terça-feira, 5 de maio de 2015

Amado X Machado

Solange Amado Ladeira
Acho que sempre me senti atraída por heróis um tanto ao quanto desajeitados. Na minha adolescência, me apaixonei por um autor chamado Karl May. Tinha uma coleção de livros com títulos lindos, como: “Sob o Curdistão bravio”. Seu personagem principal era um nômade do deserto, cuja aparência e figurino fugiam do convencional, mas macho o suficiente  pra montar um cavalo árabe em pêlo e correr pelo deserto socorrendo donzelas que caiam em mãos dos bandoleiros que infestavam o pedaço. Mesmo agora, que não sou mais uma donzela suspirosa, seu nome não me sai da cachola: Hadji Halef Omar Ben Hadji Abul Abbas Ibn Hadji Dawud Al Gossara. Hadji é o fiel que faz a peregrinação até Meca, a cidade sagrada dos muçulmanos. Ben Hadji: o filho do Hadji; Ibn Hadji: o neto do Hadji. Nenhum deles tinha feito a tal peregrinação. Mas isso é só um detalhe. O que interessa aqui é esse tipo esquerdo de herói, como o detetive Sam Spade, do inesquecível Dashiel Hammet, personagens sempre fora dos esquadros, meio inacabados, precisando de retoques.
E isto posto, fico tentada a pegar alguns personagens de Machado de Assis que me deram bastante frisson, como Capitu e Bentinho e misturar num liquidificador com Gabriela e d. Flor de Jorge Amado. Vocês vão jurar que Machado andou lendo Jorge Amado e vice versa. Botem em d. Flor de Jorge Amado, os olhos de ressaca de Capitu, em Gabriela, os olhos de cigana oblíquos e dissimulados, e temperem Capitu com cravo e canela, uma pitadinha de sal e sol. Misturem num liquidificador a sem vergonhice explícita de umas, com a sensualidade dissimulada de outra. E provem. O gosto é parecido. E bom.
E o que dirão de Bentinho e do farmacêutico Teodoro Madureira, marido de d. Flor? No dizer de Machado, Bentinho “conhecia as regras do escrever, sem suspeitar as do amar; tinha orgias de latim e era virgem de mulheres”. O marido de D. Flor não ficava atrás. A mistura dos dois dá uma desesperada burocracia sexual, prazer de  repartição pública. A explosão sexual de Capitu, de D. Flor e de Gabriela, passa por cima de seus parceiros numa dança sensual, a dança da primeira, delicada, harmoniosa, insinuante, a dança das outras, agressiva, forte, erótica. Mulheres irmãs, e o desespero de uma fogueira que não se pode apagar com um conta gotas. É essa a receita que permite rimar Amado com Machado. Uma mistura que dá caldo, e continua a provocar prazer de se degustar em qualquer momento. Mesmo que seja só uma tentativa inacabada, porque – essa é a semelhança : o que nunca foi.
De resto, penso que o epitáfio que Machado colocou no túmulo de Bentinho serve para todos nós, com as mesmas letras bem pequenas: “tentou ser, não conseguiu; tentou ter, não possuiu; tentou continuar, não prosseguiu, e nessa vida de expectativas frustradas, tentou amar... pois bem, não conseguiu”. Afinal, amar é verbo transitivo. Ou não?                             Ma. Solange Amado Ladeira  02/09/2014



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