sábado, 20 de dezembro de 2014

TANTO FAZ


Edison Gil
Tanto faz se nasce reto
ou se aflora pelo torto,
se opta em ser sequoia
ou se contenta em ser um broto.
Há flores pelo mar
e lírios no esgoto!
Julgar é manter preso
aquilo que está solto
é ancorar pra não voar,
naufragar no cais do horto.
É deixar de cultivar
pra desabitar o próprio porto!

sábado, 13 de dezembro de 2014

palavras de natal

 Ronaldclaver
Faço meu presépio que é seu
com palavras colhidas no dicionário
do coração como
viagem
ternura
delicadeza e margarida
Rabisco outras no caderno
de lembranças como
primavera
lua cheia
amora e carícia
Na ronda noturna dos olhos
a palavra aconchego é be-vinda
paz é palavra suave e terna
Nas ruas de meu corpo
compartilho a palavra
solidariedade e a palavra
justiça
E acendo o sol que aquece
o menino Jesus
com a palavra liberdade.

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014


Fátima Fonseca
O dia amanhece.
O galo canta.
Eu não posso cantar de galo.
Nunca sei se vou amanhecer.

quarta-feira, 10 de dezembro de 2014


 Castro Alves
Oh! Bendito o que semeia
Livros... livros à mão cheia...
E manda o povo pensar!
O livro caindo n’alma
É germe – que faz a palma,
É chuva – que faz o mar.
[...]
Bravo! a quem salva o futuro
Fecundando a multidão!...
Num poema amortalhada
Nunca morre uma nação.

domingo, 7 de dezembro de 2014

ao seu lado

Fátima Fonseca

senti amada e tive  carências saciadas
também tive  desprezo e senti solidão.
ao seu lado
enxerguei  todas as flores, tive todos os beijos, vivi todos os delírios
amei e desejei vida eterna
também estive no limiar da loucura e senti vontade de morrer.
Ao seu lado
compartilhei   sorrisos
e escondi lágrimas que derramei
amor e desamor
desamor e amor


quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Soneto do Desmantelo Azul

Carlos Pena Filho
Então, pintei de azul os meus sapatos
por não poder de azul pintar as ruas,
depois, vesti meus gestos insensatos
e colori, as minhas mãos e as tuas.
Para extinguir em nós o azul ausente
e aprisionar no azul as coisas gratas,
enfim, nós derramamos simplesmente
azul sobre os vestidos e as gravatas.
E afogados em nós, nem nos lembramos
que no excesso que havia em nosso espaço
pudesse haver de azul  também cansaço.
E perdidos de azul nos contemplamos
e vimos que entre nós nascia um sul
vertiginosamente azul. Azul.
                                                       

domingo, 30 de novembro de 2014

MARGARIDA


Maria Solange Amado Ladeira 
Margarida era de uma docilidade estranha. Uma delicadeza rude. Seca como um graveto. Definitivamente, Margarida não era cor de rosa, nem branca, nem macia. Uma negra com a consistência da vida. A perturbadora mistura do amargo e do doce que a vida nos oferece. Mas era assim. E eu gostava dela. Tinha braços fortes e a voz firme. Ásperos às vezes. Mas quando noites seguidas, eu acordava aos gritos, emaranhada nos meus terrores noturnos, eram seus braços que se estendiam  como uma árvore frondosa e sólida que nos acolhe e abraça forte. Era alí, no seu regaço que eu encontrava a paz. Ela dava um chute legal nos meus medos.
Margarida era o gigante que me protegia do mundo e dos monstros que povoavam as noites. Era eterna, sólida, incansável. Pelo menos assim parecia aos meus olhos infantis. Sempre estava alí para o que desse e viesse: quando eu esfolava os joelhos, quando as chineladas do meu pai doíam no lombo, quando os fantasmas apareciam no fundo do quintal. E estava lá nos momentos felizes também, pronta a rir e a se alegrar comigo.
Quando comecei a me apaixonar pelas palavras na escola, chegava em casa com um “muito bom” sapecado em cima da minha redação, e invariavelmente um “muito ruim” sapecado em cima do meu exercício de matemática. O “muito bom”  da redação não dava o mínimo ibope em casa, mas o “muito ruim” da matemática liderava as paradas de sucesso por pelo menos um mês (até ser substituído por outro), e me rendiam dez mandamentos de proibições. “Não irás ao cinema no domingo” era o primeiro e o preferido dos meus pais, seguiam-se outros, que eu tinha de cumprir à risca. Não havia perdão. O “muito bom” desaparecia legal diante da tragédia “muito ruim” dos números. E era aí que Margarida entrava, dando um up grade na minha auto estima, exatamente alí, na zona do agrião, onde minha fé no meu próprio taco sofria um colapso de morte. Ela me pegava pela mão, saiamos às compras: padaria, mercado, açougue, toda a vizinhança se inteirava, através  das suas informações, da minha genialidade escolar, com o fracasso  dos números devidamente escamoteado, é claro. Meu ego saia sempre recomposto desses passeios.
Margarida não sabia ler ou escrever. Era o faz tudo da minha família: babá, cozinheira, lavadeira, passadeira em uma casa povoada de crianças. Não sabia nem o que era uma redação ou um exercício de matemática. Ou o que significaria o êxito ou o fracasso nesses quesitos. Isso pouco importava. O que saltava aos olhos, era sua habilidade natural, a delicadeza, a gentileza com que segurava a barra de uma criança, no momento em que esta se sentia jogada pras traças.
O tempo passou. A criança que existe em mim não tem mais o sustentáculo dos braços fortes das muitas margaridas espalhadas por esse país. Mas ainda as procuro quando o boletim da vida vem salpicado de vermelho e todos começam a me olhar torto.
Quando minha auto estima vacila, quando o “muito bom” sai de cena, perde a força e começa a se apagar, e o ponto focal de todos os que me rodeiam se fixa no “muito ruim”. Quando começo a descer a ladeira da minha auto confiança, farejo no ar o cheiro de uma flor, meio rude, meio roceira. E aí, pego a mão da Margarida e damos uma volta no quarteirão, peito estufado de orgulho, ouvindo  vozes ao meu redor e comentários cheios de aprovação; minhas mãozinhas infantis fortemente entrelaçadas com suas mãos negras e fortes. “Muito bom”, vejo seus lábios formarem. E sorrio.
-         solangesolsal@hotmail.com       22/04/14

Nanocontos

Maria Solange Amado Ladeira
Foi um sonho confortável. De segunda mão. Mas serviu direitinho.

Pegou um sonho num canto da cama. Não viu que era um pesadelo.

A aldeia era um amontoado de casinhas minúsculas com uma pobreza maiúscula.

As palavras escorregam pelo texto. Tento segurar, mas perco o equilíbrio. Nem toda Maria faz poesia.

Não tenho poltronas confortáveis na casa da minha escrita. E nem paredes. E as portas dos armários não se fecham com tantas palavras. Um dia eu arrumo tudo e faço um livro.

A esperança veio a reboque daquele amor de outono. Peguei carona, atravessei o inverno. Se a primavera chegar, vocês verão.

Não era amor. Apenas amostra grátis de paixão mal resolvida.

Na beiradinha do livro, tento pescar uma palavra ou outra. Não consigo. São palavras sem eira nem beira.

   - solangesolsal@hotmail.com     25/11/2014

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

A COR DA LIBERDADE-ZUMBI - dia da consciência negra -

Ronald Claver

deixar na pele o sol da servidão
é possível
deixar no corpo o frio da solidão
é possível
deixar nos olhos as paisagens do exílio
é possível
é impossível apagar o banzo que é sinete no
coração
trocar de nome, idioma, país
é possível
até achar que a lua do Senegal
tem a mesma claridade do luar
que penetra sorrateiro e clandestino
nos porões da da senzala.
tudo é possível
impossível é calar no homem
o vento da liberdade.

