domingo, 30 de dezembro de 2012

Carlos Drummond de Andrade




Receita de Ano Novo

Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor do arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido
(mal vivido talvez ou sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser;
novo
até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens?
passa telegramas?)
Não precisa
fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar arrependido
pelas besteiras consumadas
nem parvamente acreditar
que por decreto de esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.

Para ganhar um Ano Novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.


(Discurso de primavera e algumas sombras. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1979, p. 115)

sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Sou filha do cerrado


Fátima Fonseca
sou filha do cerrado
tenho arrepiando debaixo da minha pele
o ruído da serpente rasteando arisca
nas folhas secas do cerrado

nas raízes os cupins se amontoando
nas solas dos pés o lodo das pedras escorregadias
nas cavernas dos ouvidos os estalos de gravetos
nas narinas  o cheiro de curral

presa entre os dedos uma esperança verde de liberdade.

quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Mistério




Adalgisa Nery


Há vozes dentro da noite que clamam por mim,
Há vozes nas fontes que gritam meu nome.
Minha alma distende seus ouvidos
E minha memória desce aos abismos escuros
Procurando quem chama.
Há vozes que correm nos ventos clamando por mim.
Há vozes debaixo das pedras que gemem meu nome
E eu olho para as árvores tranqüilas
E para as montanhas impassíveis
Procurando quem chama.
Há vozes na boca das rosas cantando meu nome
E as ondas batem nas praias
Deixando exaustas um grito por mim
E meus olhos caem na lembrança do paraíso
Para saber quem chama.
Há vozes nos corpos sem vida,
Há vozes no meu caminhar,
Há vozes no sono de meus filhos
E meu pensamento como um relâmpago risca
O limite da minha existência
Na ânsia de saber quem grita.



Cemitério

Moram em mim
Fundos de mares, estrelas-d'alva,
Ilhas, esqueletos de animais,
Nuvens que não couberam no céu,
Razões mortas, perdões, condenações,
Gestos de amparo incompleto,
O desejo do meu sexo
E a vontade de atingir a perfeição.
Adolescências cortadas, velhices demoradas,
Os braços de Abel e as pernas de Caim.
Sinto que não moro.
Sou morada pelas coisas como a terra das sepulturas
É habitada pelos corpos.
Moram em mim
Gerações, alegrias em embrião,
Vagos pensamentos de perdão.
Como na terra das sepulturas
Mora em mim o fruto podre,
Que a semente fecunda repetindo a vida
No sereno ritmo da Origem.
Vida e morte,
Terra e céu,
Podridão, germinação,
Destruição e criação.



terça-feira, 25 de dezembro de 2012

Pedem-me um poema





  
Pedem-me um poema,

um poema que seja inédito,

poema é coisa que se faz vendo,

como imaginar Picasso cego?



Um poema se faz vendo,

um poema se faz para a vista,

como fazer o poema ditado

sem vê-lo na folha inscrita



Poema é composição

mesmo da coisa vivida,

um poema é o que se arruma,

dentro da desarrumada vida.



Por exemplo, é como um rio,

por exemplo, um Capibaribe,

em suas margens domado

para chegar ao Recife.

 João Cabral de Melo Neto


segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Como um presente




Carlos Drummond de Andrade

Teu aniversário, no escuro,
não se comemora.

Escusa de levar-te esta gravata.
Já não tens roupa, nem precisas.
Numa toalha no espaço há o jantar,
mas teu jantar é silêncio, tua fome não come.

Não mais te peço a mão enrugada
para beijar-lhe as veias grossas.
Nem procuro nos olhos estriados
aquela interrogação: está chegando?

Em verdade paraste de fazer anos.
Não envelheces. O último retrato
vale para sempre. És um homem cansado
mas fiel: carteira de identidade.

Tua imobilidade é perfeita. Embora a chuva,
o desconforto deste chão. Mas sempre amaste
o duro, o relento, a falta. O frio sente-se
em mim que te visito. Em ti, a calma.

Como compraste calma? Não a tinhas.
Como aceitaste a noite? Madrugavas.
Teu cavalo corta o ar, guardo uma espora
de tua bota, um grito de teus lábios,
sinto em mim teu corpo cheio, tua faca,
tua pressa, teu estrondo… encadeados.

