quinta-feira, 28 de julho de 2016

A bica da escrita

                                   
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                              Maria  Apparecida  de  Mattos


No  jardim  do  meu  peito
brotou  uma  bica.
Fininha  como  quê,
mas  insistente.
Tira  força  do  mais  fundo
do  fundo  do  coração.
Brotou  uma  bica  da  escrita
no  gramado  do  meu  peito.
Em  volta  dela  há  florinhas
com  vergonha  dos  meus  sonhos,
às  vezes  bem  buliçosos,
garrulices  de  criança.
Volta  e  meia,  borboletas
rodeiam  a  água  da  bica
carregando  em  suas  asas
toda  uma  pinacoteca.
Recolho  com  a  ponta  do  lápis
as  lembranças  e  saudades
que  os  quadros  das  borboletas
conseguiram  registrar.
Depois  de  banhar  na  bica,
transformo  na  ponta  do  lápis
os  quadros  das  borboletas
em  palavras  acanhadas,
que  vou  mandando  aos  amigos
e  a  todos  os  meus  queridos,
palavras  colhidas  no  meio
do  lado  esquerdo  do  peito.

quarta-feira, 27 de julho de 2016

O rio

Jacinta  Pessoa
Tantos rios como eu abriram leito de pedras
e pranto. Um dia perguntávamos:

– Dizei-me, curva, onde vou? casa trono rocha sois
aqueles que ficam, minha lei é não parar. Sigo
fio de água, água humilde sou, para onde? Ó curva,
falai. Água de revolta, espuma e ódio nos poros
na garganta no útero, pranto de mulher, água
de fel antigo, quem é meu semelhante? Dizei, onde vou?

Leito de pedras e pranto. Súbito, próximo,
Atravessou, olhai, ele!
ali na frente, vivo, tão vivo,
ele sim! o rio das águas inúmeras. Correi
doçuras e dores, punhos, Partido, esperança nossa…

Do livro Poemas políticos, Rio de Janeiro: Livraria-Editora Casa do Estudante do Brasil, 1951

quarta-feira, 20 de julho de 2016

Não tenho estrela na testa

                                            Maria  Apparecida  de  Mattos

                     
É  pena.
Se  a  tivesse,
poderia  bem  ser  guia
de  desesperançados.
Vejo  seus  olhinhos  mansos
arregalados  de  busca,
talvez  em  alguma  esquina
apareça  o  inusitado,
a  estrela  plantada  em  brilho
na  testa  de  um  abençoado.

Eu,  não.
Infelizmente
não  tenho  estrela  na  testa.
Tudo   me  acomete:
gripe,  coceira  alérgica,
rasteiras  e  tropeções,
medida  a  mais  na  cintura,
rabugice,  implicância,
calo  e  unha  encravada,
neuroses  incrementadas
por  sustos  e  desilusões,
bicho  de  pé  e,  se  bobear,
até  piolho  acomete.

Tentei  pegar  uma  estrela
no  coração  da  poesia.
Aliás,  vivo  tentando
e  um  dia  vou  conseguir.
Vai  ter  festa  nesse  dia.
Vou  juntar  uma  cambada
obesa  de  inspiração,
com  tanta  estrela  na  testa
que  os  desesperançados
acharão  sua  esperança
e  vagarão  pelas  nuvens,
os  seus  mansos  olhinhos
brilhando  de  cintilação.

                19/julho/2016

             

quarta-feira, 13 de julho de 2016

A despalavra destino

                                              Apparecida de Mattos
(Em  referência  a  Lindolf  Bell,  em  “A  palavra  destino”)

Deixa  permanecer  em  mim
tua  palavra.
Despalavra  com  ela
a  palavra  destino.

Fecunda  com  tua  palavra
meu  desejo
intumescido  por  palavras.

Deixa  permanecer  em  mim
a  palavra  entre  homem  e  mulher.
No  teu  coração  posto  à  prova,
no  meu  coração  posto  à  prova,
esmaga  para  sempre
a  palavra  destino.

Deslizes  desacontecidos
metamorfoses  reacontecidas
metaformosa  reconstituída
memória  desfolhada
em  broto  de  ninho  novo,
deixa  morrer  em  mim
despalavrada
a  palavra  destino.

A  despalavra  destino
(Em  referência  a  Lindolf  Bell,  em  “A  palavra  destino”)

Deixa  permanecer  em  mim
tua  palavra.
Despalavra  com  ela
a  palavra  destino.

Fecunda  com  tua  palavra
meu  desejo
intumescido  por  palavras.

Deixa  permanecer  em  mim
a  palavra  entre  homem  e  mulher.
No  teu  coração  posto  à  prova,
no  meu  coração  posto  à  prova,
esmaga  para  sempre
a  palavra  destino.