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

como uma faca que abre a manhã
tenho os órgãos completos de anoitecimentos.
borboletas jantam minha boca espessa
e me abrem com pedidos graves.

inauguro leitos e esquinas
e guardo no sutiã
um discurso escuro.
meus seios se esgarçam
se esquivando do cheiro que ficou encarnado,
mas encontram quinas.
então o músculo a noite
escorre como grade nas palavras
que parecem ter a potências das pedras.

recosturo o mamilo com a mesma faca
que abre a manhã
e a reinvento flor fome demência
e me danço e me acho no dentro
de uma borboleta ensopada.(ANONIMO)

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

RECEITA


Maria Solange Amado Ladeira 
Tenho uma amiga que frequentemente me pergunta como é essa coisa de escrever. Para ela deve haver uma receita da vovó, daquelas receitas que passam de mãe pra filha e que a gente não deve revelar pra ninguém o ingrediente tchan que torna único o bolo da escrita. Isso, por mais que eu garanta a ela que, na minha família, que eu saiba, não há nenhum perigo de haver o tal tipo de segredo. Desde a minha tataravó que cozinha é a parte da casa que contém tantos atrativos quanto a UTI de algum hospital, e as mulheres  preferem passar longe.
Pois é, mas de tanto ouvir dessa muy amiga que devo ter uma “carta na manga” que egoisticamente guardo a sete chaves, uma espécie de “pulo do gato” ou pulo da gata, que não conto pra ninguém, resolvi me abrir que nem mala velha. Talvez, em meio às dores do parto de um texto, se eu botar bastante reparo no desenrolar dos acontecimentos, e com a ajuda de algum Sherlock Holmes, eu possa descobrir alguma pista e estabelecer algum parâmetro, até chegar ao segredo da receita de escrever.
Vejamos. Em princípio a tarefa se revela muito difícil porque partos de textos, pelo menos dos meus, variam muito: há os textos que nascem de cesareana, outros de parto na água, outros ainda de parto de cócoras; parto normal muito poucos, mas pode ser que tenha saído algum do talo de couve.
Observação feita, vamos ao que interessa. Antes de qualquer coisa, vista uma roupa bem confortável, ferva água que um bom café pode despertar o cérebro, congele suas preocupações e dívidas por algum tempo no freezer, de vez que não há idéia criativa que resista a roupa íntima apertada e dívidas de cartão de crédito. Resolvido esse problema, sente-se em frente ao computador, de vez que papel e caneta são artefatos de antes do dilúvio. Se todos os recursos da tecnologia e o vasto mundo da internet não estiverem no papo, esqueça a possibilidade de desenvolver qualquer coisa aproveitável. Desista.
Ligue o computador, a tela se ilumina, olhe fixo para a luz tremulante; a esperança é que ela ilumine também o seu cérebro. Espere por meia hora, e se a luz da tela irritar os seus olhos e o Espírito Santo não baixar nesse espaço de tempo, então, desligue o mundo virtual e seja o que Deus quiser.
Pra ser sincera, essa primeira parte eu dispenso sempre, e sigo direto para o “seja o que Deus quiser”. Normalmente, o espermatozoide de uma idéia invade o óvulo da minha cachola e eu fico prenha em qualquer lugar, pode ser no elevador, na rua, num banheiro público. A sorte é que essa concepção é feita na maior discrição, tão rápido quanto cruzamento de coelho. Quando dou por mim, já estou gestando um feto de palavras, ainda um tanto disforme, ainda com cara de ninguém, mas já com um coração que bate ritmicamente anunciando que vai nascer.                                           Inicia-se uma gestação cheia de altos e baixos. Devo dizer que, ao contrário do feto humano, esse feto de palavras não tem um tempo certo para ficar pronto. Particularmente sou contra partos demorados. Mais de um dia, é melhor empregar o fórceps ou dar uma empurrada gigante para que o texto venha à luz.  Talvez seja preciso uma “délivrance forçada”. O certo é que quando as dores se aproximam, gosto de estar sozinha e me sentar na minha cadeira preferida, ligar a televisão (já avisei que a minha receita foge ao convencional) e ir deixando que as palavras venham se aproximando, em geral num bando confuso e barulhento. Vou botando um pouco de ordem e disciplina naquela bagunça, expulso as que não cabem no meu projeto de gravidez e digo não às que querem me embromar só para aparecer no santinho.
De um modo geral, nasce um texto enfezado, meio sujo e aos berros. É preciso dar uma limpada no nascituro, recebê-lo com carinho. Lamber a cria é imprescindível. Não vale a estranheza do “não é esse o fruto que eu planejei”. Bobagem. Contra fatos não há argumentos. Dizem que filho feio não tem pai, mas mãe sempre tem. De qualquer maneira,o DNA não nega. E uma vez lambida a cria, reconhecidamente sua, mostre-a a seus pares, liberte-se dela. Pode ser que ela arrebente para o mundo, pode ser que desponte para o anonimato. Mas você só vai saber, se desapegar, se puder dividi-la com os outros. É hora de servir o bolo e esperar que os convidados aprovem. E se depois disso tudo, seu texto agradar 100% e seu ego ameaçar sair dos trilhos, recolha-se à sua insigne ficância. Acredite, como Nelson Rodrigues, que a unanimidade é burra.

  solangesolsal@hotmail.com

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

sou do cerrado

Fátima Fonseca
Tenho umbigo sujo de esperança
pés rachados de sempre vivas
asas condor, 
sou do cerrado, 
norte da Gerais.


domingo, 26 de outubro de 2014

Clarice Lispector
Sou composta por urgências:
minhas alegrias são intensas;
minhas tristezas, absolutas.
Entupo-me de ausências,
Esvazio-me de excessos.
Eu não caibo no estreito,
eu só vivo nos extremos.

Pouco não me serve,
médio não me satisfaz,
metades nunca foram meu forte!

Todos os grandes e pequenos momentos,
feitos com amor e com carinho,
são pra mim recordações eternas.
Palavras até me conquistam temporariamente...
Mas atitudes me perdem ou me ganham para sempre.

Suponho que me entender
não é uma questão de inteligência
e sim de sentir,
de entrar em contato...
Ou toca, ou não toca

sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Flor Bela Espanca
"Olhos buscando os teus por toda a parte,
Sede de beijos, amargor de fel,
Estonteante fome, áspera e cruel,
Que nada existe que a mitigue e a farte!"

terça-feira, 21 de outubro de 2014

poesia

Fátima Fonseca
o rio que escorre em mim
me molha como quem beija
encharca meu corpo
garimpa  queixas
faz percursos que desconheço
Ah..., e na lama a céu aberto
se faz poesia.

sábado, 18 de outubro de 2014

reféns do amor

Fátima  Fonseca
Anabela uma borboleta
Carolina um beija-flor
e Maria uma violeta
que recebia com sorriso
a borboleta e o beija-flor
todos eram reféns do amor.

sexta-feira, 17 de outubro de 2014

mini poema

Fátima Fonseca
o céu estrelado
da boca da noite
aguardava os beijos de amor.

Carga viva

Fátima Fonseca

Tenho  padecido de poesia
como carga viva em vagões
no meio da rodovia
empoeirada
crucificada
dolorida
cada vão uma agonia
que amargura!

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Anúncio classificado

Carlos Drummond de Andrade

Procura-se apartamento
pequeno, bem situado,
onde caibam dois amantes
de frente como de lado.

Quer-se bem perto do mar
e bem longe do barulho,
de modo que a única música
ouvida seja a de Bach,

de Corrette, de Bomporti,
com seus preciosos discos
arrumados de tal sorte
que inda caibam uns livros

de poesia, está claro,
e também( toda uma estante)
os tratados de Epicuro,
Descartes, Spinoza, Kant.

A mesa-de cabeceira
deve ficar a seu cômodo
para que nenhuma aresta
machuque o amor na testa.

E a cama, sem ser estreita,
nem larga como avenida,
tenha espaço suficiente
para as doçuras da vida.

Caibam na pequena copa
a bandeja, o biscoitinho,
hoje guardados no armário
dos alvos lençóis de linho,

bem como aquelas garrafas
do escocês nacional
que a gente, faute de mieux,
ingere e não nos faz mal.

