Solange Amado Ladeira
Como um texto quadrado, a tarde modorrenta não prometia nada.
Na vitrine, a parafernália eletrônica me acenou, e eu parei. Quando a monotonia
é muito grande, até a obviedade é benvinda. Não custava olhar tantas máquinas
fotográficas complicadas, objetos cujo funcionamento vai além do meu QI
irritantemente normal. Só sei que parei. Foi então que senti a bofetada na
cara. Um susto e definitivamente a modorrice da tarde foi para o espaço.
Tudo culpa dela. E ela estava lá. Imóvel. Me olhando
curiosamente. Não havia nenhuma animosidade no olhar. Ator e ação pareciam
divorciados. Mas o tapa foi doído e audível. Olhei na cara dela, ainda
assustada. Então entendi. Nós nos reconhecemos.
Nosso primeiro encontro remonta aos idos de 1976 ou 1977, não
estou bem certa; nos corredores do Hospital Raul Soares. Como estagiária, eu
ocupava a sala de Psicologia. O corredor estava isolado, vazio e silencioso
quando ela apareceu na porta da sala. Alguém me havia dito que uma das
pacientes, em crise de fúria, havia escapado dos enfermeiros e estava escondida
em algum lugar. É claro, foi baixar na sala onde eu trabalhava, no lado oposto
ao das enfermarias. Sou sempre merecendente dessas surpresas. E a surpresa
adentrou o recinto cheia de hematomas, lábios inchados e feridos. Não sei dizer
em que carraspanas se meteu, antes ou durante a internação. Queria café, ou
melhor, exigia. Só isso. Um cafezinho básico, um five o´clock tea, uma prosa
arrevesada no meio da tarde. O papo eu tinha, meio reticente, meio tateante,
engolindo o medo e devolvendo uma falsa segurança que não convencia nem uma
criancinha de berço. O café, infelizmente, havia sido cortado pela eterna falta
de recursos dos órgãos públicos. Então, café, nem pensar, nem xícara, mas a
garrafa estava lá, como testemunho de um tempo em que as vacas eram mais
gordas.
“Se não tiver café, eu retalho você com essa gilete”. E como
num gesto de prestidigitação, a gilete se materializou em suas mãos”.
Caracas! Nunca me destaquei pela coragem! Minhas pernas só
pensavam em bater em retirada, mas havia uma gilete entre mim e a porta. Eu
sabia que a cavalaria americana chegaria, só não sabia se antes ou depois de eu
virar carninha moída. O jeito era tentar ganhar tempo, jogar conversa fora,
aliás, jogar e a palavra exata. As palavras saiam de mim num texto trêmulo e improvisado,
qual Sherazade enrolando o sultão num texto maluco café com gilete. Finalmente,
os enfermeiros me libertaram, não muito delicadamente, diga-se de passagem, que
as circunstancias não permitiam, saltaram sobre ela e a arrastaram.
Miseravelmente eu a deixei à própria sorte. Não lhe paguei o cafezinho
prometido. Urgia livrar minha cara. Agora, quase 40 anos depois, ela deu o
troco. Tive vontade de convidá-la para um café, mas vai que no meio do processo
houvesse a desova de alguma gilete... A tarde quadrada já tinha ficado redonda
demais.
Voltemos ao presente: ontem, sem dramas ou giletes, tomei
café com uma amiga, pessoa culta, educada, finisssima, catedrática em uma
prestigiada universidade, e que jamais elevou a voz em nenhuma circunstancia.
Ela estava mortificada. Seu pai faleceu há alguns meses, e coube-lhe
providenciar o cancelamento das linhas de telefones usadas por ele. Operação
simples. Quadrada. Óbvia. Leva-se o atestado de óbito e solicita-se o
desligamento à Cia. Telefônica. Certo? Errado. A atendente informou que só o
titular pode pedir o desligamento do contrato. “Bom, mas o proprietário morreu,
minha jovem”. Então, “ele tem de lhe passar uma procuração”. E a coisa foi por
aí, num diálogo maluco de surdos. A atendente exigia que o morto comparecesse
em pessoa ou então, autorizasse “de próprio punho” a operação. A doideira levou
alguns dias, e só teve um END que eu não diria muito HAPPY, quando minha amiga
chutou o balde perdeu completamente as estribeiras, baixou um clima de zona de
baixo meretrício e minha amiga desovou palavrões que ela nem sabia que sabia,
depositados quiçá no seu subconsciente. Completamente deprimida, ela terminou o
relato com a informação: “Acredita que eu roguei as pragas mais horrorosas na
moça? A minha fúria era tão grande por não conseguir que ela entendesse, meu
ódio era tão intenso por aquela perda de tempo, aquele non sense que,
literalmente, enlouqueci”.
E é dessa loucura que se trata aqui. A que vive nos
cantinhos. Se a normalidade, como diz Lacan, é monótona, sem esperança, não
precisamos temer porque ela não existe. A vida é um Raul Soares a céu aberto.
Mesmo o texto quadrado tem cantinhos e é nos cantinhos que mora a loucura. No
fundo do corredor isolado. São esses momentos fora do quadro, do quadrado, do esquadro
que nos mostram a imensidão de possibilidades dessa quadratura a que chamamos de
mesmice.
São esses relâmpagos na vida e no texto que levaram William
Faulkner a escrever: “o que a literatura faz é acender um fósforo no campo, no
meio da noite. Um fósforo não ilumina quase nada, mas nos permite ver quanta
escuridão existe ao redor”.
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