Deslizes  desacontecidos
metamorfoses  reacontecidas
metaformosa  reconstituída
memória  desfolhada
em  broto  de  ninho  novo,
deixa  morrer  em  mim
despalavrada
a  palavra  destino.

segunda-feira, 11 de julho de 2016

As Profecias

                                Lindolf  Bell

(fragmentos)

I

depois de tudo
minha casa permanecerá nos fundos

minguantes novos
cidades mortas
ruas desconhecidas

barcos de vento
perdidos sons

foi lá que brinquei de longe
e perdi-me de mim
foi lá a primeira tosquia
quando me tiraram tudo

nem o leque
para afugentar a maturação
nem a haste
para defender-me das feras
nem o silêncio
para vestir-me no esquecimento

depois de tudo
minha casa permanecerá nos fundos

foi lá que brinquei de longe
e me perdi de mim

II

A flor abre-se em terra
para o forte a ser nosso.

Perto estamos
dos rios coagulados
de mel colhido aos tempos.
Perto estamos
da nocturna fé de ser impuro
benvinda das lonjuras.

Perto estamos dos infantes campos
junto ao longe tranquilo de viver.
Ouvi, solitárias meninas, solitários meninos:
         o vento chão que varre os prados
         onde somos horizontais,
                                  afinal.
                                 
III

Trago a palma na mão, aqui estou,
ante o espaço maduro de não ser.

Passam os caminhos, lúcidos tão lúcidos,
que nem pressentirão
o doido curso de nunca ser.
Passam os caminhos
a gerar e gerar
a vindoura raça
a passar e passar.

Imóvel sobre o tronco do tempo
o vento pesa-nos desde ontem.
entre a colheita e o presságio,
       o rio, o silêncio,
       a geração comigo finda
       e a esta cidade
       que ninguém povoou
       como o puro rebanho
       à espera de abdicar.

, in 'Incorporação'

A Palavra Destino


                                                     Lindolf  Bell

Deixai vir a mim
a palavra destino.

Manhã de surpresas, lascívia e gema.
Acasos felizes, deslizes.
Ovo dentro da ave dentro do ovo.
Palavra folha e flor.

Deixai vir a mim palavra
e seus versos, reversos:
         metamorfose,
         metaformosa.

Deixai vir a mim
a palavra pão-de-consolo.
Livre de ataduras, esparadrapos,
choques elétricos
e sutis guardanapos em seco engolidos socos.

Deixai vir a mim
a palavra intumescida pelo desejo
a palavra em alvoroço sutil, ardil
e ave na folhagem da memória.
A palavra estremecida entre a palavra.
A palavra entre o som
mas entre o silêncio do som.

Deixai vir a mim
a palavra entre homem e homem.
E a palavra entre o homem
e seu coração posto à prova
na liberdade da palavra coração.

Deixai vir a mim
a palavra destino.
                                           in 'Antologia Poética'



sexta-feira, 8 de julho de 2016

O nascimento da palavra

quinta-feira, 7 de julho de 2016

Rumo

Amadeu Thiago de Mello
Somente sou quando em verso.

Minhas faces mais diversas
são labirintos antigos
que me confundem e perdem

Meu pensamento perfura
muros de nada, à procura
do que não fui nem serei.

Ante a carne fêmea e branca
meu corpo se recompõe
ofertando o que não sou.

Meu caminhar e meus gestos
mal e apenas anunciam
minha ainda permanência.

Para chegar até onde
não me presumo, mas sou.
sigo em forma de palavra.

Estou num daqueles dias em que nunca tive futuro. 
Há só um presente imóvel com um muro de angústia em torno. 
A margem de lá do rio nunca, enquanto é a de lá, é a de cá, e é esta a razão intima de todo o meu sofrimento. 
Há barcos para muitos portos, mas nenhum para a vida não doer, nem há desembarque onde se esqueça. 
Tudo isto aconteceu há muito tempo, mas a minha mágoa é mais antiga.  Anônimo

sexta-feira, 1 de julho de 2016

Em conexão

                                                    Apparecida de Matos

Encostou-se  em  mim,
aquele  biscuit
plasmado no  molde  da  inocência.
Toquei-lhe  os  cabelos
com  medo  do  meu  toque.
Medo  de  empanar-lhe  o  viço.
Medo  de  trincar
o  mármore  daquela  nuca.
Estuante  de  frescor,
cruel  na  complacência,
cônscia  da  importância
do  que  ia  declarar
(a  mim,  que  já  capengo),
ela  me  disse
(falando  da  própria  precocidade):
-  Sabe  que  eu  andei
antes  de  zero  idade?
De  imediato
lhe  assegurei  que  sim,
que  essa  data  importante
eu  anotara  em  minha  agenda:
"Dora  andou  com  dez  meses  e  meio".