Procura-se apartamento
de quarto-e-sala (tão pouco
e tão muito), sem barata,
sem mosquito rezinguento,

sem vizinhos enervantes
que gritem palavras sujas,
sem terríveis, sem constantes
cortes d'água quando as nuas

formas já ensaboadas
se restauravam, cuidando
de logo após se enroscarem
nas formas  do amor, amando.

Quem souber de tal imóvel
não fique imóvel: na asa
do vento me informe onde,
onde é que fica essa casa!

sábado, 11 de outubro de 2014

QUE PENA

Ysolda Cabral
Se não existe saudade
Nada valeu ou vingou
Não é desamor
Não é dissabor
Se não existe saudade
Nada significou
Não é indiferença
Não é maledicência
Se não existe saudade
Não foi amor de verdade
Que pena...

sexta-feira, 10 de outubro de 2014

A descoberta do amor

Maria  Apparecida  de  Mattos 

Aos  15  anos
o  amor  foi  promessa.
Os  tempos  eram  outros
e  o  pecado,
muito  envergonhado.
Garotas  e  garotos  ficavam.
À  moda  antiga,  ficavam.
Ora  faziam  footing 
na  praça  principal,
ora  colhiam,
na  matinê  de  domingo,
o  fruto  dos  olhares  da  praça.

Aos  25  o  amor  foi  confiança.
Sem  cálculo,  sem  pressa,
na  casa  simples
de  uma  rua  de  bairro
construíam-se    castelos,
tendo  o  futuro  como  promissória
e  sonhos  como  fiadores.

Aos  35  o  amor  foi  tudo,
paixão  semicoberta
no  leito  onde,  encoberta,
feitiçaria  conjurava.
Centelhas  dos  desejos  e  dos  ódios
acendiam  tal  poder  que  sufocavam
possível  esconjuro.
Em  cegueira  e  malcoberta
a  garota  dos  15  não  previa
os  tropeços  da  queda  anunciada.

Aos  45  o  amor  foi  quase  nada.
Político  em  desespero,
tentava  boca  de  urna.
Ateu  convicto,
desfilava  contas  do  rosário
como  quem  joga  água
em  peneira  furada.
Eros  falido  em  eros  renascendo
das  cinzas  de  uma  fênix  matreira.

Hoje  o  amor  é  redenção.
Cara  limpa  despida  de  máscara,
redescoberta  de  corpo
redescoberta  de  espírito
aurora  boreal
no  cerne  do  crepúsculo,
a  garota  dos  15
dos  30  e  dos  inconfessáveis
está  livre  pra  jogar  escolhas
na  balança  do  tempo.






quinta-feira, 9 de outubro de 2014

quarta-feira, 8 de outubro de 2014

O GOSTO DO SAPO


Maria Solange Amado Ladeira 
“Estou com um horrível gosto de sapo na boca”. Não fui eu quem disse. Foi a boneca Emília no Sítio do Picapau Amarelo. Mas eu li. O que não muda nada, porque naquela época eu não sabia ainda que gosto tinha um sapo. Desde então, tenho engolido tantos que já estou quase incorporando a iguaria ao meu cardápio diário. E o gosto continua de sapo. Nojento. Pegajoso. Escorregadio. Borrachudo.
Geralmente, ao deglutir um sapo, o faço por conta própria. Ninguém me dá uma força, ninguém se solidariza. Digamos que é um vício solitário. À exceção de domingo passado. Dia de votação. Dia de exercer a cidadania nesse país troncho, cheio de necessidades especiais. Esse foi um dia especial. Faltou sapo no mercado. E pior. Tinha fila pro engolimento do sapo. Digamos que foi um engolimento coletivo. Me fez lembrar minha infância, quando minha mãe botava todo mundo em formação militar pra colherada substanciosa de óleo de rícino, depois, com o perdão da palavra, era esperar a merda. E ela vinha, com infalibilidade papal.
E assim, acuados, sem escolha, contrariados, botamos nossa colherada de óleo de rícino pra dentro, que no fim do dia nem sapo havia mais. E nem sabemos como os intestinos da nação vão responder a essa ineficiente solução. E o caso é esse: a sensação é de que a eficácia da medicação é pequena pro tamanho do rombo que tentamos consertar. A impressão que temos é que a nossa política virou uma zona de baixo meretrício. Não é de bom tom militar por alí. Ou nossa eleição virou algo assim como eleição de síndico. Ninguém quer os novos candidatos e os mais competentes e confiáveis não topam atuar em meio a tanta baixaria. E aí é chover no molhado que é onde o sapo se reproduz.
Mas eu me consolo. Vejam bem. Não somos só nós nesse Brasil varonil, que engolimos um sapo atrás do outro. Dia desses, estava lendo um livro e  uma cena me causou certo frisson – qualquer coincidência é mera semelhança – a cena se passa no dia 30 de agosto de 1957, dia em que a Malásia finalmente se viu livre do domínio britânico. A multidão se reúne em frente ao Palácio do Governo, ruidosa, excitada, emocionada. É quando o Primeiro Ministro recolhe a bandeira do Império britânico, puxa a cordinha, e a bandeira da Malásia, com sua lua, estrelas e listras começa a subir, sob aplausos e gritos. Do alto, o Primeiro Ministro lança seu grito de guerra: MERDEKA! Desde então, imperou a merdeka na Malásia e ninguém mais se entendeu. Em princípio vocês podem pensar como eu, que o Ministro malaio deve ter dado uma topada ao pegar a cordinha da bandeira, daí esse palavrão intempestivo. Ledo engano. Merdeka é a palavra malaia para independência.
Vejam só. Estamos anos luz à frente da Malásia. Entra eleição e sai eleição, continuamos mergulhados na merdeka. Já arriamos a bandeira de Portugal há um bom tempo e esse horrível gosto de sapo não sai da boca. Será esse o mesmo gosto da merdeka malaia?



     solangesolsal@hotmail.com         

sábado, 4 de outubro de 2014

meu aniversário

Fátima Fonseca

disputas eleitorais sempre ocorreram neste mês
a simplicidade franciscana é ressaltada no quatro dia
temos também o dia das crianças, dos professores, das bruxas...

comigo estão todos os que venceram e perderam a disputa
o horário de verão, os inquietos, os franciscanos as bruxas
que eu sou
nasceram neste mês de outubro.


Cida Garcia

             Entrelaçamento quântico

      A  quântica  engolirá
      por  certo
      o  romantismo.  Varrerá
      do  céu  aberto
      estrelas  e  luar.
      A  poesia,  fatalmente,
      nas  dores  de  se  reinventar
      terá  pela  frente
      conflitos  einsteinianos.
      Causalidade
      explica  muito  menos
      que  probabilidade,
      os  teóricos  dizem.
      Chocam-se  os  poetas,
      claro  que  se  rendem
      a  estas  novas  pautas.
      Amantes  não  mais  se  amam
      por  causa  da  lua  cheia.
      Se  por  acaso  se  encontram
      e  grudam  na  mesma  teia,
       inda  que  a  teia  se  estique
       restam  interconectados
       apesar  de  nenhum  toque,
       corações  particulados
       quanticamente  poéticos
       a  sentir  o  que  o  outro  sente,
       jovens  maduros  caquéticos
       gêmeos  no  eternamente.

O SONHO DAS ROSAS


Antonieta Borges Alves

Num transporte sublime as rosas encarnadas,
esplêndidas na cor e raras nos perfumes,
no vaso de cristal adormeceram líricas.
Lá fora é claro o céu, e elas enamoradas
pressentem, a sonhar, o festival de lumes
que põem pelos vergéis mil ternuras idílicas.

- Neste mundo haverá mais beleza e harmonia?
Que pincel fixará em traços magistrais
a quietude infinita, a suprema poesia
do sonho que só dura um luar, nada mais?

quinta-feira, 2 de outubro de 2014

Votem em mim!

Fátima Fonseca
Tenho a cabeça na lua, 
calos nos pés por pisarem nas estrelas, 
um rancho  e uma rocinha de poemas. 

