Solange Amado Ladeira
Acho que sempre me senti atraída por heróis um tanto ao
quanto desajeitados. Na minha adolescência, me apaixonei por um autor chamado
Karl May. Tinha uma coleção de livros com títulos lindos, como: “Sob o
Curdistão bravio”. Seu personagem principal era um nômade do deserto, cuja
aparência e figurino fugiam do convencional, mas macho o suficiente pra montar um cavalo árabe em pêlo e correr
pelo deserto socorrendo donzelas que caiam em mãos dos bandoleiros que
infestavam o pedaço. Mesmo agora, que não sou mais uma donzela suspirosa, seu
nome não me sai da cachola: Hadji Halef Omar Ben Hadji Abul Abbas Ibn Hadji
Dawud Al Gossara. Hadji é o fiel que faz a peregrinação até Meca, a cidade
sagrada dos muçulmanos. Ben Hadji: o filho do Hadji; Ibn Hadji: o neto do
Hadji. Nenhum deles tinha feito a tal peregrinação. Mas isso é só um detalhe. O
que interessa aqui é esse tipo esquerdo de herói, como o detetive Sam Spade, do
inesquecível Dashiel Hammet, personagens sempre fora dos esquadros, meio
inacabados, precisando de retoques.
E isto posto, fico tentada a pegar alguns personagens de
Machado de Assis que me deram bastante frisson, como Capitu e Bentinho e
misturar num liquidificador com Gabriela e d. Flor de Jorge Amado. Vocês vão
jurar que Machado andou lendo Jorge Amado e vice versa. Botem em d. Flor de
Jorge Amado, os olhos de ressaca de Capitu, em Gabriela, os olhos de cigana
oblíquos e dissimulados, e temperem Capitu com cravo e canela, uma pitadinha de
sal e sol. Misturem num liquidificador a sem vergonhice explícita de umas, com
a sensualidade dissimulada de outra. E provem. O gosto é parecido. E bom.
E o que dirão de Bentinho e do farmacêutico Teodoro
Madureira, marido de d. Flor? No dizer de Machado, Bentinho “conhecia as regras
do escrever, sem suspeitar as do amar; tinha orgias de latim e era virgem de
mulheres”. O marido de D. Flor não ficava atrás. A mistura dos dois dá uma
desesperada burocracia sexual, prazer de repartição pública. A explosão sexual de
Capitu, de D. Flor e de Gabriela, passa por cima de seus parceiros numa dança
sensual, a dança da primeira, delicada, harmoniosa, insinuante, a dança das
outras, agressiva, forte, erótica. Mulheres irmãs, e o desespero de uma
fogueira que não se pode apagar com um conta gotas. É essa a receita que
permite rimar Amado com Machado. Uma mistura que dá caldo, e continua a
provocar prazer de se degustar em qualquer momento. Mesmo que seja só uma
tentativa inacabada, porque – essa é a semelhança : o que nunca foi.
De resto, penso que o epitáfio que Machado colocou no túmulo
de Bentinho serve para todos nós, com as mesmas letras bem pequenas: “tentou
ser, não conseguiu; tentou ter, não possuiu; tentou continuar, não prosseguiu,
e nessa vida de expectativas frustradas, tentou amar... pois bem, não conseguiu”.
Afinal, amar é verbo transitivo. Ou não? Ma. Solange Amado
Ladeira 02/09/2014
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