Mas teu segredo não descubro.
Não está nos papéis
do cofre. Nem nas casas que habitaste.
No casarão azul
vejo a fieira de quartos sem chave, ouço teu passo
noturno, teu pigarro, e sinto os bois
e sinto as tropas que levavas pela Mata
e sinto as eleições (teu desprezo) e sinto a Câmara
e passos na escada, que sobem,
e soldados que sobem, vermelhos,
e armas que te vão talvez matar,
mas que não ousam.
Vejo, no rio, uma canoa,
nela três homens.
“Inda que mal pergunte, o Coronel sabe nadar?
Porque esta canoa, louvado Deus, pode virar,
e sua criação nunca mais que o senhor há de encontrar.”
Tua mão saca do bolso uma coisa. Tua voz vai à frente.
“Coronel, me desculpe, não se pode caçoar?”
Vejo-te mais longe. Ficaste pequeno.
Impossível reconhecer teu rosto, mas sei que és tu.
Vem da névoa, das memórias, dos baús atulhados,
da monarquia, da escravidão, da tirania familiar.
És bem frágil e a escola te engole.
Faria de ti talvez um farmacêutico ranzinza, um doutor confuso.
Para começar: uma dúzia de bolos!
Quem disse?
Entraste pela porta, saíste pela janela
- conheceu, seu mestre? – quem quiser que conte outra,
mas tu ganhavas o mundo e nele aprenderias tua sucinta gramática,
a mão do mundo pegaria de tua mão e desenharia tua letra firme,
o livro do mundo te entraria pelos olhos e te imprimiria sua completa e clara ciência,
mas não descubro teu segredo.

É talvez um erro amarmos assim nossos parentes.
A identidade do sangue age como cadeia,
fora melhor rompê-la. Procurar meus parentes na Ásia,
onde o pão seja outro e não haja bens de família a preservar.
Por que ficar neste município, neste sobrenome?
Taras, doenças, dívidas; mal se respira no sótão.
Quisera abrir um buraco, varar o túnel, largar minha terra,
passando por baixo de seus problemas e lavouras, de eterna agência do correio,
e inaugurar novos antepassados em uma nova cidade.
Quisera abandonar-te, negar-te, fugir-te, mas curioso:
já não estás, e te sinto,
não me falas, e te converso.
E tanto nos entendemos, no escuro,
no pó, no sono.

E pergunto teu segredo.
Não respondes. Não o tinhas.
Realmente não o tinhas, me enganavas?
Então aquele maravilhoso poder de abrir garrafas sem saca-rolha,
de desatar nós, atravessar rios a cavalo, assistir, sem chorar, morte de filho,
expulsar assombrações apenas com teu passo duro,
o gado que sumia e voltava, embora a peste varresse as fazendas,
o domínio total sobre irmãos, tios, primos, camaradas, caixeiros, fiscais do governo, beatas,
[padres, médicos, mendigos, loucos mansos, loucos agitados, animais, coisas:
então não era segredo?

E tu que me dizes tanto
disso não me contas nada.

Perdoa a longa conversa.
Palavras tão poucas, antes!
É certo que intimidavas.
Guardavas talvez o amor
em tripla cerca de espinhos.
Já não precisas guardá-lo.
No escuro em que fazes anos,
no escuro,
é permitido sorrir.

domingo, 23 de dezembro de 2012

Gosto quando te calas



Pablo Neruda 
Gosto quando te calas

Gosto quando te calas porque estás como ausente,
e me ouves de longe, minha voz não te toca.
Parece que os olhos tivessem de ti voado
e parece que um beijo te fechara a boca.

Como todas as coisas estão cheias da minha alma
emerge das coisas, cheia da minha alma.
Borboleta de sonho, pareces com minha alma,
e te pareces com a palavra melancolia.

Gosto de ti quando calas e estás como distante.
E estás como que te queixando, borboleta em arrulho.
E me ouves de longe, e a minha voz não te alcança:
Deixa-me que me cale com o silêncio teu.

Deixa-me que te fale também com o teu silêncio
claro como uma lâmpada, simples como um anel.
És como a noite, calada e constelada.
Teu silêncio é de estrela, tão longinqüo e singelo.

Gosto de ti quando calas porque estás como ausente.
Distante e dolorosa como se tivesses morrido.
Uma palavra então, um sorriso bastam.
E eu estou alegre, alegre de que não seja verdade.


sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

infância


Fátima Fonseca

menina dos olhos

vó...! tem furmiguinha no bolo
problema não menina!
furmiga faz bem pras vistas

e todas formigas que comi
foram para o quintal  dos meus olhos
levar  poemas para a menina dos olhos.