Prometo plantar saudades sempre vivas, 
vitórias régias 
e liberdade para colhermos esperanças.
 “Meu partido? Meu coração partido.”


quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Saudade

 João Guimarães Rosa
Saudade de tudo!...
Saudade, essencial e orgânica,
de horas passadas,
que eu podia viver e não vivi!...
Saudade de gente que não conheço,
de amigos nascidos noutras terras,
de almas órfãs e irmãs,
de minha gente dispersa,
que talvez até hoje ainda espere por mim...
Saudade triste do passado,
saudade gloriosa do futuro,
saudade de todos os presentes
vividos fora de mim!...
Pressa!...
Ânsia voraz de me fazer em muitos,
fome angustiosa da fusão de tudo
sede da volta final
da grande experiência:
uma só alma em um só corpo,
uma só alma-corpo,
um só,
um!...
Como quem fecha numa gota
o Oceano
afogado no fundo de si mesmo...

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

anonimo
sou extremamente inacabada
tenho fluidos zonzos
que penetram na carnadura
um drama excessivo
uma febre contemporânea
uma quentura comprimida e larga
como teu silêncio.
sou território
danço como uma chama.

terça-feira, 16 de setembro de 2014

Fernando Pessoa
Eu amo tudo o que foi
Tudo o que já não é
A dor que já me não dói
A antiga e errônea fé
O ontem que a dor deixou,
O que deixou alegria
Só porque foi, e voou
E hoje é já outro dia.

domingo, 14 de setembro de 2014

VIDRO CÔNCAVO

Antonio Gedeão
Tenho sofrido poesia
como quem anda no mar.
Um enjoo.
Uma agonia.
Sabor a sal.
Maresia.
Vidro côncavo a boiar.

Dói esta corda vibrante.
A corda que o barco prende
à fria argola do cais.
Se vem onda que a levante
vem logo outra que a distende.
Não tem descanso jamais.
Tel Mont

espalho estrelas de papel no céu
do meu quarto
e elas brilham, é só apagar a luz
cerrar o sol, encerrar o dia

esse é o meu mundo, e pronto
nem se atreva a me interromper quando sonho


sexta-feira, 5 de setembro de 2014

Vestígios


Ana Cecília de Sousa Bastos 

Estranha pulsão, esta:
derramar no caderno porções de alma.
A mão, captando sinais invisíveis.
Lenta, no formigueiro em marcha.
Absolutamente só,
enquanto todos perseguem a sagrada hora do
                                              [ trabalho
e dos compromissos bancários.

E depois, palavras escondidas em oculto caderno,
papel rasgado, para que delas não sobrem
vestígios.

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

não vou- me embora para Passárgada

Fátima Fonseca
não vou- me embora para  Passárgada
não tenho afinidades com reis
sou bicho de goiaba
moro nas  cantorias e algazarras
aqui onde estou 
tenho o fascínio das  passárgadas.

quarta-feira, 3 de setembro de 2014

comidinha simples

Fátima Fonseca
  
dói o cale-se do estômago
que pede uma comidinha simples
com cheiro de flor
verbos enlatados de sujeitos
adjetivos líquidos
 emoção cor rosa
ao gosto dos guimarães
transbordando pelas beiras
de poesia 
vontade que não abranda
fome que não estanca
e eu inacabada
gerundiando, escrevendo, pelejando
cheia de garças
porque a vida é a melhor ilusão.


domingo, 31 de agosto de 2014

Tenho (homenagem a Fernando Pessoa)

Fátima Fonseca

eu tenho comigo o afligir de uma dor que deveras sinto
nunca me vi nem achei
carrego o não saber de quantas almas tenho
e sei enfim que nunca saberei de mim

herdei de meus pais fé em Nossa Senhora
tenho Fátima no nome
alma brunhida com um “q” de Portugal

mas,o que me dói não é
o que há no coração
mas essas coisas lindas
que nunca existirão...

por isso, bebo de suas palavras
com uma esperança bem morrida de poesia
de um porvir encontro estrelado
com você Fernando em pessoa.

sábado, 30 de agosto de 2014

Mário Quintana
"E que fique muito mal explicado. Não faço força para ser entendido. Quem faz sentido é soldado."

Consciência Cósmica

 João Guimarães Rosa

Já não preciso de rir.
Os dedos longos do medo
largaram minha fronte.
E as vagas do sofrimento me arrastaram
para o centro do remoinho da grande força,
que agora flui, feroz, dentro e fora de mim...
Já não tenho medo de escalar os cimos
onde o ar limpo e fino pesa para fora,
e nem deixar escorrer a força dos meus músculos,
e deitar-me na lama, o pensamento opiado...
Deixo que o inevitável dance, ao meu redor,
a dança das espadas de todos os momentos.
e deveria rir, se me retasse o riso,
das tormentas que poupam as furnas da minha alma,
dos desastres que erraram o alvo do meu corpo...

quarta-feira, 27 de agosto de 2014

As portas da linguagem estão abertas.


Sebastião Aimone Braga  
A vela inflama e lança seus pássaros, em luz, no ar.
        Tudo debaixo dos olhos, dos óculos, como sóis.
        Camões, Saramago, textos. Pausas, pontos, vírgulas, torrente de palavras. Desencadeadas, emendadas, uníssonas.
        A vela ainda lança seus versos e viagens na pauta da escrita. Passa e repassa por línguas, linguagens. Por intrigas, por tramas, trapaças.
        Torrentes de palavras. Que importa? As portas da linguagem estão abertas.

terça-feira, 26 de agosto de 2014

Viviane Mosé
para uma nova gramática:
imagine um sentimento água. um sentimento árvore.
uma agonia vidro. uma emoção céu. uma espera pedra.
um amor manga. um colorido vento sul. um jeito casa
de ser. uma forma líquida de pensar. uma vida paredes.
uma existência mar. uma solidão cordilheira. uma
alegria pássaro em chuva fina. uma perda corpo.
acho que hoje acordei semente. tenho andado muito temporal. minha irmã vive um momento tudo. a vida às vezes transborda pelos poros. me atinge um estado livro. aurora em meus joelhos. tem pessoas ponte. algumas carregam a gravidade nas costas. já conheci gente buraco negro. eu amo o instante limo. tem um branco em mim. a vida me urca. sofro de saudade anônima. palavras me beijam a boca
(poema do livro Pensamento Chão)

Vestígios


Ana Cecília de Sousa Bastos
Estranha pulsão, esta:
derramar no caderno porções de alma.
A mão, captando sinais invisíveis.
Lenta, no formigueiro em marcha.
Absolutamente só,
enquanto todos perseguem a sagrada hora do
                                              [ trabalho
e dos compromissos bancários.

E depois, palavras escondidas em oculto caderno,
papel rasgado, para que delas não sobrem
vestígios.

Jugo

Obedecer à doce tirania da palavra.

Anular censura, momento, lugar.
Deixar no papel o verso líquido,
esse pálido espelho da alma.

Enquanto deixo-me estar,
impressionada pela cor da palavra
"pálida". 

domingo, 24 de agosto de 2014

GRAMÁTICA.

Emille Kisar
Há dias em que sou ponto,
querendo encerrar coisas.
Em outros, vejo-me vírgula,
que a tudo tenta separar.
Tenho também meus
momentos de dois pontos,
ao tentar enumerar
aquilo que me incomoda.
E quando sou travessão,
é para tirar os nós da garganta,
berrar, se for preciso.
A verdade é que em mim
cabem todas as pontuações.
Afinal, sou um texto diferente
a cada dia.
Um dizer que nunca se acaba.
Bom dia, queridos Leitores do Punhado

LINHA RETA

                   
Cecília Meireles
                   
Não tenteis interromper o pássaro que voa em linha reta
de leste a oeste. Alto e só.

Não lhe pergunteis se avista cidades, mares, pessoas
ou se tudo é um liso deserto. Vasto e só.

Ele não passa para contemplar essas coisas do mundo.
Ele vem de leste, ele vai para oeste. Alto e só.

