A CULPA
Solange Amado
As coisas estão ficando esquisitas. A raposa está tomando
conta das uvas. E assim, nasce uma desconfiança universal e infinita, sem
precedentes. Rola a maior paranoia. E eu no meio disso tudo tendo de
administrar meus fantasmas. Ando até desconfiada de mim.
Explico. Tenho certeza de que tenho culpa. Mensalão,
lavajato, bala perdida, qualquer negócio. Eu me escondo debaixo da mesa, dentro
do guarda roupa, na casa do vizinho, mas não escapo.
Bom, o vaso chinês da vovó eu quebrei mesmo, disso eu me
lembro. A porta da geladeira também parece que tive participação ativa. É
verdade também que esganei o filhotinho da gata. Mas aí, foi uma questão de
falta de coordenação motora. Foi um assassinato cheio de boas intenções. Eu só
queria abraça-lo e beijá-lo, mas ninguém me avisou que minha coordenação motora
de cortadora de cana não serviria para passarinhos, gatinhos, e pintinhos de
estimação. E se tivessem avisado, mal saída das fraldas, eu não teria mesmo
nenhuma condição de não esganar filhotinhos de espécimes variadas. Mesmo assim,
sem chance. Eu não ficava livre das chineladas.
Vai daí que é por isso que hoje não tenho mais assassinatos
no meu currículo, nem pequenos roubos (não tenho registro dos grandes), mas de
tanto ser castigada, fui me acostumando com essa vida viciada de 50 tons de
cinza. Foi inevitável. Incorporei a culpa.
Nunca passou pela cabeça da minha família que eu não tinha o
dom de me bilocar. Que eu não poderia estar na escola e ao mesmo tempo invadir
o escritório do meu pai e entornar guaraná nos seus processos. Minha família de
Sherloques nunca se preocupava com esses detalhes de menor importância, fora
que entre meus irmãos, já havia, naquele tempo, a figura da delação premiada. E
uma infinidade de dedos duros.
Com o tempo, aprendi que se era para o bem de todos e felicidade
geral da nação, era melhor me declarar culpada.
Com esse passado me condenando, e como os pretensos culpados
dos malfeitos múltiplos que assolam esse país nunca aparecem, e a grossa grana
desviada virou estrelinha, só me resta assumir a culpa e esperar a chinelada na
bunda.
Não vou ser a primeira. Li esses dias que uma senhora
respeitável, descobriu debaixo da casa dela, um cemitério de escravos. Pois nos
próximos dias, pretendo abrir o meu armário e expor ao mundo uma respeitável
ossada de malfeitos, que remonta ao século passado.
Vai daí que, na falta de alguma outra criatura mais
traumatizada por um passado perverso, assumo a culpa da roubalheira que assola
esse país. Não me resta outra alternativa, levando-se em conta a minha vida
pregressa. Mas que me perdoem vocês mais esperançosos: não sei onde está a
grana. Eu e o Maluf não temos contas na Suiça. Sou modestamente uma mulher do
lar. Se quiserem uma mulher dólar, podem tirar o cavalo da chuva. Não vai rolar.
E em sendo assim, acho que vai adiantar pouco esse meu
prurido de “mea culpa”. No frigir dos ovos, a única coisa que eu posso
devolver, é um grampeador que surrupiei da mesa de um colega de serviço em
1970. Mas aviso que não está funcionando mais. Tal qual essas minhas boas
intenções. Afinal, de boas intenções o inferno está
cheio!
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