PIANO
PIANO
Fico eu aqui pensando com meus botões. Ou melhor, estava eu
aqui matutando com meu fecho éclair, que botão sem casa não funciona, e como os
recursos para o “Minha casa, minha vida” sumiram do mapa, temos que ser
criativos. Talvez seja melhor matutar com um velcro, só pra ficar de bem com a
era digital. Não importa, estou aqui elocubrando sobre como a vida é que nem
kinder ôvo, sempre trazendo surpresinhas. Nem sempre fabulosas, mas que sempre
obrigam a gente a se inquietar: posso abrir esse pacote? O que traz? Até
quando? Até onde? Papo inútil, mas inevitável. O vício de se ser humano. Fazer
o que?
Ontem eu botei reparo na cachorrada que a minha amiga tem em
casa. Barulhentos, agitados no que parecia uma angustia existencial quase
humana. Quando eu já pensava em chamar a SWAT pra botar ordem no pedaço, eis
que chega a cavalaria americana na pessoa de um cara pequeno, franzino, que tem
uma profissão interessante: “passeador de cachorro”. Um sumiço de uma hora e os
bichos chegaram tão doces e calminhos, que estou pensando seriamente em
contratar um passeador de mim.
Talvez seja essa a solução para os pruridos de inquietação
que andam me sacudindo. Às vezes eles chegam como um terremoto grau 8 na escala
Richter, que me fazem subir pelas paredes dessa vidinha mais ou menos normal
que eu levo. Às vezes, eles se aproximam como um bradisismo, bem sensual, bem tremendinho,
comendo pelas beiradinhas, como um bicho de pé invasivo, meio prazer, meio dor.
Um moto contínuo de estímulos que cutucam e cutucam e não dão trégua. Vale
qualquer coisa pra me livrar do incômodo; até um passeador de cachorro. Pelo
menos, ele deve saber algum segredo de como acalmar espíritos conturbados.
Seja como for, não obstante eu viver às voltas com o fato de
ser apenas uma mulher e não uma cachorra, de um modo geral, consigo
administrar, tanto terremotos quanto bradisismos ocasionais. A coisa aperta
mesmo quando isso acontece com os chamados seres inanimados. É onde chegamos. Ao piano. Eu tinha um piano. Ou melhor, o piano me tinha,
porque ele já estava lá quando eu nasci. E esta é a história de um triste e
angustiado fim, sem mecanismos de defesa ou um eventual passeador de cachorros pra dar um refresco.
Posso resumir assim:
Era um vez um piano, cujo, vivia num apartamento de tamanho
médio, numa família de tamanho médio, de classe média, numa cidade de tamanho
médio. Tudo medíocre, como já notaram. Acontece que o piano era inglês,
aristocrático e acima de tudo, tinha muito talento, um belo som e sempre
respondeu aos estímulos de dedos sensíveis, divinamente mancomunados com gênios
como Beethoven, Mozart, Chopin. Nessa toada, nosso piano foi se acostumando a
um tratamento cinco estrelas, mãos e dedos top de linha. Um tratamento
refinado, seus dentes só degustavam alimentos de primeira. Champagne e paté de
foie gras, com direito a biquinho e tudo.
Até que essa vida kinder ôvo veio com o tsunami surpresa e
avacalhou essa trajetória de vitórias e bom gosto. As mãos que o acariciavam
desapareceram subitamente. Nunca mais Bach, Beethoven, Mozart. Ocasionalmente o
“bife” mal tocado, um batuque aleatório com mãos sujas, até o cachorro da
família tirava uma casquinha naqueles dentes brancos/pretos e impecáveis. O
tempo foi passando, os dentes maltratados foram caindo e sem a providencia de
um implante, o piano ficou banguela. Sua voz emudeceu, ou melhor, perdeu a
força; começou a atravessar e ser atropelado nas suas harmonias e eterna
desafinações. E eis que um dia um
carroceiro passou por alí e a família, ou o que restava da família, que não
sabia o que fazer com um piano desdentado e sujo, doou aquele elefante branco,
não importando se sua ascendência pertencia à mais alta nobreza britânica.
Triste e melancólico fim. O mesmo para objetos animados e inanimados.
É alarmante, mas é isto: se depois dessa minha experiência
continuarem pensando que “piano piano si va lontano”. O buraco é mais embaixo.
A moral dessa história mostra que “piano piano, de vai mesmo é ao cemitério”.
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