim sem alarde
a palavra que me quer de verdade.

terça-feira, 24 de junho de 2014

Sono das Águas

João Guimarães Rosa
Sono das Águas
Há uma hora certa,
no meio da noite, uma hora morta,
em que a água dorme. Todas as águas dormem:
no rio, na lagoa,
no açude, no brejão, nos olhos d'água.
nos grotões fundos.
E quem ficar acordado,
na barranca, a noite inteira,
há de ouvir a cachoeira
parar a queda e o choro,
que a água foi dormir...

Águas claras, barrentas, sonolentas,
todas vão cochilar.
Dormem gotas, caudais, seivas das plantas,
fios brancos, torrentes.
O orvalho sonha
nas placas da folhagem.
E adormece
até a água fervida,
nos copos de cabeceira dos agonizantes...
Ma nem todas dormem, nessa hora
de torpor líquido e inocente.
Muitos hão de estar vigiando,
e chorando, a noite toda,
porque a água dos olhos
nunca tem sono...
- João Guimarães Rosa, em 'Magma'.
Foto: Sertão, de M. Toledo

"SEGUE O TEU DESTINO"

 Ricardo Reis ( Heterônimo de F. Pessoa)

Segue o Teu Destino:
Segue o teu destino,
Rega as tuas plantas,
Ama as tuas rosas.
O resto é a sombra
De árvores alheias.

A realidade
Sempre é mais ou menos
Do que nós queremos.
Só nós somos sempre
Iguais a nós-próprios.

Suave é viver só.
Grande e nobre é sempre
Viver simplesmente.
Deixa a dor nas aras
Como ex-voto aos deuses.

Vê de longe a vida.
Nunca a interrogues.
Ela nada pode
Dizer-te. A resposta
Está além dos deuses.

Mas serenamente
Imita o Olimpo
No teu coração.
Os deuses são deuses
Porque não se pensam.



segunda-feira, 23 de junho de 2014

Yeda Prates
Teu gesto,
              sagrada
              vitória
              da loucura.
Teus passos,
              pegadas
              de luz
              pelos tempos.
Teu espírito,
              leveza
              de vôo
              de teus pássaros.
Teu amor,
              reflexo
              do olhar
              divino.

O Bocó

Manoel de Barros
“Quando o moço estava a catar caracóis e pedrinhas
na beira do rio até duas horas da tarde, ali
também Nhá Velina Cuê estava. A velha paraguaia
de ver aquele moço a catar caracóis na beira do
rio até duas horas da tarde, balançou a cabeça
de um lado para o outro ao gesto de quem estivesse
com pena do moço, e disse a palavra bocó. O moço
ouviu a palavra bocó e foi para casa correndo
a ver nos seus trinta e dois dicionários que coisa
era ser bocó. Achou cerca de nove expressões que
sugeriam símiles a tonto. E se riu de gostar. E
separou para ele os nove símiles. Tais: Bocó é
sempre alguém acrescentado de criança. Bocó é
uma exceção de árvore. Bocó é um que gosta de
conversar bobagens profundas com as águas. Bocó
é aquele que fala sempre com sotaque das suas
origens. É sempre alguém obscuro de mosca. É
alguém que constrói sua casa com pouco cisco.
É um que descobriu que as tardes fazem parte de
haver beleza nos pássaros. Bocó é aquele que
olhando para o chão enxerga um verme sendo-o.
Bocó é uma espécie de sânie com alvoradas. Foi
o que o moço colheu em seus trinta e dois
dicionários. E ele se estimou”.

domingo, 22 de junho de 2014

António Gedeão
... Quero dormir e sonhar
um sonho que em cor me afogue:
verdes e azuis de Renoir
amarelos de Van Gogh. ...

sexta-feira, 20 de junho de 2014

quarta-feira, 18 de junho de 2014

João Guimarães Rosa.
"Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo."

terça-feira, 17 de junho de 2014

ACORDAR, VIVER

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
Como acordar sem sofrimento?
Recomeçar sem horror?
O sono transportou-me
àquele reino onde não existe vida
e eu quedo inerte sem paixão.
Como repetir, dia seguinte após dia seguinte,
a fábula inconclusa,
suportar a semelhança das coisas ásperas
de amanhã com as coisas ásperas de hoje?
Como proteger-me das feridas
que rasga em mim o acontecimento,
qualquer acontecimento
que lembra a Terra e sua púrpura
demente?
E mais aquela ferida que me inflijo
a cada hora, algoz
do inocente que não sou?
Ninguém responde, a vida é pétrea.