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

inscrito no muro



Fátima Fonseca
Inscrito no muro

no muro carrancudo
e revestido de pedras
alguém escreveu:
Amo você!
o  sabugueiro floriu
e espichou todo
só para abraçar
as pedras aos limos esverdeados
de
esperança.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Fresta



Fernando Pessoa

Em meus momentos escuros
em que em mim não há ninguém,
e tudo é névoas e muros
quanto a vida dá ou tem;
se, um instante, erguendo a fronte
de onde em mim sou aterrado,
vejo o longínquo horizonte
cheio de sol posto ou nado;
revivo, existo, conheço,
e, ainda que seja ilusão
o exterior em que me esqueço;
nada mais quero nem peço.

Entrego-lhe o coração.

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Infância



Helena Kolody
INFÂNCIA

Aquelas tardes de Três Barras,
Plenas de sol e de cigarras!

Quando eu ficava horas perdidas
Olhando a faina das formigas
Que iam e vinham pelos carreiros,
No áspero tronco dos pessegueiros.

A chuva-de-ouro
Era um tesouro,
Quando floria.
De áureas abelhas
Toda zumbia.
Alfombra flava
O chão cobria...

O cão travesso, de nome eslavo,
Era um amigo, quase um escravo.

Merenda agreste:
Leite crioulo,
Pão feito em casa,
Com mel dourado,
Cheirando a favo.

Ao lusco-fusco, quanta alegria!
A meninada toda acorria
Para cantar, no imenso terreiro:
“Mais bom dia, Vossa Senhoria”...
“Bom barqueiro! Bom barqueiro...”
Soava a canção pelo povoado inteiro
E a própria lua cirandava e ria.

Se a tarde de domingo era tranquila,
Saía-se a flanar, em pleno sol,
No campo, recendente a camomila.
Alegria de correr até cair,
Rolar na relva como potro novo
E quase sufocar, de tanto rir!

No riacho claro, às segundas-feiras,
Batiam roupas as lavadeiras.
Também a gente lavava trapos
Nas pedras lisas, nas corredeiras;
Catava limo, topava sapos
(Ai, ai, que susto! Virgem Maria!)

Do tempo, só se sabia
Que no ano sempre existia
O bom tempo das laranjas
E o doce tempo dos figos...

Longínqua infância... Três Barras
Plena de sol e cigarras!
(Helena Kolody, in A Sombra no Rio, 1951)

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Música Submersa


Helena Kolody
Música Submersa


Não quero ser o grande rio caudaloso
Que figura nos mapas.
Quero ser o cristalino fio d’água
Que canta e murmura
Na mata silenciosa.

domingo, 16 de dezembro de 2012

Lição



Helena Kolody

A luz da lamparina dançava
frente ao ícone da Santíssima Trindade.
Paciente, a avó ensinava
a prostrar-se em reverência,
persignar-se com três dedos
e rezar em língua eslava.
De mãos postas, a menina
fielmente repetia
palavras que ela ignorava,
mas Deus entendia.

sábado, 15 de dezembro de 2012



Flora Figueiredo


Estou perdidamente emaranhada
em seus fios de delícias e doçuras.
Já não encontro o começo da meada,
não sei nem mesmo
se há uma ponta de saída,
ou se a loucura
vai num ritmo crescente
até subjugar a minha vida.
Não importa.
Quero seus nós de seda
cada vez mais cegos e apertados
a me costurar nas malhas e nos pêlos.
Enquanto você me amarra,
permanece atado
na própria trama redonda do novelo

Sentimental




Carlos Drummond Andrade



Sentimental

Ponho-me a escrever teu nome
com letras de macarrão.
No prato, a sopa esfria, cheia de escamas
e debruçados na mesa todos contemplam
esse romântico trabalho.

Desgraçadamente falta uma letra,
uma letra somente
para acabar teu nome!

- Está sonhando? Olhe que a sopa esfria!

Eu estava sonhando...
E há em todas as consciências um cartaz amarelo:
"Neste país é proibido sonhar."

sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

Enlevo



Flora Figueiredo
Enlevo
Eu olho você grande e distante
e da sua grandeza me comovo
e da sua distância me revolto.
Olho de novo.
Procuro reter em minhas mãos sua figura
mas ela gesticula, oscila e cresce
e numa inconstância distraída
no instante exato
por trás da vida desaparece.
Um desacato.
Do meu desaponto eu me levanto
pra levar embora outro desencanto
mas você me divisa e então me chama.
Me aguarda, reclama e me convida
e minha vida nessa ansiedade por fim entrego.
E nesse amor feito de espuma colorida
nós flutuamos: você borbulha, eu escorrego,
ensaboados, você explode, eu me desintegro.

Limites do Amor



Affonso Romano de SantAnna
Limites do Amor
Condenado estou a te amar
nos meus limites
até que exausta e mais querendo
um amor total, livre das cercas,
te despeça de mim, sofrida,
na direção de outro amor
que pensas ser total e total será
nos seus limites da vida.

