COMPASSO BINÁRIO
Solange Amado
Um azul intenso, brilhante como um espelho refletindo o sol.
Um mar de lembranças. Toda a água escapando dos meus olhos, salgada, ardente,
picante, molhando o mar e um mundo de imagens agridoces. Lembranças que
acalento num ir e vir de ondas modorrentas como aquele final de tarde, mantendo
em banho maria a minha melancolia. Aquela onda que vinha, tocava meus pés com a
mesma leveza de uma mulher criança, uma doce e incansável guerreira, vigiando
atentamente a nossa infância e nos permitindo cortar o D da palavra
deficiência, transformando-a pelo resto de nossas vidas, na eficiência de tornar possível a alegria, ingenuidade e
leveza de pés descalços, água fria e segurança de um Procon humano. Menina
eterna, voltava agora, junto com aquela onda para um beijo esparramado de
espuma, naquele final do dia. Mal tive tempo de lhe dizer baixinho “obrigada” e
lá ia ela de volta para o alto mar. Nem bem aquela onda de emoções abandonava
as minhas retinas, outra o trazia no seu bojo: meu primeiro amor, aquele do
primeiro beijo, do primeiro espanto, do primeiro pranto de dor, a primeira
bendita sacanagem, que nos faz vislumbrar um mundo de prazer até então
desconhecido do meu universo de pirralha. Meu grande e vasto amigo Gabriel foi
meu primeiro esqueleto no armário; seguiram-se outros bem mais amargos. Nenhum
tão gentil e com uma esqueletice tão inocente. Meu amigo Gabriel que me dedicou
um capítulo no livro da sua vida, e se foi tão cedo, volta por um instante e me
agarra os pés num beijo rápido, suave e salgado. Um a um, num vai e vem
incesssante, o mar, como a vida, generoso e avaro, me traz e me leva meus
fantasmas em frações de segundo: minha babá, tão querida e nefasta, que cheia
de candura me embalava com um carinho regado a histórias de terror,
infernizando o meu sono com pesadelos numa frequência monótona e contínua, como
as ondas que vão e vêm nesse fim de tarde. Era bom. Era ruim. Mas não somos
todos assim, paradoxais? Seja lá o que for, não houve tempo para despedidas. O
mar levou a doçura, o terror, os pesadelos, sem me dar tempo de entender esse
odiamor paradoxal de minha infância. Deito-me na areia. A próxima onda mexe nos
meus cabelos, reconheço os dedos da minha avó ao me fazer dormir. Beijo aquela
água salgada, lambo minhas recordações com voluptuosidade. Não sei quando nos
reencontraremos. Foi só um momento fugaz em clave de sol. Momento em que o
grande maestro do universo regeu o côro das minhas recordações no compasso
binário do mar.
11/09/12
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