Ele vai com sua música dentro dos olhos fechados.
Quando chegar ao fim, abrirá os olhos e cantará sua música.
Vasta e só.



sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Poema do paraíso perdido ou Desabafo de Eva



 Maria Apparecida de Mattos
               ( minha colega da Oficina de Escrita )


Ó Deus, tem dó,
não quero virar pó.

Ó Deus, que droga,
Adão quase me afoga.

Ó Deus, olha minhas cãs,
inventa outras maçãs.

Ó Deus, pra que braveza
se herdei da cobra a esperteza!

Ó Deus, que brincadeira!
Acabei segurando mamadeira.

           

Rubem Alves
"Toda poesia é um ato de feitiçaria cujo objetivo é tornar presente e real aquilo que está ausente e não tem realidade!"

quinta-feira, 21 de agosto de 2014

João Guimarães Rosa
"Só se pode viver perto de outro, e conhecer outra pessoa, sem perigo de ódio, se a gente tem amor."

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

João Guimarães Rosa
"'Quanto mais ando, querendo pessoas, parece que entro mais no sozinho do vago...' - foi o que pensei na ocasião. De pensar assim me desvalendo. Eu tinha culpa de tudo, na minha vida, e não sabia como não ter. Apertou em mim aquela tristeza, da pior de todas, que é a sem razão de motivo; que, quando notei que estava com dor-de-cabeça, e achei que por certo a tristeza vinha era daquilo, isso até me serviu de bom consolo. E eu nem sabia mais o montante que queria, nem aonde eu extenso ia."

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

Clarice Lispector
"Viver é um ato que não premeditei. Brotei das trevas. Eu só sou válida para mim mesma. Tenho que viver aos poucos, não dá para viver tudo de uma vez. Nos braços de alguém eu morro toda. Eu me transfiguro em energia que tem dentro dela o atômico nuclear. Sou o resultado de ter ouvido uma voz quente no pas­sado e de ter descido do trem quase antes dele parar — a pressa é inimiga da perfeição e foi assim que corri para a cidade perdendo logo a estação e a nova par­tida do trem e seu momento privilegiado que desperta espanto tão dolorido que é o apito do trem, que é adeus."


sábado, 16 de agosto de 2014

eu, tu e Zenóbia

Fátima Fonseca




para Zenóbia, aos oitenta e nove anos
um pingo no “í” já é um  verso inteiro

com seu colar  nas mãos 
seus dedos percorrem cada pérola:
no primeiro mistério, eu violeta
no segundo mistério, tu violetas
no terceiro mistério, eles violetam

extasiados de esperanças
todos conjugavam  acompanhando-a:
no quarto mistério, nos violetaremos  

porque  milagre é o presente para todos
a hora não escolhe idade
 violeta é uma flor sedenta de eternidade.

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

ah...! neeeem!
é muito hem, hem, hem
é muita luta
é muita ilusão
pra tão pouco tempo de vida!
meu Deus das alturas,
misericordia!

escrever....

João Guimarães Rosa
"Escrever é um processo químico; o escritor deve ser um alquimista. (...) A alquImia do escrever precisa de sangue do coração. Para poder ser feiticeiro da palavra, para estudar a alquimia do sangue do coração humano, é preciso provir do sertão. (...) Levo o sertão dentro de mim e o mundo no qual vivo é também o sertão." (...) Goethe nasceu no sertão, assim como Dostoievski, Tolstoi, Flaubert, Balzac; ele era, como os outros que eu admiro, um moralista, um homem que vivia com a língua e pensava no infinito. Acho que Goethe foi, em resumo, o único grande poeta da literatura mundial que não escrevia para o dia, mas para o infinito."

EMBRIAGAI-VOS


Charles Baudelaire
É necessário estar sempre bêbado. Tudo se reduz a isso; eis o único problema. Para não sentirdes o fardo horrível do tempo, que vos abate e vos faz pender para a terra, é preciso que vos embriagueis sem cessar. Mas – de quê? De vinho, de poesia ou de virtude, como achardes melhor. Contanto que vos embriagueis. E, se algumas vezes, nos degraus de um palácio, na verde relva de um fosso, na desolada solidão do vosso quarto, despertardes com a embriaguez já atenuada ou desaparecida, perguntai ao vento, à vaga, à estrela, aos pássaros, ao relógio, a tudo o que foge, a tudo o que geme, a tudo o que rola, a tudo o que canta, a tudo o que fala, perguntai-lhes que horas são; e o vento, e a vaga, e a estrela, e o pássaro, e o relógio, hão de vos responder: – É hora de embriagar-se! Para não serdes os martirizados escravos do tempo, embriagai-vos; embriagai-vos sem tréguas! De vinho, de poesia ou de virtude, como achardes melhor.

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

página de mim


Fátima Fonseca
no chão dessa página
sonhos desfolhados me transfiguram
eu sou esse vazio sem versos sem personagens
a espera de pensamentos e palavras não ditas

já entardeceu
e eu aqui ainda juntando letras
que coisa!
continuo perdida
pensei que avançaria uma idade mais lúcida
mas não,  ainda sou essa expectativa que nasce e morre sem função

o vazio dessa folha continua a me saquear olhares
parece desconfiada
ou quem sabe
apenas observa esses meus pés no chão,  na lua
ou tenta entender as inverdades que eu preciso inventar
para viver.

terça-feira, 12 de agosto de 2014

Bilhete

Mario Quintana

Se tu me amas, ama-me baixinho
Não o grites de cima dos telhados
Deixa em paz os passarinhos
Deixa em paz a mim!
Se me queres,
enfim,
tem de ser bem devagarinho, Amada,
que a vida é breve, e o amor mais breve ainda...

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

SENTIMENTOS


Augusto Vieira
Sigo os meus sentimentos
Eles me dizem os destinos
De todos os meus momentos,
Até dos meus desatinos.
E vou fundo, bem fundão
Pelos caminhos do sentir
Ainda que meu coração
Se machuque no porvir.

Ficou na lembrança...

Suzana Braga
Ficou na lembrança...
Meu Pai
Meu pai era assim:
Menino grande
De riso fácil,
Brincava com o diário.
Seria frágil?
Meu pai era assim:
Troçava da vida
Escondia a tristeza
Tamponava as feridas
Mesmo as mais doloridas.
E seguia,
meio atabalhoado.
Meu pai era assim:
Flanava,
Viajava,
Sonhava.
Mentia?
Meu pai era assim:
A infância resplandecida
Nos seus gestos,
No deitar sobre as águas
Nas coisas que inventava.
No sabor de sentia
Na fruta recém colhida,
No gole de uma cachacinha
No preparo da caipirinha.
Nos jogos de linguagem,
Nas brincadeiras,
nas anedotas que contava.
Meu pai foi assim:
Partiu como um passarinho
Voou em busca de outro menino,
Que, de longe, o chamava.
Meu pai é assim;
Lembrança que me acompanha,
Pó de pirlimpimpim,
tão leve,
Que espalha
E fica
Até o nunca mais,
nunca mais, nunca mais.

sábado, 9 de agosto de 2014

 João Guimarães Rosa
"...digo. Esta vida está cheia de ocultos caminhos. Se o senhor souber, sabe; não sabendo, não me entenderá."

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Gente é mais ou menos como rio:

Viviane Mosé
Gente é mais ou menos como rio:
Tem os que gostam de perigo e se lançam de grandes alturas
Tem os de muitos braços que atiram pra todos os lados
Tem os de muitos redemoinhos que comem bois e gente
Tem os que gostam demais de si e viram lago
Tem os que só sabem correr parados
São os empoçados os pantaneiros os alagados
Tem os que transam com a terra formando ilhas
O fundo de alguns é de pedra. Tem os de peixes coloridos
Outros têm água clarinha. E tem gente córrego seco
E tem gente riacho escuro. Alguns a terra engole vivos
E tem até rio que corre pra trás
O rio que eu sou nasceu em janeiro
Tem gente que tem o costume de vazar pelos cantos.
No começo vaza calada. Aos poucos. Aos pingos.
Mas se pega gosto principia o derrame.
Escorre quando fala. Escorre quando anda.
Não tem mais braço nem cabelo que segure.
Parece que vicia em ficar transbordada.
Mas tem gente que quando transborda é pra dentro
E corre o risco de ficar represada. E represa, você sabe.
Se aumenta muito arrebenta.
Mas se a pessoa ensaia um jeito de derramar pra fora
Aí vai fazendo leito. Vai abrindo seu caminho na terra
E a terra parece que se abre para ela passar. Às vezes não.

