quinta-feira, 9 de novembro de 2017

Maria, a matriarca

                                        


                                                          Fátima  Fonseca

Fevereiro, 1902. Estamos no cerrado do norte de Minas Gerais. O dia começava a clarear. Juca arriava  os cavalos e Serafina, sua mulher, passava o café no coador. Eles moravam numa casa dentro da floresta com animais, curral, engenho... Esse dia era domingo e eles se preparavam para ir a cavalo assistir à missa num arraial próximo. Era quase uma pequena viagem, que eles faziam com fé e alegria, pois o padre só ia ao arraial celebrar missas duas vezes por ano.

Do outro lado, embrenhada mato adentro, Ritinha contorcia-se de dores e dava a luz a uma criança. Ritinha era solteira e havia ficado grávida de um colono da fazenda de seus pais. Escondeu essa gravidez com muitos babados e sofrimento. Perder a virgindade solteira seria uma desonra, uma traição imperdoável.  A criança nasceu ali no matagal e Ritinha a jogou entre as folhas de piteira, planta com espinhos, típica do cerrado. - Sinto muito, mas logo, logo você será devorada por algum animal faminto. Se eu a levo comigo, eu é que serei devorada viva pelo meu pai, ou ser apedrejada e cair na boca de todos os moradores dos arredores. Ritinha vivia esse drama.
Ritinha havia ficado livre daquele feto e voltou para casa.

Enquanto isso, Juca e sua mulher, a caminho do arraial, estavam acostumados a ouvir o trotar de seus cavalos cortar o silêncio das estradinhas com matas fechadas, mas naquele domingo eles tiveram que parar os animais para decifrar aquele piado que ecoava distante.  É miado de um gato! Exclamou Juca para Serafina. ­- Não! Estranho! Muito estranho, retrucou ela. Ambos tiveram o ímpeto de descer dos cavalos e foram seguindo aquele som que, quanto mais eles se aproximavam, mais parecia o choro de um bebê recém-nascido. Lá estava Maria Pia, nome que logo recebeu, suja de sangue, cordão umbilical. Serafina tirou suas anáguas, enrolou a menina e retornaram para casa. Maria tornou-se a alegria do casal, que não tinha filhos. A vizinhança daqueles arredores rurais comentava, curiosos, o ocorrido.

Ritinha e sua mãe ficaram mudas, uma sabia que a outra sabia, mas fingiam-se alheias. Aquele assunto pouco foi comentado naquela fazenda.
Do outro lado, Maria crescia entre bichos, cuidados e muito afeto dos pais adotivos. Já estava ficando mocinha, parecia uma índia, morena, cabelos lisos, olhos puxados. Seus pais contrataram um professor para ensiná-la a desenhar seu nome. Compuseram um dote (terreno, arreios, ferramentas, um casal de cada animal e alguns réis), afinal Maria precisava de um pretendente para não ter o mesmo destino da sua suposta mãe biológica. Foi aí que apareceu o Jacinto. Homem de uma família daquela região, com os costumes tradicionais do lugar. Era boa gente, acanhado, franzino, branquinho, olhos azuis. Maria e Jacinto casaram no civil e ritual religioso para alegria de seus pais. Embora Maria soubesse fiar, bordar, cozinhar, pois fora treinada para ser uma exímia dona de casa, ela se destacou mesmo foi nos negócios. Era ela quem decidia o que plantar, o que vender e dizia: - Jacinto, temos que comprar mais terras! Já diziam os antigos: A terra, o ladrão passa por cima e não leva. Esse, sim, é negócio seguro, enfatizava. Jacinto obedecia (não sei se era feliz), mas não reclamava de nada. Juntos tiveram 14 filhos, todos nasceram lá no meio do mato, saudáveis, parto normal, parteira, banho de bacia. José, o segundo filho daquela escadinha, é o meu pai, e eu, mais uma Maria dentre as inúmeras Marias dessa linhagem familiar.

Essa minha avó, uma matriarca de quem se tomava a bênção, para todos nós era a Deusa do saber, com quem todos se aconselhavam. Mal assinava seu nome, suas compreensões de Deus vinham através da natureza, do ouvir e, principalmente, do sentir.
Um dia, conversando com ela, me lembro de que estava beirando seus noventa anos, e com muita sutileza, eu queria saber sobre mágoa e superação, se havia feridas.

Ela me disse: Aqui na redondeza a minha historia é um conto dramático. As pessoas acham que eu carrego comigo o trauma de ter sido abandonada, que não podem comentar comigo esse assunto. Ledo engano! Não tenho o que lamentar. Acho a vida muito boa. Basta olhar o nosso quintal: as flores da pitangueira querem ser pitangas, as flores da pimenteira querem ser pimentas, as flores de mostarda querem ser mostardas, cada uma no seu jeito. Eu vim ao  mundo ao meu jeito, chorei e me esforcei para ser Maria. Simples! O importante é que estou aqui. E sorriu. O único sentimento que carrego dessa historia é de piedade, piedade de minha mãe, que me gerou e que certamente viveu um drama carregando consigo a dor. Abraçamo-nos longamente.


Um comentário: