Maria
Solange Amado Ladeira
Padre Cirilo andava cansado do seu rebanho. Aliás, andava
cansado. Ponto. Um rebanho que mais parecia boi de matadouro; nenhuma reação.
Nem coceirinha de bicho de pé, nada fazia aquela lamentável audiência sair dos
esquadros. Às vezes, tinha a impressão de que, se se lançasse numa disparatada
homilia de duas horas em grego, aquele olhar passivo e malemolente da platéia
continuaria a revelar a marcha lenta de um crepúsculo, que parecia habitar
eternamente o povo daquelas paragens.
Nem era preciso muita perspicácia para chegar ao diagnóstico:
“Excesso de passado, escassez de futuro”. Nem espalhar pregos nos bancos da
Igreja faria aquela gente tirar o traseiro da poltrona, do berço esplêndido da
estagnação. Nenhuma perspectiva. Nenhum prurido de esperança. E o que é pior,
aquilo pegava. Desesperança é algo contagioso. Padre Cirilo começava a sentir
os sintomas dessa epidemia.
E eis que, no meio dessa modorra sertaneja, lá vinha uma
notícia alvissareira: talvez embarcando nas águas papais, em sua opção pela
pobreza, o Sr. Arcebispo resolveu que era hora de visitar os primos pobres da
paróquia. Agora era engraxar os sapatos, remendar a batina, trocar os panos do
altar e agitar a mulherada da paróquia na preparação dos acepipes a serem
consumidos pela tropa arcebispal. Lá vinha o Sr. Arcebispo trazer água fresca
para a secura das almas do sertão, sacudir a poeira da estrada e quem sabe,
conduzir aquele rebanho de reses desgarradas para algum pasto mais promissor.
Cirilo teve um comichão de esperança. Quem sabe?
Era uma visita breve, uma pausa de descanso na viagem do
arcebispo – comer alguns quitutes, celebrar a Santa Missa, aliviar a bexiga e
seguir viagem. Não era muito, é verdade, mas tinha de ser o bastante nesse
rincão que nem constava no mapa.
Era aquele o grande dia! Igreja enfeitada, fatiota nova,
rebanho em peso cheio de curiosidade, e lá vem o arcebispo com o séquito
púrpura, beija mãos, rapapés, um frenesi de santidade.
Fazia um calor dos diabos, o gordo sacerdote, suando em bicas
e com o estomago nas costas, topou a cachacinha da terra e a famosa feijoada da
dona Raimundina, que ninguém ousava desprezar e onde orelhas, pés, gordurinhas
de um porquinho especialmente abatido para a ocasião, boiavam vigorosamente entrelaçados
em gulosa paixão.
E como não existe pecado do lado de baixo do Equador, nem o
da gula, a Missa foi ficando na corda do sino e o latim do arcebispo mais
grudento do que arroz de cadeia.
Cirilo, aflito, não conseguiu evitar a tragédia. A visita desandou
junto com o intestino do prelado visitante, conspurcando o templo Santo,
espalhando um odor estranho e inesperado, não exatamente de santidade e
manchando a reputação dos visitantes e a solenidade do acontecimento.
A manguaça do arcebispo caiu como uma bomba entre as ovelhas
do seu humilde rebanho. Ninguém sabia o que fazer, até o piriri de Sua
Reverendissima se encarregar de nivelar realidades e expectativas entre o mundo
colorido de púrpura clerical e o mundo cinzento da poeira sertaneja. Pés escalavrados,
chapéu nas mãos, bronzeado e desconfiança adquiridos na labuta solitária da
roça, a gente foi se chegando. Logo apareceu um providencial chá de boldo, café
forte, ervas diversas, palpites das comadres e mais biritas pros homens. O
resto da visita foi de tapinhas nas costas, cantoria de viola e até se esboçou
um bailarico.
Ite Missa est, pensou Cirilo. Mas vamos e venhamos, nada como
uma boa dor de barriga para aproximar dois mundos tão incompatíveis. Pelo menos
por um dia, o ar ficou menos denso, as diferenças se diluíram e se pôde
respirar esperança.
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