quarta-feira, 20 de maio de 2015

COMPASSO BINÁRIO
Solange Amado
Um azul intenso, brilhante como um espelho refletindo o sol. Um mar de lembranças. Toda a água escapando dos meus olhos, salgada, ardente, picante, molhando o mar e um mundo de imagens agridoces. Lembranças que acalento num ir e vir de ondas modorrentas como aquele final de tarde, mantendo em banho maria a minha melancolia. Aquela onda que vinha, tocava meus pés com a mesma leveza de uma mulher criança, uma doce e incansável guerreira, vigiando atentamente a nossa infância e nos permitindo cortar o D da palavra deficiência, transformando-a pelo resto de nossas vidas, na eficiência  de tornar possível a alegria, ingenuidade e leveza de pés descalços, água fria e segurança de um Procon humano. Menina eterna, voltava agora, junto com aquela onda para um beijo esparramado de espuma, naquele final do dia. Mal tive tempo de lhe dizer baixinho “obrigada” e lá ia ela de volta para o alto mar. Nem bem aquela onda de emoções abandonava as minhas retinas, outra o trazia no seu bojo: meu primeiro amor, aquele do primeiro beijo, do primeiro espanto, do primeiro pranto de dor, a primeira bendita sacanagem, que nos faz vislumbrar um mundo de prazer até então desconhecido do meu universo de pirralha. Meu grande e vasto amigo Gabriel foi meu primeiro esqueleto no armário; seguiram-se outros bem mais amargos. Nenhum tão gentil e com uma esqueletice tão inocente. Meu amigo Gabriel que me dedicou um capítulo no livro da sua vida, e se foi tão cedo, volta por um instante e me agarra os pés num beijo rápido, suave e salgado. Um a um, num vai e vem incesssante, o mar, como a vida, generoso e avaro, me traz e me leva meus fantasmas em frações de segundo: minha babá, tão querida e nefasta, que cheia de candura me embalava com um carinho regado a histórias de terror, infernizando o meu sono com pesadelos numa frequência monótona e contínua, como as ondas que vão e vêm nesse fim de tarde. Era bom. Era ruim. Mas não somos todos assim, paradoxais? Seja lá o que for, não houve tempo para despedidas. O mar levou a doçura, o terror, os pesadelos, sem me dar tempo de entender esse odiamor paradoxal de minha infância. Deito-me na areia. A próxima onda mexe nos meus cabelos, reconheço os dedos da minha avó ao me fazer dormir. Beijo aquela água salgada, lambo minhas recordações com voluptuosidade. Não sei quando nos reencontraremos. Foi só um momento fugaz em clave de sol. Momento em que o grande maestro do universo regeu o côro das minhas recordações no compasso binário do mar.
                                Maria Solange Amado Ladeira – solangesolsal@hotmail.com

                                11/09/12

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