O amor não se mede
pela liberdade de se expor nas praças
e bares, em empecilho.
É claro que isto é bom e, às vezes,
sublime.
Mas se ama também de outra forma, incerta,
e este o mistério:

- ilimitado o amor às vezes se limita,
proibido é que o amor às vezes se liberta.

Renato Rezende



Eu

Esvaziar-me
e tornar-me nada.

Viver da mesma maneira,
a mesma coisa, em barracas
ou palácios.
Ter o corpo oco, depois de cada encontro
e durante cada ato
não pensar em nada, não levar nada
para casa
não sentir nem desejo nem raiva.
Que não exista algo chamado Renato.

Nunca fazer nada.

Que Renato seja uma máscara
vazia – mas este espaço
não seja ausência, mas luminosidade.
A coisa mais pura e clara.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Carlos Ayres Britto




Feras
Nós, humanos,
Jogamos duro com os animais
Ditos comestíveis.
Se eles pudessem falar
Nos xingariam de feras.
-Carnívoros de priscas eras

Vegetariano
Sou da raça dos herbívoros.
Não espreito,
Não golpeio,
Não mato.
O desestresse é meu campeonato.

Convivência
Convivem no meu ser a criança que fui
e o adulto que sou.
O que eu não sei explicar
É se foi o adulto que não deixou a criança morrer,
Ou se foi a criança que não se deixou matar.

Sonegação
O pobre só tem de seu o próprio nome.
Quando nem pelo nome o tratamos,
Até isso lhe sonegamos.

João Fernandes de Brito
Um certo jeito de sorrir que eu tinha
até meu pai morrer,
O coveiro, descuidado,
Deixou no caixão enterrado

Promessa
Enquanto a morte não vem
eu capricho na alegria
E quando a morte vier
Capricharei nela também.
-Foi o que me prometi desde criança,
Como suprema forma de me querer bem

poemas  publicados no livro "Ópera do Silêncio".




quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Fernando Campanella




Dezembro acende as luzes
em ricos pinheiros de natal.
Mas é naquela árvore
solitária nas grotas
ou à beira da estrada
que se agregam os bem-te-vis
e tagarelam as maritacas.

Mangueiras, perobas, flamboyants -
ao pássaro tanto faz:
folhagens são mimos anônimos. 

(Eu insisto em um Deus
que se ergue em tronco
e esparrama os braços
para acolher os seus.)


terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Luljeta Lleshanaku



Quando pela primeira vez olhei uma pintura verdadeira
dei alguns passos atrás instintivamente
sobre os calcanhares
procurando o local exacto de
onde pudesse explorar sua profundidade.

Foi diferente com as pessoas:
Construi-as,
amei-as, mas não cheguei a amá-las plenamente.
Nenhuma chegou tão alto quanto o tecto azul.
Como numa casa inacabada, parecia haver uma folha de plástico por cima delas,
por vez do telhado
no princípio do outono chuvoso da minha compreensão.

LULJETA LLESHANAKU (ler Liublieta) nasceu em Elbasan, Albânia, em 1968. Cresceu sob prisão domiciliária durante a ditadura estalinista de Enver Hoxha

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Wisława Szymborska



Nada duas vezes

Duas vezes nada acontece
nem acontecerá. E assim sendo,
nascemos sem prática
e sem rotina vamos morrendo.

Nesta escola que é o mundo,
mesmo os piores
nunca repetirão
nenhum inverno, nenhum verão.

Os dias não podem ser repetidos,
não há duas noites iguais,
não há beijos parecidos,
não se troca o mesmo olhar.

Ontem, o teu nome
em voz alta pronunciado
foi como se uma rosa
me tivessem atirado.

Hoje, ao teu lado,
voltei a cara para a parede.
Rosa? O que é uma rosa?
Será flor? Talvez rocha?

Porque tu, ó má hora,
me trazes a vã tristeza?
Se és, tens de passar.
Passarás - e daí a tua beleza.

Abraçados, enlevados,
tentaremos vencer a mágoa,
mesmo sendo diferentes
como duas gotas de água.

