terça-feira, 5 de maio de 2015

LOUCURA

Solange Amado Ladeira
Como um texto quadrado, a tarde modorrenta não prometia nada. Na vitrine, a parafernália eletrônica me acenou, e eu parei. Quando a monotonia é muito grande, até a obviedade é benvinda. Não custava olhar tantas máquinas fotográficas complicadas, objetos cujo funcionamento vai além do meu QI irritantemente normal. Só sei que parei. Foi então que senti a bofetada na cara. Um susto e definitivamente a modorrice da tarde foi para o espaço.
Tudo culpa dela. E ela estava lá. Imóvel. Me olhando curiosamente. Não havia nenhuma animosidade no olhar. Ator e ação pareciam divorciados. Mas o tapa foi doído e audível. Olhei na cara dela, ainda assustada. Então entendi. Nós nos reconhecemos.
Nosso primeiro encontro remonta aos idos de 1976 ou 1977, não estou bem certa; nos corredores do Hospital Raul Soares. Como estagiária, eu ocupava a sala de Psicologia. O corredor estava isolado, vazio e silencioso quando ela apareceu na porta da sala. Alguém me havia dito que uma das pacientes, em crise de fúria, havia escapado dos enfermeiros e estava escondida em algum lugar. É claro, foi baixar na sala onde eu trabalhava, no lado oposto ao das enfermarias. Sou sempre merecendente dessas surpresas. E a surpresa adentrou o recinto cheia de hematomas, lábios inchados e feridos. Não sei dizer em que carraspanas se meteu, antes ou durante a internação. Queria café, ou melhor, exigia. Só isso. Um cafezinho básico, um five o´clock tea, uma prosa arrevesada no meio da tarde. O papo eu tinha, meio reticente, meio tateante, engolindo o medo e devolvendo uma falsa segurança que não convencia nem uma criancinha de berço. O café, infelizmente, havia sido cortado pela eterna falta de recursos dos órgãos públicos. Então, café, nem pensar, nem xícara, mas a garrafa estava lá, como testemunho de um tempo em que as vacas eram mais gordas.
“Se não tiver café, eu retalho você com essa gilete”. E como num gesto de prestidigitação, a gilete se materializou em suas mãos”.
Caracas! Nunca me destaquei pela coragem! Minhas pernas só pensavam em bater em retirada, mas havia uma gilete entre mim e a porta. Eu sabia que a cavalaria americana chegaria, só não sabia se antes ou depois de eu virar carninha moída. O jeito era tentar ganhar tempo, jogar conversa fora, aliás, jogar e a palavra exata. As palavras saiam de mim num texto trêmulo e improvisado, qual Sherazade enrolando o sultão num texto maluco café com gilete. Finalmente, os enfermeiros me libertaram, não muito delicadamente, diga-se de passagem, que as circunstancias não permitiam, saltaram sobre ela e a arrastaram. Miseravelmente eu a deixei à própria sorte. Não lhe paguei o cafezinho prometido. Urgia livrar minha cara. Agora, quase 40 anos depois, ela deu o troco. Tive vontade de convidá-la para um café, mas vai que no meio do processo houvesse a desova de alguma gilete... A tarde quadrada já tinha ficado redonda demais.
Voltemos ao presente: ontem, sem dramas ou giletes, tomei café com uma amiga, pessoa culta, educada, finisssima, catedrática em uma prestigiada universidade, e que jamais elevou a voz em nenhuma circunstancia. Ela estava mortificada. Seu pai faleceu há alguns meses, e coube-lhe providenciar o cancelamento das linhas de telefones usadas por ele. Operação simples. Quadrada. Óbvia. Leva-se o atestado de óbito e solicita-se o desligamento à Cia. Telefônica. Certo? Errado. A atendente informou que só o titular pode pedir o desligamento do contrato. “Bom, mas o proprietário morreu, minha jovem”. Então, “ele tem de lhe passar uma procuração”. E a coisa foi por aí, num diálogo maluco de surdos. A atendente exigia que o morto comparecesse em pessoa ou então, autorizasse “de próprio punho” a operação. A doideira levou alguns dias, e só teve um END que eu não diria muito HAPPY, quando minha amiga chutou o balde perdeu completamente as estribeiras, baixou um clima de zona de baixo meretrício e minha amiga desovou palavrões que ela nem sabia que sabia, depositados quiçá no seu subconsciente. Completamente deprimida, ela terminou o relato com a informação: “Acredita que eu roguei as pragas mais horrorosas na moça? A minha fúria era tão grande por não conseguir que ela entendesse, meu ódio era tão intenso por aquela perda de tempo, aquele non sense que, literalmente, enlouqueci”.
E é dessa loucura que se trata aqui. A que vive nos cantinhos. Se a normalidade, como diz Lacan, é monótona, sem esperança, não precisamos temer porque ela não existe. A vida é um Raul Soares a céu aberto. Mesmo o texto quadrado tem cantinhos e é nos cantinhos que mora a loucura. No fundo do corredor isolado. São esses momentos fora do quadro, do quadrado, do esquadro que nos mostram a imensidão de possibilidades dessa quadratura a  que chamamos de mesmice.
São esses relâmpagos na vida e no texto que levaram William Faulkner a escrever: “o que a literatura faz é acender um fósforo no campo, no meio da noite. Um fósforo não ilumina quase nada, mas nos permite ver quanta escuridão existe ao redor”.



Maria Solange Amado Ladeira              solangesolsal@hotmail.com          28/04/15




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