©
João Guimarães Rosa
"Alegre era a gente viver devagarinho, miudinho, não se importando demais com coisa nenhuma."

segunda-feira, 16 de junho de 2014

infancia

a lua cheia ameaçava com seu poder
e por detrás dos cercadinhos
me espiavam os lobisomens e as mulas sem cabeças.

infancia

Fátima Fonseca
os picumãs pendurados
cacheavam o escuro das noites frias
minha avó me observava com ternura.

sábado, 14 de junho de 2014

Terra natal



Fátima Fonseca
coral de jandaias 
nas laranjeiras
acordava a menina 
que dormia.

Pensar

Fernando Pessoa
Tenho tanto sentimento
Que é frequente persuadir-me
De que sou sentimental,
Mas reconheço, ao medir-me,
Que tudo isso é pensamento,
Que não senti afinal.
Temos, todos que vivemos,
Uma vida que é vivida
E outra vida que é pensada,
E a única vida que temos
É essa que é dividida
Entre a verdadeira e a errada.
Qual porém é verdadeira
E qual errada, ninguém
Nos saberá explicar;
E vivemos de maneira
Que a vida que a gente tem
É a que tem que pensar.

quarta-feira, 11 de junho de 2014

VALSINHA PARA ACORDAR MENINA

Ronald Claver
Aonde irei plantar
A saudade dos olhos
Seus?
Em que canteiro
Plantarei esses olhos
Que se perderam
Juntos aos meus?
Em que caderno
Descreverei os mistérios
Dos olhos seus?
Em que paisagem
Desenharei os traços
Desses olhos tão meus?
Oh, doce menina, já sei
Onde plantar a doçura
Dos olhos seus
Adormeça seus olhos
E os deixe dormir
Nos sonhos meus.
Adélia Prado
"O sonho encheu a noite
Extravasou pro meu dia
Encheu minha vida
E é dele que eu vou viver
Porque sonho não morre."


segunda-feira, 9 de junho de 2014

Explicação da Eternidade

 José Luís Peixoto
devagar, o tempo transforma tudo em tempo.
o ódio transforma-se em tempo, o amor
transforma-se em tempo, a dor transforma-se
em tempo.

os assuntos que julgámos mais profundos,
mais impossíveis, mais permanentes e imutáveis,
transformam-se devagar em tempo.

por si só, o tempo não é nada.
a idade de nada é nada.
a eternidade não existe.
no entanto, a eternidade existe.

os instantes dos teus olhos parados sobre mim eram eternos.
os instantes do teu sorriso eram eternos.
os instantes do teu corpo de luz eram eternos.

foste eterna até ao fim.

          José Luís Peixoto, in "A Casa, A Escuridão"

Saudade

 João Guimarães Rosa
Saudade de tudo!...
Saudade, essencial e orgânica,
de horas passadas,
que eu podia viver e não vivi!...
Saudade de gente que não conheço,
de amigos nascidos noutras terras,
de almas órfãs e irmãs,
de minha gente dispersa,
que talvez até hoje ainda espere por mim...
Saudade triste do passado,
saudade gloriosa do futuro,
saudade de todos os presentes
vividos fora de mim!...
Pressa!...
Ânsia voraz de me fazer em muitos,
fome angustiosa da fusão de tudo
sede da volta final
da grande experiência:
uma só alma em um só corpo,
uma só alma-corpo,
um só,
um!...
Como quem fecha numa gota
o Oceano
afogado no fundo de si mesmo...
- João Guimarães Rosa, em 'Magma'.

domingo, 8 de junho de 2014

Renata Fagundes
"É preciso voltar. E a gente sempre volta. Volta das férias, volta das batalhas, volta no tempo ao sentir um perfume, volta a ser criança com as crianças, volta a ser racional quando a loucura pensa que é dona da casa... A gente volta, porque voltar não é retroceder, é se reencontrar nas partidas para se descobrir em novos caminhos."



