domingo, 1 de setembro de 2019

O BRADO DA DANDARA DOS PALMARES



O BRADO DA DANDARA DOS
PALMARES
                                                                  Gláucia Maria Vasconcellos Vale


Sou Dandara
dos bantus filha
benção de Nzambi Mpungu
sou caçadora
guerreira
nasci livre
morro livre

livre
o marimbondo
nascido da minha língua
com o ferrão da minha ira
os ares são livres
as ondas nos mares
os ventos do leste
o verde
no agreste

livre é Zumbi
companheiro
cria
senhor
do Quilombo dos Palmares
do Rio Mundaú
ao mar
meu corpo seu leito
seiva segredo das crateras

entre bundas e coxas
o prazer do cafuné
dengos em noites fecundas
na boca das manhãs
o banzo da madrugada
um moleque
dois moleques
sem cochilo
com cuidado
cem guerreiros a lutar
outros mil que vão chegar


***

o entrelaçar
das miçangas
pedra a pedra
e devagar
pega o jeito da Yá
pega no feito
de Ogum

no arfar da enxada
o batuque da cuíca
na ginga da capoeira
o guardar dos mantimentos:
canjica fubá farofa
dendê

o polir da ferramenta
o forjar das novas letras

bem dita
língua dos bantos
argila da construção
semente em campo agreste

moro em todas as pegadas
me demoro nas curvas dos rios
me ancoro entre montanhas e vales
no alto da serra densa
no umbigo
da Barriga

seio do abraço da terra
sei o segredo
das palmeiras
as manhas dos animais
artimanhas
nas viradas

negra minha pele
o brilho da lua
no negro dos olhos
fortalezas escondidas
iluminando os dias
estrelas arregaladas
ao frescor
das madrugadas
virgens matas conquistadas
escondidas pelo sol


***

o navio aportou
na carga a marca
o grito do mudo
no surdo do ouvido
a pele salgada
de púrpuras rosas
desfolhadas em golfadas
na ponta
da chibata

mais um negro fugido
ia virar
burro de carga
saco de pancada
calado na mordaça
surrado na mortalha
marcado
à ferro e brasa
virou irmão da noite
mais um guerreiro
em Palmares

a princesa virou escrava
foi servir à sinhá
seviciada
servia de comida ao senhor
no pescoço a cruz
tortura de mais um dia
no ventre a semente
de um ente deserdado

mais um pobre
desterrado
busca terra diferente
mais uma guerreira
em Palmares


***

barulhos de espoletas
facões rasgando o espaço
rompendo cercas
pastos
plantações
choças ardendo
bazucas limando troncos
homens caídos 
corpos amontoados
aço contra ventres nus
crianças mulheres guerreiros
sonhos quimeras
fumaças

entre danças
de corpos caídos
mutilados
passa Dandara
uma ave
uma garça
um grito
um gato
sobe o morro
invade as matas
corre

Cadê Katendê?
me dê as ervas da cura
salgando as entranhas
nas brenhas das matas

Cadê Quibanda?
quero meu corpo fechado
dos quebrantos do viver
nos meus trapos
o meu sangue
de grilhões arrebatados

corre Dandara
- vai!
vira árvore
vira ave
voa
voa Dandara, voa!
corta o céu
vence o abismo!

vira bruma
cerração
zelação
elegia
lenda
elo

eco

que não mais
vai se calar
que não sabe sossegar
virou rugido furação
estrondo de mil trovões
enxurrada em tempestade
alimento na tormenta
queimadura
em selva escura
desassossego
aflição

ébano fel ferro
barro imagem linhagem
do instante guardiã
fogo fátuo
de memórias
latejantes e sem mais fim
fantasia que ilumina
fantasma que nos inspira
luz primeira
purgação
provação
e redenção.

(*) Poema extraído do livro Cantos da Terra, publicado pela editora
Ramalhete em 2018

2 comentários:

  1. Obrigada Gláucia por compartilhar conosco belíssimo poema que retrata a labuta da heroína Dandara. bjs!

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  2. Essa é a Gláucia. Voando com as asas da liberdade e da inspiração. Parabéns!!!

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