quarta-feira, 20 de maio de 2015

ACHTUNG! VERBOTEN!
 Solange Amado 
Aeroporto é como parto, diz um amigo meu.  A gente tem de esquecer da peleja das malas, do cansaço,  dos corredores infinitos, dos aviões apertados, pra poder tentar de novo. Uma vez esquecidas as dores do aeroporto, lá vamos  nós de mala e cuia pagar uns micos básicos pelo mundo afora. Encontrei uma amiga, na Suiça, fazendo movimentos vigorosos de natação, na frente de uma vendedora pra explicar que queria um relógio à prova d’água. Em Praga, após ter pedido uma informação em inglês a um guarda, meu amigo e eu ouvimos uma longa explicação em tcheco sobre como encontrar determinada rua. Tentamos inutilmente deter o caudal de palavras ininteligíveis, até que nossas bocas foram tomando o formato de um OOOOOO um tanto imbecil e explodimos os três numa gargalhada incontida. Em Budapest, tentávamos bravamente decifrar um cardápio em húngaro, maldizendo os hieróglifos à nossa frente e o garçon, que se mantinha impassível como um dois de paus, alheio ao nosso drama, até que ele soltou: “podem falar em português. Eu sou de Lisboa”. Foi uma festa, um alívio e um contrangimento. É verdade. Tudo isso faz parte do cardápio do viajante, tão certo como o prazer, a dor e a surpresa de encarar o diferente. O único detalhe desagradável é quando você se torna o centro do “imbròglio”. Aí, a coisa aperta.
Pra falar a verdade, nunca antes me deparei com o verboten radical do alemão. Sou neófita em rigidez de regras e ordens, habitante que sou do “jeitinho brasileiro”. Assim, nossa turminha, com o otimismo próprio dos viajandantes, comprou ingresso para percorrer 18 museus, embora eu ache que, em matéria de museu, três é uma quantidade pra lá de suficiente; mesmo porque, sempre tenho medo de que me confundam com um fóssil e não me deixem sair. Escolhemos primeiro o Museu egípcio. Na véspera, uma senhora paulista permaneceu de pé na frente do busto de Nefertiti em profunda e emocionada reverência. Vai daí que ficou todo mundo doido pra descobrir o feitiço da rainha egípcia. Lá fora, a temperatura era de 3 graus. Nos armamos de casacos, cachecóis, toucas, máquinas fotográficas, óculos, fones de ouvido, uma parafernália de dar dó, e partimos pra enfrentar o armagedon egípcio. E eis que, logo de cara, a eficiência alemã nos atropela: Nein! Nein! Nein! Fomos expoliados de toda a carga de agasalhos, máquinas e adereços; uma alemã corpulenta, com cara de poucos amigos junta toda a tralha e nos entrega uma plaquinha com um número; fazemos uma fila (alemão faz fila pra tudo) e marchamos museu adentro, quer dizer, os outros marcharam, porque eu... Nein! Nein! Nein! Esqueci de tirar minha bolsinha atravessada no ombro. Com ela não haveria Nefertiti. Tentei pegar a plaquinha salvadora com meu amigo, mas, ele já estava umas duas salas adiante. Nein! Nein! Nein! Não posso penetrar no museu com aquele objeto altamente suspeito. O jeito foi voltar à sala de strip tease.  Um casal que estava hospedado no mesmo hotel, gentilmente permitiu que eu colocasse minha bolsa junto com a parafernália deles, no mesmo cabide. Eles, presumivelmente,  também não iriam demorar e eu sabia qual era o cabide. Solucionado o impasse, pude ver os segredos egípcios e verificar devidamente a perfeição da Nefertiti, . Meia hora de caminhada e resolvemos pegar nossos breguetes; tínhamos pressa em partir para o segundo museu. Foi aí que a coisa azedou. Meu amigo entregou a plaquinha, a fraulein a recebeu com cara de poucos amigos e resgatamos nossas roupas, mas... cadê minha bolsa? Estava no cabide do outro casal. Explicamos o fato em português, espanhol, e inglês, mas, a mulher permanecia com cara de dromedário cansado, apontava a plaquinha e dizia: “Nein! Nein! Nein! Impasse formado. Encontramos uma brasileira que traduziu o impasse para o alemão. Inútil. A mulher apontava a plaquinha e repetia Nein! Nein! Nein! Estávamos diante do muro de Berlim. A coordenadora do Museu é chamada, pergunto a ela se posso entrar no compartimento dos agasalhos para procurar minha bolsa. Nein! Nein! Nein! Regras são regras. Duas horas de negociações e o jeitinho brasileiro consegue uma pequena vitória, entro ladeada por um guarda e pela coordenadora, e lá está minha bolsa, e como na música do Roberto Carlos, “meu cachorro me sorri latindo”, minha bolsa me espera sorrindo. Ufa! Alívio! Estendo rápido a mão pra ela, mas uma bota nazista quase arranca meu dedinho do pé. Nein! Nein! Nein!  A bolsa pertence ao casal que possui a plaquinha. Digo à coordenadora que pode abrir, pegar meus documentos e comparar com o passaporte que trago na cintura. Nein! Nein! Nein! Ninguém pode abrir antes do retorno do casal e da plaquinha. Entro em desespero. Quem pode abrir a bolsa? Angela Merckel, o Santo Padre? Hitler trazido às pressas do bunker ali perto?  Dir-se-ia que é um teatro do absurdo, parece até Becket com sua “Esperando Godot”. Só que eu não estava esperando Godot, estava esperando minha bolsa, a um braço de distância e inalcançável. Já estava cansada desse non sense. Lá fora, meu amigo fazia um discurso pra fraulein mal humorada: “Você vai ver, sua nazista, vou lhe rogar uma praga, quando a gente sair daqui, você vai trocar todas essas plaquinhas e isso aqui vai virar o inferno de Dante”. Inútil perder o latim. Ninguém entendia nada e a mulher olhava pra ele impassível, com o mesmo ar de dromedário cansado. Mais uma hora se passou antes que o casal fanático por museus, finalmente aparecesse e todos corressem ao seu encontro. A libertação! Ah! Mas, se estão pensando que foi facinho resolver aquele impasse agora que a plaquinha salvadora aparecera? Nein! Nein! Nein! Regras são regras no mundo alemão. Meus amigos tiveram de se enfiar no final de uma fila quilométrica que vagarosamente recuperava seus haveres. Só então, resgatei minha bolsa e o “imbróglio” se desfez.
Agora vocês me perguntam, arriscarei eu, algum dia, a enfrentar mais uma vez a burrocracia alemã? Pode ser, mas, ao museu de Nefertiti? NEIN! NEIN! NEIN!

Maria Solange Amado Ladeira  solangesolsal@hotmail.com

23/10/2012

Nenhum comentário:

Postar um comentário