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Amanhecer

- João Guimarães Rosa
Floresce, na orilha da campina,
esguio ipê
de copa metálica e esterlina.
Das mil corolas,
saem vespas, abelhas e besouros,
polvilhados de ouro,
a enxamear no leste, onde vão pousando
nas piritas das acácias amarelas.
Dos charcos frios
sobem a caçá-los redes longas,
lentas e rasgadas de neblina.
Nuvens deslizam, despetaladas,
e altas, altas,
garças brancas planam.
Dançam fadas alvas,
cantam almas aladas,
na taça ampla,
na prata lavada,
na jarra clara da manhã...

terça-feira, 5 de agosto de 2014

hoje é já outro dia.


Fátima Fonseca
tarde remota
baralhar identidade
disfarces
saqueava olhares

fração de segundos
renascia de suas cinzas
intensidade e uma felicidade
que só aconteceu naquela tarde remota.
depois segui vazia na cova do vento


Pratique o Desapego

Fernando Pessoa 
Sempre é preciso saber quando uma etapa chega ao final. Se insistirmos em permanecer nela mais do que o tempo necessário, perdemos a alegria e o sentido das outras etapas que precisamos viver. Encerrando ciclos, fechando portas, terminando capítulos. Não importa o nome que damos, o que importa é deixar no passado os momentos que já se acabaram. As coisas passam, e o melhor que fazemos é deixar que elas possam ir embora. Deixar ir embora. Soltar. Desprender-se. Ninguém está jogando nesta vida com cartas marcadas, portanto às vezes ganhamos, e às vezes perdemos. Antes de começar um capítulo novo, é preciso terminar o antigo: diga a si mesmo que o que passou, jamais voltará. Lembre-se de que houve uma época em que podia viver sem aquilo - nada é insubstituível, um hábito não é uma necessidade. Encerrando ciclos. Não por causa do orgulho, por incapacidade, ou por soberba, mas porque simplesmente aquilo já não se encaixa mais na sua vida. Feche a porta, mude o disco, limpe a casa, sacuda a poeira.

domingo, 3 de agosto de 2014

poesia que eu te quero


Fátima Fonseca
Quisera eu
hastear a bandeira de Manuel
falar com os anjos de Augusto
caminhar pelos prados de Adélia
carpinejar feito Fabricio
Ah...! quisera eu
ter em minha pauta as claves do Ronald
o rosa do Guimarães
fazer doces com as receitas de Aninha
enfeitar meu vaso com  flores  belas
que de tão enigmáticas podem Spancar.
Ah...! quisera eu...

sábado, 2 de agosto de 2014

Gosto mesmo...


Fátima Fonseca

 gosto das  florzinhas miúdas
essas que debruçam pelas margens das estradas
empoeiradas,
desprezadas,
indomáveis,
valentes,
 brotando,
 nascendo,
 esparramando e vivendo...

Para Manoel de Barros :

Fátima Fonseca
Para Manoel de Barros : Estou nos deslimites da palavra, releio o livro das ignorãças.
“Ando completa de vazios. Tentei descobrir na alma alguma coisa mais profunda do que não saber nada sobre as coisas profundas.
Consegui não descobrir.
Eu sou o medo da lucidez.
Tenho uma dor de concha extraviada.
Uma dor de pedaços que não voltam.
Eu sou muitas pessoas destroçadas.
Meu olhar tem odor de extinção
Tenho abandonos por dentro e por fora.
Preciso do desperdício das palavras para conter-me. Penso me renovar usando borboletas”

sexta-feira, 1 de agosto de 2014

AS RUAS

Mia Couto

No tempo
em que havia ruas,
ao fim da tarde
minha mãe nos convocava:
era a hora do regresso.
E a rua entrava
conosco em casa.
Tanto o Tempo
morava em nós
que dispensávamos futuro.
Recolhida em meu quarto,
a cidade adormecia
no mesmo embalo da nossa mãe.
À entrada da cama,
eu sacudia a areia dos sonhos
e despertava vidas além.
Entre casa e mundo
nenhuma porta cabia:
que fechadura encerra
os dois lados do infinito?

quinta-feira, 31 de julho de 2014

Sou hoje um caçador de achadouros da infância.
Vou meio dementado e enxada às costas cavar no meu quintal vestígios dos meninos que fomos.
Manoel de Barros

sábado, 26 de julho de 2014

Mia Couto in (Para Manoel de Barros, meu ensinador de ignorâncias)
"Estou sem texto, enriquecido de nada. Aqui na margem de uma floresta em Niassa, me desbicho sem vontades para humanidades. Entendo só de raízes, vésperas de flor. Me comungo de térmites, socorrido pela construção do chão. No último suspiro do poente é que podem existir todos sóis. Essa é a minha hora: me ilimito a morcego. Já não me pesam cidades, o telhado deixa de estar suspenso ao inverso em minhas asas. Me lanço nessa enseada de luz, vermelhos desocupados pelo dia.
Nesse entardecer de tudo vou empobrecendo de palavras. Não tenho afilhamento com o papel, estou pronto para ascender a humildade, simples desenho de ausência. Na tenda onde me resguardo me chegam, soltas e dispares, desvisões, pensatempos, proesias."

quinta-feira, 24 de julho de 2014

delicadeza

Manoel Bandeira
"Eu gosto de delicadeza.
Seja nos gestos, nas palavras, nas ações, no jeito de olhar, no dia-a-dia e até no que não é dito com palavras, mas fica no ar..."

terça-feira, 22 de julho de 2014

Máquina do mundo

Antonio Gedeon

O universo é feito essencialmente de coisa nenhuma.
Intervalos, distâncias, buracos, porosidade etérea.
Espaço vazio, em suma.
O resto, é a matéria.
Daí, que este arrepio,
este chamá-lo e tê-lo, erguê-lo e defrontá-lo,
esta fresta de nada aberta no vazio,
deve ser um intervalo.

sábado, 19 de julho de 2014

Rubem Alves e João Ubaldo marcaram um encontro nos céus!

João Ubaldo Ribeiro


Viva João Ubaldo Ribeiro !
André J. Gomes -

É que tem gente que deixa o mundo melhor, né?
Tem gente que abre o riso e o tempo. No meio de tanta bobagem, tanto desgosto, tanto ranço, tanta empáfia, tem gente que faz a vida mais simples em toda a sua complexidade.

Tempos difíceis, os nossos. Já faz tempo que é assim.
É que a gente aprendeu a levar o carro adiante no tranco. Aprendeu o ritmo louco das coisas, descobriu como faz pra seguir em frente quando sobe e quando desce.

É que tem gente que ajuda muito. Gente que ilumina, farol na praia selvagem, luz na picada estreita, fogo estalado no silêncio frio que vez ou outra toma a alma da gente.

Tem gente que inventa que a vida vai ser mais simples e mais bonita e interessante e ai dela se não for.
Gente que transforma seu tempo em graça e inteligência só porque existe.

Gente que é força da natureza, que troveja quando fala, venta quando caminha e transforma quem o vê, quem o ouve e quem o sente.

Ah… mestre. Agora me dou conta de que dei seu nome ao meu filho.
Não foi por sua causa, não. Mas é uma coincidência boa, dessas que você me ensinou a ver por aí.
Agora percebo quantas vezes a sua risada me empurrou à frente, quanto do seu pensamento ora esclareceu o meu, ora bagunçou tudo, quantas brigas imaginárias contigo me fizeram mais safo.
Quantas vezes eu senti vontade de ser você.

Obrigado, homem da ilha, baiano da gota.
Viver é mais doce e mais bonito porque vira e mexe Deus manda gente como você fazer das suas aqui embaixo.

