sexta-feira, 14 de novembro de 2014

RECEITA


Maria Solange Amado Ladeira 
Tenho uma amiga que frequentemente me pergunta como é essa coisa de escrever. Para ela deve haver uma receita da vovó, daquelas receitas que passam de mãe pra filha e que a gente não deve revelar pra ninguém o ingrediente tchan que torna único o bolo da escrita. Isso, por mais que eu garanta a ela que, na minha família, que eu saiba, não há nenhum perigo de haver o tal tipo de segredo. Desde a minha tataravó que cozinha é a parte da casa que contém tantos atrativos quanto a UTI de algum hospital, e as mulheres  preferem passar longe.
Pois é, mas de tanto ouvir dessa muy amiga que devo ter uma “carta na manga” que egoisticamente guardo a sete chaves, uma espécie de “pulo do gato” ou pulo da gata, que não conto pra ninguém, resolvi me abrir que nem mala velha. Talvez, em meio às dores do parto de um texto, se eu botar bastante reparo no desenrolar dos acontecimentos, e com a ajuda de algum Sherlock Holmes, eu possa descobrir alguma pista e estabelecer algum parâmetro, até chegar ao segredo da receita de escrever.
Vejamos. Em princípio a tarefa se revela muito difícil porque partos de textos, pelo menos dos meus, variam muito: há os textos que nascem de cesareana, outros de parto na água, outros ainda de parto de cócoras; parto normal muito poucos, mas pode ser que tenha saído algum do talo de couve.
Observação feita, vamos ao que interessa. Antes de qualquer coisa, vista uma roupa bem confortável, ferva água que um bom café pode despertar o cérebro, congele suas preocupações e dívidas por algum tempo no freezer, de vez que não há idéia criativa que resista a roupa íntima apertada e dívidas de cartão de crédito. Resolvido esse problema, sente-se em frente ao computador, de vez que papel e caneta são artefatos de antes do dilúvio. Se todos os recursos da tecnologia e o vasto mundo da internet não estiverem no papo, esqueça a possibilidade de desenvolver qualquer coisa aproveitável. Desista.
Ligue o computador, a tela se ilumina, olhe fixo para a luz tremulante; a esperança é que ela ilumine também o seu cérebro. Espere por meia hora, e se a luz da tela irritar os seus olhos e o Espírito Santo não baixar nesse espaço de tempo, então, desligue o mundo virtual e seja o que Deus quiser.
Pra ser sincera, essa primeira parte eu dispenso sempre, e sigo direto para o “seja o que Deus quiser”. Normalmente, o espermatozoide de uma idéia invade o óvulo da minha cachola e eu fico prenha em qualquer lugar, pode ser no elevador, na rua, num banheiro público. A sorte é que essa concepção é feita na maior discrição, tão rápido quanto cruzamento de coelho. Quando dou por mim, já estou gestando um feto de palavras, ainda um tanto disforme, ainda com cara de ninguém, mas já com um coração que bate ritmicamente anunciando que vai nascer.                                           Inicia-se uma gestação cheia de altos e baixos. Devo dizer que, ao contrário do feto humano, esse feto de palavras não tem um tempo certo para ficar pronto. Particularmente sou contra partos demorados. Mais de um dia, é melhor empregar o fórceps ou dar uma empurrada gigante para que o texto venha à luz.  Talvez seja preciso uma “délivrance forçada”. O certo é que quando as dores se aproximam, gosto de estar sozinha e me sentar na minha cadeira preferida, ligar a televisão (já avisei que a minha receita foge ao convencional) e ir deixando que as palavras venham se aproximando, em geral num bando confuso e barulhento. Vou botando um pouco de ordem e disciplina naquela bagunça, expulso as que não cabem no meu projeto de gravidez e digo não às que querem me embromar só para aparecer no santinho.
De um modo geral, nasce um texto enfezado, meio sujo e aos berros. É preciso dar uma limpada no nascituro, recebê-lo com carinho. Lamber a cria é imprescindível. Não vale a estranheza do “não é esse o fruto que eu planejei”. Bobagem. Contra fatos não há argumentos. Dizem que filho feio não tem pai, mas mãe sempre tem. De qualquer maneira,o DNA não nega. E uma vez lambida a cria, reconhecidamente sua, mostre-a a seus pares, liberte-se dela. Pode ser que ela arrebente para o mundo, pode ser que desponte para o anonimato. Mas você só vai saber, se desapegar, se puder dividi-la com os outros. É hora de servir o bolo e esperar que os convidados aprovem. E se depois disso tudo, seu texto agradar 100% e seu ego ameaçar sair dos trilhos, recolha-se à sua insigne ficância. Acredite, como Nelson Rodrigues, que a unanimidade é burra.

  solangesolsal@hotmail.com

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