Solange Amado ladeira
Às vezes, fico elocubrando de onde vem esse meu enorme
interesse por livros policiais e histórias de suspense, coisas que consumo em
doses consideráveis. É um mistério insondável, mas ao examinar o caso sob uma
determinada vertente, uma pista parece elementar. Seja lá o que for, a coisa
toda remonta a um tempo remoto da minha infância. Pensando bem, o mistério
sempre fez parte do meu cotidiano.
Minha casa era uma creche. Seis crianças iam e vinham,
entravam e saiam num moto contínuo de energia. Minha mãe se dividia entre casa,
trabalho e o estudo de piano; não podia prestar atenção a cada um dos filhos.
Isso deixava a minha curiosidade à solta.
A cidade na época era pequenina. Meu pai era um dos dois
juízes que se ocupavam dos “imbróglios” que aconteciam por lá e que iam parar
no Forum. Os processos se avolumavam no seu escritório, que ocupava o quarto
mais importante da casa, rodeado de estantes recheadas de livros, subindo por
todas as paredes, com uma enorme escrivaninha no meio.
E é aí que entra o meu tesão pelo mistério. Nesses calhamaços
que se empilhavam ao alcance da minha curiosidade.
Nós crianças, éramos proibidas de entrar naquele santuário,
sempre fechado. E se era proibido, era comigo mesmo. Alguma coisa deliciosa
devia acontecer dentro daqueles tijolaços que chegavam aos montes à minha casa.
Bem antes de ir para a escola, eu já sabia ler. Meio
tatibitate a princípio, rapidamente, a leitura começou a abrir portas à minha
bisbilhotice.
Logo que minha mãe e meu pai saiam para o trabalho e as
empregadas se entregavam às suas tarefas, eu abria sorrateiramente as portas
daquele santuário, já com um gostinho doce do proibido na boca, e me punha a
folhear e tentar decodificar aquela misteriosa linguagem da justiça.
As fotos não eram divertidas, eu passava rápido por gente
estropiada, esfaqueada e litros de sangue pelo chão, corpos, principalmente de
mulheres, mas era o texto que me implicava mais. A maioria dos crimes acontecia
em um lugar chamado “o baixo meretrício”, um lugar, evidentemente muito
perigoso e eu não sabia como ou por que alguém ia querer frequentar um lugar
tão suspeito. Minha língua coçava com a vontade de perguntar, mas certamente,
isso me traria complicações.
A coisa ainda se agravava mais, de vez que tinha um advogado,
um tanto janota, baixinho, gordo e vermelhinho que ia com frequência à minha
casa e quando um de nós atendia a campainha, ele dizia: “o meritíssimo está?”
Para os meus ouvidos infantis, aquilo soava como “o meretrissimo está?”
Caramba! Meu pai devia ter qualquer cargo no baixo meretrício e isso não
combinava em nada com o homem sério e pacífico que eu conhecia, mas ainda havia
algo que aumentava as minhas suspeitas: os dois juízes da cidade eram muito
amigos e andavam sempre juntos – meu pai baixo e gordinho, o outro alto e
forte. Meu irmão mais velho, absolutamente irônico gostava de comentar: “lá
vão, o baixo e o alto meretríssimo”. E aí? Como resolver esse mistério?
Outros mistérios ainda se somavam a esses dentro daqueles
alfarrábios – o corpo estava sempre em “decúbito dorsal”. Até hoje nunca ouvi
ninguém perguntar ao outro se dorme em “decúbito dorsal”, pelo menos na minha
família, acho que ninguém dorme em “decúbito dorsal”. Eu separava as sílabas
de-cu-bi-to. Conclui que era um palavrão, daí só ser usado no baixo meretrício.
Ainda mais difícil era resolver o mistério da quantidade de
gente que morria de “délivrance forçada”. Mesmo depois que aprendi a consultar
o dicionário, o mistério continuou porque a palavra não existe em nenhum deles.
Demorou um tempo pra eu alcançar aquele linguajar esotérico e é triste
compreender que a linguagem pode ter mudado (espero), mas os abortos continuam
matando tantas mulheres por aí, e não só as meretrizes.
E pasmem, 90% da mulherada guardava sempre uma “peça íntima”
na bolsa... Eu dava tratos à bola tentando adivinhar que diabo de peça era essa,
inutilmente.
Extrair alguma compreensão daquele linguajar, com seis anos
de idade, era submeter meus miolos a uma “délivrance forçada”, eu presumo. E eu
tentava, bravamente.
Ando meio afastada de expressões jurídicas e afins, mas ainda
hoje penso que a justiça tem muito a aprender com a encantadora obviedade das
crianças, que dispensam os rodeios e nos pegam frequentemente de calças na mão,
o que nos impede de “escorregar” pelos meandros da linguagem e da situação.
Lembro-me quando meu irmão, então com três ou quatro anos
atendeu à campainha. Algum advogado figuraça da cidade procurava pelo meu pai.
Informado pelo menino de que ele não estava e vendo que não poderia deixar
nenhum recado com uma criança tão pequena, pediu para falar com minha mãe. Meu
irmão saiu aos berros em direção ao banheiro onde minha mãe acabara de entrar.
De lá de dentro ouviu um resmungo: “Caramba! Nem nessa hora eu tenho um pouco
de paz!” Meu irmãozinho não conversou, deu meia
volta e informou também aos berros ao cidadão que esperava impaciente na
porta, da maneira mais direta possível, que minha mãe estava envolvida numa
ocupação que demandava muita paz e não queria ser incomodada.
É claro que quase foi vítima de um infanticídio. Saia justa
inevitável, mas ninguém pôde alegar que não viu, ouviu ou não entendeu.
Português mais claro não existe. Estamos necessitados dessa transparência na
justiça.
E se consegui ao longo de tantos anos decifrar essa linguagem
esotérica dos processos que percorri na minha infância. Se isso se tornou um
“cherchez la femme” um tanto obsessivo e voraz. Não importa. O que importa é
que continuamos complicando os crimes, no baixo ou no alto meretrício. A coisa
é simples: ajoelhou, tem de rezar.