E, olha, tem tanta lembrança sua por aqui que a saudade que já existe quase não vai aporrinhar tanto.
É que tem gente que nasce, vive e não morre nunca mais.

Viva João Ubaldo Ribeiro!

quarta-feira, 16 de julho de 2014

Rubem Alves
"Quem tenta ajudar uma borboleta a sair do casulo a mata.
Quem tenta ajudar um broto a sair da semente o destrói.
Há certas coisas que não podem ser ajudadas.
Tem que acontecer de dentro para fora."

terça-feira, 15 de julho de 2014

Meu segredo

Antônio Frederico de Castro Alves

Eu tenho dentro d'alma o meu segredo
Guardado como a pérola do mar;
Oculto ao mundo como a flor silvestre
Lá no vale escondida a vicejar.

Eu guardo-o no meu peito... É meu tesouro,
Meu único tesouro desta vida.
— Sonho da fantasia — flor efêmera
Uma nuvem, talvez, no céu perdida ...

Mas que importa? É uma crença de minha alma
— Gota de orvalho d'alva da existência
Última flor, que vive aos raios mornos
Do sol de amor na quadra da inocência.

Só, quando a terra dorme solitária
E ergue-se à meia-noite, branca, a lua,
E a brisa geme cantos de tristeza
Na rama — do pinheiro — que flutua;

E quando — o orvalho pende do arvoredo
Que se debruça p'ra beijar o rio,
E as estrelas no céu cintilam lânguidas
— Pérolas soltas de um colar sem fio;

Então eu vou sentar-me sobre a relva,
Eu vou sonhar meus sonhos ao relento,
E só conto o segredo de minh'alma
Das horas mortas ao tristonho vento.

*            *            *

quinta-feira, 10 de julho de 2014

Fátima Fonseca
próximo ao canavial
avistei um banquete de carniça
que homenageava os urubus: 

terça-feira, 8 de julho de 2014

Gargalhada

João Guimarães Rosa

Quando me disseste que não mais me amavas,
e que ias partir,
dura, precisa, bela e inabalável,
com a impassibilidade de um executor,
dilatou-se em mim o pavor das cavernas vazias...
Mas olhei-te bem nos olhos,
belos como o veludo das lagartas verdes,
e porque já houvesse lágrimas nos meus olhos,
tive pena de ti, de mim, de todos,
e me ri
da inutilidade das torturas predestinadas,
guardadas para nós, desde a treva das épocas,
quando a inexperiência dos Deuses
ainda não criara o mundo...

sexta-feira, 4 de julho de 2014

infância na roça


pé no chão
bicho de pé
banho na bacia
fogão a lenha
água na cuia
boca na botija
rapa do tacho
café no bule
melado no dedo
arroz de pilão
feijão de corda
forno de barro
ferro de brasa
mata burro
milho assado
chá de chaleira
cutucar galinha choca no ninho...
sou canto da chuva no telhado, das pastorinhas e foliões
manto de flores miúdas do cerrado
sementes que rebentam:
estrelas, flores e letras
F.Fonseca
luzdocerrado.blogspot.com.br

quinta-feira, 3 de julho de 2014

LÁ EM CIMA.


"E quando eu me curvar
cansado de tanto lutar
para o céu hei de olhar
e entre nuvens procurar
uma luz, um luar
talvez um lar
um lugar
coisa assim
que me faça sonhar
cutuque minha alma
até a bendita acordar"
autor desconhecido

sábado, 28 de junho de 2014

Raquel Junqueira
Eu bendigo a língua
que escreve saudade
que diz em mim sem alarde
a palavra que me quer de verdade.

terça-feira, 24 de junho de 2014

Sono das Águas

João Guimarães Rosa
Sono das Águas
Há uma hora certa,
no meio da noite, uma hora morta,
em que a água dorme. Todas as águas dormem:
no rio, na lagoa,
no açude, no brejão, nos olhos d'água.
nos grotões fundos.
E quem ficar acordado,
na barranca, a noite inteira,
há de ouvir a cachoeira
parar a queda e o choro,
que a água foi dormir...

Águas claras, barrentas, sonolentas,
todas vão cochilar.
Dormem gotas, caudais, seivas das plantas,
fios brancos, torrentes.
O orvalho sonha
nas placas da folhagem.
E adormece
até a água fervida,
nos copos de cabeceira dos agonizantes...
Ma nem todas dormem, nessa hora
de torpor líquido e inocente.
Muitos hão de estar vigiando,
e chorando, a noite toda,
porque a água dos olhos
nunca tem sono...
- João Guimarães Rosa, em 'Magma'.
Foto: Sertão, de M. Toledo

"SEGUE O TEU DESTINO"

 Ricardo Reis ( Heterônimo de F. Pessoa)

Segue o Teu Destino:
Segue o teu destino,
Rega as tuas plantas,
Ama as tuas rosas.
O resto é a sombra
De árvores alheias.

A realidade
Sempre é mais ou menos
Do que nós queremos.
Só nós somos sempre
Iguais a nós-próprios.

Suave é viver só.
Grande e nobre é sempre
Viver simplesmente.
Deixa a dor nas aras
Como ex-voto aos deuses.

Vê de longe a vida.
Nunca a interrogues.
Ela nada pode
Dizer-te. A resposta
Está além dos deuses.

Mas serenamente
Imita o Olimpo
No teu coração.
Os deuses são deuses
Porque não se pensam.



segunda-feira, 23 de junho de 2014

Yeda Prates
Teu gesto,
              sagrada
              vitória
              da loucura.
Teus passos,
              pegadas
              de luz
              pelos tempos.
Teu espírito,
              leveza
              de vôo
              de teus pássaros.
Teu amor,
              reflexo
              do olhar
              divino.

O Bocó

Manoel de Barros
“Quando o moço estava a catar caracóis e pedrinhas
na beira do rio até duas horas da tarde, ali
também Nhá Velina Cuê estava. A velha paraguaia
de ver aquele moço a catar caracóis na beira do
rio até duas horas da tarde, balançou a cabeça
de um lado para o outro ao gesto de quem estivesse
com pena do moço, e disse a palavra bocó. O moço
ouviu a palavra bocó e foi para casa correndo
a ver nos seus trinta e dois dicionários que coisa
era ser bocó. Achou cerca de nove expressões que
sugeriam símiles a tonto. E se riu de gostar. E
separou para ele os nove símiles. Tais: Bocó é
sempre alguém acrescentado de criança. Bocó é
uma exceção de árvore. Bocó é um que gosta de
conversar bobagens profundas com as águas. Bocó
é aquele que fala sempre com sotaque das suas
origens. É sempre alguém obscuro de mosca. É
alguém que constrói sua casa com pouco cisco.
É um que descobriu que as tardes fazem parte de
haver beleza nos pássaros. Bocó é aquele que
olhando para o chão enxerga um verme sendo-o.
Bocó é uma espécie de sânie com alvoradas. Foi
o que o moço colheu em seus trinta e dois
dicionários. E ele se estimou”.

domingo, 22 de junho de 2014

António Gedeão
... Quero dormir e sonhar
um sonho que em cor me afogue:
verdes e azuis de Renoir
amarelos de Van Gogh. ...

sexta-feira, 20 de junho de 2014

quarta-feira, 18 de junho de 2014

João Guimarães Rosa.
"Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo."

terça-feira, 17 de junho de 2014

ACORDAR, VIVER

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
Como acordar sem sofrimento?
Recomeçar sem horror?
O sono transportou-me
àquele reino onde não existe vida
e eu quedo inerte sem paixão.
Como repetir, dia seguinte após dia seguinte,
a fábula inconclusa,
suportar a semelhança das coisas ásperas
de amanhã com as coisas ásperas de hoje?
Como proteger-me das feridas
que rasga em mim o acontecimento,
qualquer acontecimento
que lembra a Terra e sua púrpura
demente?
E mais aquela ferida que me inflijo
a cada hora, algoz
do inocente que não sou?
Ninguém responde, a vida é pétrea.

