quarta-feira, 1 de novembro de 2017

Escrivaninha do Pai


Sebastião Aimone Braga

Meu pai tinha escrivaninha alta. De onde eu contemplava a vida,
Ali representada pelos moradores, balcão, a estrada em frente.
No meio, havia duas gavetas.
Numa, trancada, o dinheiro da venda, o revólver nunca usado.
Na outra: papéis, selos, canivetes, retratos antigos,
Cadernetas dos fregueses, longas histórias de dívidas
Divididas entre jornais velhos, cartas e mistérios
No ministério de infância do menino atônito.


Em cima da escrivaninha, um rádio antigo
Ligo.  Ouço o bom-dia pela manhã
A voz do locutor dialogando comigo.
À tardinha, eram as novelas e D”Artagnans,
Jerônimo, o herói do sertão, Moleque Saci
E os livros que encontrava ali.
À noite, o pai dormia cedo.
E eu ia ouvir meu futebol.
Torcia sozinho em meio ao breu da venda
Vendo a corrida assustada dos ratos.
Quem era aquele atrevido que invadia o espaço,
roubava guaraná e mexia no escondido,
engasgava diante do ídolo, miúdo passo?


Quem era aquele menino?
Quem era aquele pai?
Que história escrevia o destino?


Rádio e escrivaninha não existem mais.
As gavetas são as da memória.
E meu pai descansa num tranquilo cais
Entre as pedras do tempo e da história.


Mas aqui dentro do peito
Ajeito este necessário espanto
Este canto de saudade
Desenhado, cinzento, em sonho.
E pela secura aparente das mãos inábeis,
A repetir imagem e gestos, o poeta
Põe-se a reescrever laços e lembranças.
A palavra e o verso dão a mão à criança.
A vida, agora, puro mergulho. E o pai, distante.
Diante de mim, rádio, escrivaninha e gavetas
Escorrem lentos como o pai, sem esperanças.


2 comentários:

  1. Parabéns Sebastião pela premiação concurso OAP-UFMG

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    1. Obrigado pelo carinho, pelos incentivos de sempre, Fátima! A OAP ainda lhe deve reconhecimento, tanta coisa linda saída do cerrado, tanto lirismo lhe saindo dos versos. Abraço!

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