ACHTUNG! VERBOTEN!
Solange Amado
Aeroporto é como parto, diz um amigo meu. A gente tem de esquecer da peleja das malas,
do cansaço, dos corredores infinitos,
dos aviões apertados, pra poder tentar de novo. Uma vez esquecidas as dores do
aeroporto, lá vamos nós de mala e cuia
pagar uns micos básicos pelo mundo afora. Encontrei uma amiga, na Suiça,
fazendo movimentos vigorosos de natação, na frente de uma vendedora pra
explicar que queria um relógio à prova d’água. Em Praga, após ter pedido uma
informação em inglês a um guarda, meu amigo e eu ouvimos uma longa explicação
em tcheco sobre como encontrar determinada rua. Tentamos inutilmente deter o
caudal de palavras ininteligíveis, até que nossas bocas foram tomando o formato
de um OOOOOO um tanto imbecil e explodimos os três numa gargalhada incontida.
Em Budapest, tentávamos bravamente decifrar um cardápio em húngaro, maldizendo
os hieróglifos à nossa frente e o garçon, que se mantinha impassível como um
dois de paus, alheio ao nosso drama, até que ele soltou: “podem falar em
português. Eu sou de Lisboa”. Foi uma festa, um alívio e um contrangimento. É
verdade. Tudo isso faz parte do cardápio do viajante, tão certo como o prazer,
a dor e a surpresa de encarar o diferente. O único detalhe desagradável é
quando você se torna o centro do “imbròglio”. Aí, a coisa aperta.
Pra falar a verdade, nunca antes me deparei com o verboten
radical do alemão. Sou neófita em rigidez de regras e ordens, habitante que sou
do “jeitinho brasileiro”. Assim, nossa turminha, com o otimismo próprio dos
viajandantes, comprou ingresso para percorrer 18 museus, embora eu ache que, em
matéria de museu, três é uma quantidade pra lá de suficiente; mesmo porque,
sempre tenho medo de que me confundam com um fóssil e não me deixem sair.
Escolhemos primeiro o Museu egípcio. Na véspera, uma senhora paulista
permaneceu de pé na frente do busto de Nefertiti em profunda e emocionada
reverência. Vai daí que ficou todo mundo doido pra descobrir o feitiço da
rainha egípcia. Lá fora, a temperatura era de 3 graus. Nos armamos de casacos,
cachecóis, toucas, máquinas fotográficas, óculos, fones de ouvido, uma
parafernália de dar dó, e partimos pra enfrentar o armagedon egípcio. E eis
que, logo de cara, a eficiência alemã nos atropela: Nein! Nein! Nein! Fomos
expoliados de toda a carga de agasalhos, máquinas e adereços; uma alemã
corpulenta, com cara de poucos amigos junta toda a tralha e nos entrega uma
plaquinha com um número; fazemos uma fila (alemão faz fila pra tudo) e
marchamos museu adentro, quer dizer, os outros marcharam, porque eu... Nein!
Nein! Nein! Esqueci de tirar minha bolsinha atravessada no ombro. Com ela não
haveria Nefertiti. Tentei pegar a plaquinha salvadora com meu amigo, mas, ele
já estava umas duas salas adiante. Nein! Nein! Nein! Não posso penetrar no
museu com aquele objeto altamente suspeito. O jeito foi voltar à sala de strip
tease. Um casal que estava hospedado no
mesmo hotel, gentilmente permitiu que eu colocasse minha bolsa junto com a
parafernália deles, no mesmo cabide. Eles, presumivelmente, também não iriam demorar e eu sabia qual era
o cabide. Solucionado o impasse, pude ver os segredos egípcios e verificar
devidamente a perfeição da Nefertiti, . Meia hora de caminhada e resolvemos
pegar nossos breguetes; tínhamos pressa em partir para o segundo museu. Foi aí
que a coisa azedou. Meu amigo entregou a plaquinha, a fraulein a recebeu com
cara de poucos amigos e resgatamos nossas roupas, mas... cadê minha bolsa?
Estava no cabide do outro casal. Explicamos o fato em português, espanhol, e
inglês, mas, a mulher permanecia com cara de dromedário cansado, apontava a
plaquinha e dizia: “Nein! Nein! Nein! Impasse formado. Encontramos uma
brasileira que traduziu o impasse para o alemão. Inútil. A mulher apontava a
plaquinha e repetia Nein! Nein! Nein! Estávamos diante do muro de Berlim. A
coordenadora do Museu é chamada, pergunto a ela se posso entrar no
compartimento dos agasalhos para procurar minha bolsa. Nein! Nein! Nein! Regras
são regras. Duas horas de negociações e o jeitinho brasileiro consegue uma
pequena vitória, entro ladeada por um guarda e pela coordenadora, e lá está
minha bolsa, e como na música do Roberto Carlos, “meu cachorro me sorri
latindo”, minha bolsa me espera sorrindo. Ufa! Alívio! Estendo rápido a mão pra
ela, mas uma bota nazista quase arranca meu dedinho do pé. Nein! Nein!
Nein! A bolsa pertence ao casal que
possui a plaquinha. Digo à coordenadora que pode abrir, pegar meus documentos e
comparar com o passaporte que trago na cintura. Nein! Nein! Nein! Ninguém pode
abrir antes do retorno do casal e da plaquinha. Entro em desespero. Quem pode
abrir a bolsa? Angela Merckel, o Santo Padre? Hitler trazido às pressas do
bunker ali perto? Dir-se-ia que é um
teatro do absurdo, parece até Becket com sua “Esperando Godot”. Só que eu não
estava esperando Godot, estava esperando minha bolsa, a um braço de distância e
inalcançável. Já estava cansada desse non sense. Lá fora, meu amigo fazia um
discurso pra fraulein mal humorada: “Você vai ver, sua nazista, vou lhe rogar
uma praga, quando a gente sair daqui, você vai trocar todas essas plaquinhas e
isso aqui vai virar o inferno de Dante”. Inútil perder o latim. Ninguém
entendia nada e a mulher olhava pra ele impassível, com o mesmo ar de
dromedário cansado. Mais uma hora se passou antes que o casal fanático por
museus, finalmente aparecesse e todos corressem ao seu encontro. A libertação!
Ah! Mas, se estão pensando que foi facinho resolver aquele impasse agora que a
plaquinha salvadora aparecera? Nein! Nein! Nein! Regras são regras no mundo
alemão. Meus amigos tiveram de se enfiar no final de uma fila quilométrica que
vagarosamente recuperava seus haveres. Só então, resgatei minha bolsa e o
“imbróglio” se desfez.
Agora vocês me perguntam, arriscarei eu, algum dia, a
enfrentar mais uma vez a burrocracia alemã? Pode ser, mas, ao museu de
Nefertiti? NEIN! NEIN! NEIN!
23/10/2012
Nenhum comentário:
Postar um comentário