domingo, 30 de novembro de 2014

MARGARIDA


Maria Solange Amado Ladeira 
Margarida era de uma docilidade estranha. Uma delicadeza rude. Seca como um graveto. Definitivamente, Margarida não era cor de rosa, nem branca, nem macia. Uma negra com a consistência da vida. A perturbadora mistura do amargo e do doce que a vida nos oferece. Mas era assim. E eu gostava dela. Tinha braços fortes e a voz firme. Ásperos às vezes. Mas quando noites seguidas, eu acordava aos gritos, emaranhada nos meus terrores noturnos, eram seus braços que se estendiam  como uma árvore frondosa e sólida que nos acolhe e abraça forte. Era alí, no seu regaço que eu encontrava a paz. Ela dava um chute legal nos meus medos.
Margarida era o gigante que me protegia do mundo e dos monstros que povoavam as noites. Era eterna, sólida, incansável. Pelo menos assim parecia aos meus olhos infantis. Sempre estava alí para o que desse e viesse: quando eu esfolava os joelhos, quando as chineladas do meu pai doíam no lombo, quando os fantasmas apareciam no fundo do quintal. E estava lá nos momentos felizes também, pronta a rir e a se alegrar comigo.
Quando comecei a me apaixonar pelas palavras na escola, chegava em casa com um “muito bom” sapecado em cima da minha redação, e invariavelmente um “muito ruim” sapecado em cima do meu exercício de matemática. O “muito bom”  da redação não dava o mínimo ibope em casa, mas o “muito ruim” da matemática liderava as paradas de sucesso por pelo menos um mês (até ser substituído por outro), e me rendiam dez mandamentos de proibições. “Não irás ao cinema no domingo” era o primeiro e o preferido dos meus pais, seguiam-se outros, que eu tinha de cumprir à risca. Não havia perdão. O “muito bom” desaparecia legal diante da tragédia “muito ruim” dos números. E era aí que Margarida entrava, dando um up grade na minha auto estima, exatamente alí, na zona do agrião, onde minha fé no meu próprio taco sofria um colapso de morte. Ela me pegava pela mão, saiamos às compras: padaria, mercado, açougue, toda a vizinhança se inteirava, através  das suas informações, da minha genialidade escolar, com o fracasso  dos números devidamente escamoteado, é claro. Meu ego saia sempre recomposto desses passeios.
Margarida não sabia ler ou escrever. Era o faz tudo da minha família: babá, cozinheira, lavadeira, passadeira em uma casa povoada de crianças. Não sabia nem o que era uma redação ou um exercício de matemática. Ou o que significaria o êxito ou o fracasso nesses quesitos. Isso pouco importava. O que saltava aos olhos, era sua habilidade natural, a delicadeza, a gentileza com que segurava a barra de uma criança, no momento em que esta se sentia jogada pras traças.
O tempo passou. A criança que existe em mim não tem mais o sustentáculo dos braços fortes das muitas margaridas espalhadas por esse país. Mas ainda as procuro quando o boletim da vida vem salpicado de vermelho e todos começam a me olhar torto.
Quando minha auto estima vacila, quando o “muito bom” sai de cena, perde a força e começa a se apagar, e o ponto focal de todos os que me rodeiam se fixa no “muito ruim”. Quando começo a descer a ladeira da minha auto confiança, farejo no ar o cheiro de uma flor, meio rude, meio roceira. E aí, pego a mão da Margarida e damos uma volta no quarteirão, peito estufado de orgulho, ouvindo  vozes ao meu redor e comentários cheios de aprovação; minhas mãozinhas infantis fortemente entrelaçadas com suas mãos negras e fortes. “Muito bom”, vejo seus lábios formarem. E sorrio.
-         solangesolsal@hotmail.com       22/04/14

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