*************************

Prefiro cinema.
Prefiro os gatos.
Prefiro os carvalhos nas margens do Warta.
Prefiro Dickens a Doistoievski.
Prefiro-me gostando dos homens
em vez de estar amando a humanidade.
Prefiro ter uma agulha preparada com a linha.
Prefiro a cor verde.
Prefiro não afirmar
que a razão é culpada de tudo.
Prefiro as excepções.
Prefiro sair mais cedo.
Prefiro conversar com os médicos sobre outra coisa.
Prefiro as velhas ilustrações listradas.
Prefiro o ridículo de escrever poemas
ao ridículo de não escrever.
No amor prefiro os aniversários não redondos
para serem comemorados cada dia.
Prefiro os moralistas,
que não prometem nada.
Prefiro a bondade esperta à bondade ingénua demais.
Prefiro a terra à paisana.
Prefiro os países conquistados aos países conquistadores.
Prefiro ter abjecções.
Prefiro o inferno do caos ao inferno da ordem.
Prefiro contos de fada de Grimm às manchetes de jornais.
Prefiro as folhas sem flores às flores sem folhas.
Prefiro os cães com o rabo não cortado.
Prefiro os olhos claros porque os tenho escuros.
Prefiro as gavetas.
Prefiro muitas coisas que aqui não disse,
e outras tantas não mencionadas aqui.
Prefiro os zeros à solta
a tê-los numa fila junto ao algarismo.
Prefiro o tempo do insecto ao tempo das estrelas.
Prefiro isolar.
Prefiro não perguntar quanto tempo ainda e quando.
Prefiro levar em consideração até a possibilidade
do ser ter a sua razão.

Wislawa Szymborska

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Florbela Espanca



A vida é sempre a mesma para todos: rede de ilusões e desenganos. O quadro é único, a moldura é que é diferente.

moras em mim



Fátima Fonseca

pensamentos que divagam
sob pontas hastes de marfim
lapidam  espinhos, perfumes
e dedilham no teclado para te falar de amor

afagam  as teclas  
como veludos de uma face
criva  um sorriso mudo
e oculta o desespero de uma saudade

 as letras disfarçam o meu peso
na sua presença ausente
o enlouquecer dos  pensamentos
 e a espera em vão  que sufoca a paciência

escrevo!
continuo empilhando cartas de amor
mesmo sem ter para onde endereçar
se tu moras em mim!? 


quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Manoel de Barros



Difícil fotografar o silêncio.
Entretanto tentei. Eu conto:
Madrugada, a minha aldeia estava morta. Não se via ou ouvia um barulho, ninguém passava entre as casas. Eu estava saindo de uma festa,.
Eram quase quatro da manhã. Ia o silêncio pela rua carregando um bêbado. Preparei minha máquina.
O silêncio era um carregador?
Estava carregando o bêbado.
Fotografei esse carregador.
Tive outras visões naquela madrugada. Preparei minha máquina de novo. Tinha um perfume de jasmim no beiral do sobrado. Fotografei o perfume. Vi uma lesma pregada na existência mais do que na pedra.
Fotografei a existência dela.
Vi ainda um azul-perdão no olho de um mendigo. Fotografei o perdão. Olhei uma paisagem velha a desabar sobre uma casa. Fotografei o sobre.
Foi difícil fotografar o sobre. Por fim eu enxerguei a nuvem de calça.
Representou pra mim que ela andava na aldeia de braços com maiakoviski – seu criador. Fotografei a nuvem de calça e o poeta. Ninguém outro poeta no mundo faria uma roupa
Mais justa para cobrir sua noiva.
A foto saiu legal.

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Rubem Alves




 As palavras só têm sentido se nos ajudam a ver o mundo melhor.
Aprendemos palavras para melhorar os olhos."

"Há muitas pessoas de visão perfeita que nada vêem...
O ato de ver não é coisa natural.
Precisa ser aprendido!"

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Mário Lago



Eu fiz um acordo com o tempo:
 nem eu fujo dele, nem ele me persegue.
 Um dia a gente se encontra.

domingo, 2 de dezembro de 2012

Cecília Meireles




O que amamos está sempre longe de nós
O que amamos está sempre longe de nós:
e longe mesmo do que amamos - que não sabe
de onde vem, aonde vai nosso impulso de amor.

O que amamos está como a flor na semente,
entendido com medo e inquietude, talvez
só para em nossa morte estar durando sempre.

Como as ervas do chão, como as ondas do mar,
os acasos se vão cumprindo e vão cessando.
Mas, sem acaso, o amor límpido e exacto jaz.

Não necessita nada o que em si tudo ordena:
cuja tristeza unicamente pode ser
o equívoco do tempo, os jogos da cegueira
com setas negras na escuridão.
- Cecília Meireles, in 'Solombra'

sábado, 1 de dezembro de 2012

Miguel Sousa Tavares




Porque não te amo, tenho este corpo para te oferecer; porque te amo fujo e desapareço. E, porque desapareço, não te esqueço, porque essa é a minha forma de te amar - tudo o resto é ainda mais e mais sofrimento.