Com licença poética
Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta,
anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me
cabem,
sem precisar mentir.
Não sou feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza
e
ora sim, ora não, creio em parto
sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a
sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
— dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição
pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.
( Adélia Prado )
Impressionista
Uma ocasião,
meu pai pintou a casa toda
de alaranjado brilhante.
Por muito tempo moramos numa
casa,
como ele mesmo dizia,
constantemente amanhecendo.
( Adélia Prado )
Pranto Para Comover Jonathan
Os diamantes são indestrutíveis?
Mais é meu amor.
O mar é imenso?
Meu amor é maior,
mais belo sem ornamentos
do que um campo de flores.
Mais triste do que a morte,
mais desesperançado
do que a onda batendo no rochedo,
mais tenaz que o rochedo.
Ama e nem sabe mais o que ama.
( Adélia Prado )
Ensinamento
Minha mãe achava estudo
a coisa mais fina do mundo.
Não é.
A coisa mais fina do mundo é o
sentimento.
Aquele dia de noite, o pai
fazendo serão,
ela falou comigo:
“Coitado, até essa hora no
serviço pesado”.
Arrumou pão e café , deixou tacho
no fogo com água quente.
Não me falou em amor.
Essa palavra de luxo.
( Adélia Prado )
Casamento
Há mulheres que dizem:
Meu marido, se quiser pescar,
pesque,
mas que limpe os peixes.
Eu não. A qualquer hora da noite
me levanto,
ajudo a escamar, abrir, retalhar
e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na
cozinha,
de vez em quando os cotovelos se
esbarram,
ele fala coisas como “este foi
difícil”
“prateou no ar dando rabanadas”
e faz o gesto com a mão.
O silêncio de quando nos vimos a
primeira vez
atravessa a cozinha como um rio
profundo.
Por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.
Coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva.
( Adélia Prado )
Antes do nome
Não me importa a palavra, esta
corriqueira.
Quero é o esplêndido caos de onde
emerge a sintaxe,
os sítios escuros onde nasce o
“de”, o “aliás”,
o “o”, o “porém” e o “que”, esta
incompreensível
muleta que me apóia.
Quem entender a linguagem entende
Deus
cujo Filho é Verbo. Morre quem
entender.
A palavra é disfarce de uma coisa
mais grave, surda-muda,
foi inventada para ser calada.
Em momentos de graça,
infrequentíssimos,
se poderá apanhá-la: um peixe
vivo com a mão.
Puro susto e terror.
( Adélia Prado )
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