©
João Guimarães Rosa
"Alegre era a gente viver devagarinho, miudinho, não se importando demais com coisa nenhuma."

segunda-feira, 16 de junho de 2014

infancia

a lua cheia ameaçava com seu poder
e por detrás dos cercadinhos
me espiavam os lobisomens e as mulas sem cabeças.

infancia

Fátima Fonseca
os picumãs pendurados
cacheavam o escuro das noites frias
minha avó me observava com ternura.

sábado, 14 de junho de 2014

Terra natal



Fátima Fonseca
coral de jandaias 
nas laranjeiras
acordava a menina 
que dormia.

Pensar

Fernando Pessoa
Tenho tanto sentimento
Que é frequente persuadir-me
De que sou sentimental,
Mas reconheço, ao medir-me,
Que tudo isso é pensamento,
Que não senti afinal.
Temos, todos que vivemos,
Uma vida que é vivida
E outra vida que é pensada,
E a única vida que temos
É essa que é dividida
Entre a verdadeira e a errada.
Qual porém é verdadeira
E qual errada, ninguém
Nos saberá explicar;
E vivemos de maneira
Que a vida que a gente tem
É a que tem que pensar.

quarta-feira, 11 de junho de 2014

VALSINHA PARA ACORDAR MENINA

Ronald Claver
Aonde irei plantar
A saudade dos olhos
Seus?
Em que canteiro
Plantarei esses olhos
Que se perderam
Juntos aos meus?
Em que caderno
Descreverei os mistérios
Dos olhos seus?
Em que paisagem
Desenharei os traços
Desses olhos tão meus?
Oh, doce menina, já sei
Onde plantar a doçura
Dos olhos seus
Adormeça seus olhos
E os deixe dormir
Nos sonhos meus.
Adélia Prado
"O sonho encheu a noite
Extravasou pro meu dia
Encheu minha vida
E é dele que eu vou viver
Porque sonho não morre."


segunda-feira, 9 de junho de 2014

Explicação da Eternidade

 José Luís Peixoto
devagar, o tempo transforma tudo em tempo.
o ódio transforma-se em tempo, o amor
transforma-se em tempo, a dor transforma-se
em tempo.

os assuntos que julgámos mais profundos,
mais impossíveis, mais permanentes e imutáveis,
transformam-se devagar em tempo.

por si só, o tempo não é nada.
a idade de nada é nada.
a eternidade não existe.
no entanto, a eternidade existe.

os instantes dos teus olhos parados sobre mim eram eternos.
os instantes do teu sorriso eram eternos.
os instantes do teu corpo de luz eram eternos.

foste eterna até ao fim.

          José Luís Peixoto, in "A Casa, A Escuridão"

Saudade

 João Guimarães Rosa
Saudade de tudo!...
Saudade, essencial e orgânica,
de horas passadas,
que eu podia viver e não vivi!...
Saudade de gente que não conheço,
de amigos nascidos noutras terras,
de almas órfãs e irmãs,
de minha gente dispersa,
que talvez até hoje ainda espere por mim...
Saudade triste do passado,
saudade gloriosa do futuro,
saudade de todos os presentes
vividos fora de mim!...
Pressa!...
Ânsia voraz de me fazer em muitos,
fome angustiosa da fusão de tudo
sede da volta final
da grande experiência:
uma só alma em um só corpo,
uma só alma-corpo,
um só,
um!...
Como quem fecha numa gota
o Oceano
afogado no fundo de si mesmo...
- João Guimarães Rosa, em 'Magma'.

domingo, 8 de junho de 2014

Renata Fagundes
"É preciso voltar. E a gente sempre volta. Volta das férias, volta das batalhas, volta no tempo ao sentir um perfume, volta a ser criança com as crianças, volta a ser racional quando a loucura pensa que é dona da casa... A gente volta, porque voltar não é retroceder, é se reencontrar nas partidas para se descobrir em novos caminhos."



Respeite suas dores. Se as valorizar demais se tornam traumas. Se as menosprezar se transformam em fantasmas. Siga a estrada do tempo. Chega o momento, que elas cansam de te acompanhar e você nem se lembra de olhar pra trás para procurar.


sexta-feira, 6 de junho de 2014

Psicologia popular

Fátima Fonseca

“sou  pé na jaca"
"mão na massa"
"caatinga pra mim é perfume"
"a vida é dura para quem é mole”
aprendi a "levantar sacudir a poeira e dar a volta por cima"
porque, "a vida quer da gente é coragem!"

A palavra Minas


Carlos Drummond de Andrade

Minas não é palavra montanhosa
É palavra abissal
Minas é dentro e fundo
As montanhas escondem o que é Minas.
No alto mais celeste, subterrânea,
é galeria vertical varando o ferro
para chegar ninguém sabe onde.

quinta-feira, 5 de junho de 2014

É por ser mais poeta que gente que sou louco?

Fernando Pessoa
Fito-me frente a frente
E conheço quem sou.
Estou louco, é evidente,
Mas que louco é que estou?
É por ser mais poeta
Que gente que sou louco?
Ou é por ter completa
A noção de ser pouco?
Não sei, mas sinto morto
O ser vivo que tenho.
Nasci como um aborto,
Salvo a hora e o tamanho.

quarta-feira, 4 de junho de 2014

Padre Colatino


Fátima Fonseca
Saudades do Padre Colatino
grão senhor do Coração de Jesus

levava bálsamo cor e alegria
para o povoado.

suas palavras eram aguardadas
com flores, cantigas, mastros e foguetes
para jubilo de cada riso
para consolo de cada pranto.

POEMINHA DE PARVOÍCE SEM CONTA

Ronald Claver

ESTAVA ENGARAPADO QUANDO VOCÊ GROSSELHAVA.
A GIRAFA GIRAVA DENTRO DO COPO DE GIM
E A GUILHOTINA PERDEU O FIO DA NAVALHA.
TUDO GRAMÁTICA SEM SUJEITO OCULTO,
DE VEZ EM QUANDO ARRISCAVA UM OBJETO DIRETO
FOI QUANDO OLHEI O ESPELHO E TE VI TRANSPARENTE E NUA.
ERA A LUA CHEIA? NÃO, NÃO ERA.
ERA A GRAMA QUE GRAMAVA OS OLHOS
ELA NÃO ERA VERDE NEM FUSCA.
ERA UM MERCEDES E UMA MERCEDES VINDOS DE PINDA.
EM MOEDA, MÓI-SE A MANHA E A NÃNA
NÃO HÁ GLOSAS, RIMAS E LIMAS
HÁ GERALDOS , GÊMEOS E GÊNIOS,
GINAS , GENTIOS E GEMIDOS.

terça-feira, 3 de junho de 2014

Fingimento

Fernando Pessoa
Dizem que finjo ou minto
Tudo que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.
Tudo o que sonho ou passo,
O que me falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.
Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê!

Afago

Renata Fagundes

Eu queria te pedir desculpas, por minhas culpas despejadas,
por minhas palavras mau pensadas, por minhas imperfeições multiplicadas.
Sempre disse que não sei fazer de conta, transparente além da conta.
Desculpa minha falta de modos, meu jeito de falar, de andar sem jeito, é que não sei ser graciosa,
tenho dias de verso outros de prosa.
Saiba que meu lado briguento é bem carinhoso e o meu não chegue perto, possui os braços abertos.
Quando digo que aguento o tranco, que sou forte, é nesse momento que viro filhote.
Você é minha boca sorrindo, meu olhar dormindo, meu cuidado, meu ninho, com você crio asas, mudo de casa, viro passarinho.

domingo, 1 de junho de 2014

TROUXESTE OS SONHOS


José  Manuel Teixeira

Trouxeste os sonhos, a planura do ventre,
as madrugadas dos pomares.

E enquanto atravesso o itinerário das palavras,
a maciez diáfana dos teus olhos invade-me a alma,

Repenso o silêncio azulado do espanto
que amacia a rebentação das glicínias.

Lá onde moram os pinheiros mansos
e recebemos a inquietação, o tempo permanece insubmisso:

eu estarei um dia, com o meu corpo,
até à fundura íntima do infinito.

sábado, 31 de maio de 2014