Respeite suas dores. Se as valorizar demais se tornam traumas. Se as menosprezar se transformam em fantasmas. Siga a estrada do tempo. Chega o momento, que elas cansam de te acompanhar e você nem se lembra de olhar pra trás para procurar.


sexta-feira, 6 de junho de 2014

Psicologia popular

Fátima Fonseca

“sou  pé na jaca"
"mão na massa"
"caatinga pra mim é perfume"
"a vida é dura para quem é mole”
aprendi a "levantar sacudir a poeira e dar a volta por cima"
porque, "a vida quer da gente é coragem!"

A palavra Minas


Carlos Drummond de Andrade

Minas não é palavra montanhosa
É palavra abissal
Minas é dentro e fundo
As montanhas escondem o que é Minas.
No alto mais celeste, subterrânea,
é galeria vertical varando o ferro
para chegar ninguém sabe onde.

quinta-feira, 5 de junho de 2014

É por ser mais poeta que gente que sou louco?

Fernando Pessoa
Fito-me frente a frente
E conheço quem sou.
Estou louco, é evidente,
Mas que louco é que estou?
É por ser mais poeta
Que gente que sou louco?
Ou é por ter completa
A noção de ser pouco?
Não sei, mas sinto morto
O ser vivo que tenho.
Nasci como um aborto,
Salvo a hora e o tamanho.

quarta-feira, 4 de junho de 2014

Padre Colatino


Fátima Fonseca
Saudades do Padre Colatino
grão senhor do Coração de Jesus

levava bálsamo cor e alegria
para o povoado.

suas palavras eram aguardadas
com flores, cantigas, mastros e foguetes
para jubilo de cada riso
para consolo de cada pranto.

POEMINHA DE PARVOÍCE SEM CONTA

Ronald Claver

ESTAVA ENGARAPADO QUANDO VOCÊ GROSSELHAVA.
A GIRAFA GIRAVA DENTRO DO COPO DE GIM
E A GUILHOTINA PERDEU O FIO DA NAVALHA.
TUDO GRAMÁTICA SEM SUJEITO OCULTO,
DE VEZ EM QUANDO ARRISCAVA UM OBJETO DIRETO
FOI QUANDO OLHEI O ESPELHO E TE VI TRANSPARENTE E NUA.
ERA A LUA CHEIA? NÃO, NÃO ERA.
ERA A GRAMA QUE GRAMAVA OS OLHOS
ELA NÃO ERA VERDE NEM FUSCA.
ERA UM MERCEDES E UMA MERCEDES VINDOS DE PINDA.
EM MOEDA, MÓI-SE A MANHA E A NÃNA
NÃO HÁ GLOSAS, RIMAS E LIMAS
HÁ GERALDOS , GÊMEOS E GÊNIOS,
GINAS , GENTIOS E GEMIDOS.

terça-feira, 3 de junho de 2014

Fingimento

Fernando Pessoa
Dizem que finjo ou minto
Tudo que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.
Tudo o que sonho ou passo,
O que me falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.
Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê!

Afago

Renata Fagundes

Eu queria te pedir desculpas, por minhas culpas despejadas,
por minhas palavras mau pensadas, por minhas imperfeições multiplicadas.
Sempre disse que não sei fazer de conta, transparente além da conta.
Desculpa minha falta de modos, meu jeito de falar, de andar sem jeito, é que não sei ser graciosa,
tenho dias de verso outros de prosa.
Saiba que meu lado briguento é bem carinhoso e o meu não chegue perto, possui os braços abertos.
Quando digo que aguento o tranco, que sou forte, é nesse momento que viro filhote.
Você é minha boca sorrindo, meu olhar dormindo, meu cuidado, meu ninho, com você crio asas, mudo de casa, viro passarinho.

domingo, 1 de junho de 2014

TROUXESTE OS SONHOS


José  Manuel Teixeira

Trouxeste os sonhos, a planura do ventre,
as madrugadas dos pomares.

E enquanto atravesso o itinerário das palavras,
a maciez diáfana dos teus olhos invade-me a alma,

Repenso o silêncio azulado do espanto
que amacia a rebentação das glicínias.

Lá onde moram os pinheiros mansos
e recebemos a inquietação, o tempo permanece insubmisso:

eu estarei um dia, com o meu corpo,
até à fundura íntima do infinito.