Assombros
Sou um dos 999.999 Poetas do País
O Amor e o Outro (com vídeo)
Catando os Cacos do Caos
Catar os cacos do caos
como quem cata no deserto
o cacto
- como se fosse flor.
Catar os restos e ossos
da utopia
como de porta em porta
o lixeiro apanha
detritos da festa fria
e pobre no crepúsculo
se aquece na fogueira erguida
com os destroços do dia.
Catar a verdade contida
em cada concha de mão,
como o mendigo cata as pulgas
no pêlo
- do dia cão.
Recortar o sentido
como o alfaiate-artista,
costurá-lo pelo avesso
com a inconsútil emenda
à vista.
Como o arqueólogo
reunir os fragmentos,
como se ao vento
se pudessem pedir as flores
despetaladas no tempo.
Catar os cacos de Dionisio
e Baco, no mosaico antigo
e no copo seco erguido
beber o vinho
ou sangue vertido.
Catar os cacos de Orfeu partido
pela paixão das bacantes
e com Prometeu refazer
o fígado
- como era antes.
Catar palavras cortantes
no rio do escuro instante
e descobrir nessas pedras
o brilho do diamante.
É um quebra-cabeça?
Então
de cabeça quebrada vamos
sobre a parede do nada
deixar gravada a emoção
Cacos de mim
Cacos do não
Cacos do sim
Cacos do antes
Cacos do fim
Não é dentro
nem fora
embora seja dentro e fora
no nunca e a toda hora
que violento
o sentido nos deflora.
Catar os cacos
do presente e outrora
e enfrentar a noite
com o vitral da aurora
( Affonso Romano de Sant’Anna )
Arte-final
Não basta um grande amor
para fazer poemas.
E o amor dos artistas, não se
enganem,
não é mais belo
que o amor da gente.
O grande amante é aquele que
silente
se aplica a escrever com o corpo
o que seu corpo deseja e sente.
Uma coisa é a letra,
e outra o ato,
quem toma uma por outra
confunde e mente.
( Affonso Romano de Sant’Anna )
Amar a Morte
Amar de peito aberto a morte.
Não de esguelha, de frente.
Amar a morte,
digamos,
despudoradamente.
Amá-la como se ama
uma bela mulher
e inteligente.Amá-la
diariamente
sabendo que por mais
que a amemos
ela se deitará
com uns e outros
indiferente.
( Affonso Romano de Sant’Anna )
Despedidas
Começo a olhar as coisas
como quem, se despedindo, se
surpreende
com a singularidade
que cada coisa tem
de ser e estar.
Um beija-flor no entardecer desta
montanha
a meio metro de mim, tão íntimo,
essas flores às quatro horas da
tarde, tão cúmplices,
a umidade da grama na sola dos
pés, as estrelas
daqui a pouco, que intimidade
tenho com as estrelas
quanto mais habito a noite!
Nada mais é gratuito, tudo é
ritual
Começo a amar as coisas
com o desprendimento que só têm
os que amando tudo o que perderam
já não mentem.
( Affonso Romano de Sant’Anna )
Limites do Amor
Condenado estou a te amar
nos meus limites
até que exausta e mais querendo
um amor total, livre das cercas,
te despeça de mim, sofrida,
na direção de outro amor
que pensas ser total e total será
nos seus limites da vida.
O amor não se mede
pela liberdade de se expor nas
praças
e bares, em empecilho.
É claro que isto é bom e, às
vezes,
sublime.
Mas se ama também de outra forma,
incerta,
e este o mistério:
- ilimitado o amor às vezes se
limita,
proibido é que o amor às vezes se
liberta.
( Affonso Romano de Sant’Anna )
Cena Familiar
Densa e doce paz na semiluz da
sala.
Na poltrona, enroscada e absorta,
uma filha
desenha patos e flores.
Sobre o couro, no chão, a outra
viaja silenciosa
nas artimanhas do espião.
Ao pé da lareira a mulher se
ilumina numa gravura
flamenga, desenhando, bordando
pontos de paz.
Da mesa as contemplo e anoto a
felicidade
que transborda da moldura do
poema.
A sopa fumegante sobre a mesa,
vinhos e queijos,
relembranças de viagens e a
lareira acesa.
Esta casa na neblina, ancorada
entre pinheiros,
é uma nave iluminada.
Um oboé de Mozart torna densa a
eternidade
( Affonso Romano de Sant’Anna )
Fascínio
Casado, continuo a achar as
mulheres irresistíveis.
Não deveria, dizem.
Me esforço. Aliás,
já nem me esforço.
Abertamente me ponho a
admirá-las.
Não estrou traindo ninguém,
advirto.
Como pode o amor trair o amor?
Amar o amor num outro amor
é um ritual que, amante, me
permito.
( Affonso Romano de Sant’Anna )
Reflexivo
O que não escrevi, calou-me.
O que não fiz, partiu-me.
O que não senti, doeu-se.
O que não vivi, morreu-se.
O que adiei, adeus-se.
( Affonso Romano de Sant’Anna )
Separação
Desmontar a casa
e o amor. Despregar
os sentimentos das paredes e
lençóis.
Recolher as cortinas
após a tempestade
das conversas.
O amor não resistiu
às balas, pragas, flores
e corpos de intermeio.
Empilhar livros, quadros,
discos e remorsos.
Esperar o infernal
juizo final do desamor.
Vizinhos se assustam de manhã
ante os destroços junto à porta:
-pareciam se amar tanto!
Houve um tempo:
uma casa de campo,
fotos em Veneza,
um tempo em que sorridente
o amor aglutinava festas e
jantares.
Amou-se um certo modo de
despir-se
de pentear-se.
Amou-se um sorriso e um certo
modo de botar a mesa. Amou-se
um certo modo de amar.
No entanto, o amor bate em
retirada
com suas roupas amassadas, tropas
de insultos
malas desesperadas, soluços
embargados.
Faltou amor no amor?
Gastou-se o amor no amor?
Fartou-se o amor?
No quarto dos filhos
outra derrota à vista:
bonecos e brinquedos pendem
numa colagem de afetos
natimortos.
O amor ruiu e tem pressa de ir
embora
envergonhado.
Erguerá outra casa, o amor?
Escolherá objetos, morará na
praia?
Viajará na neve e na neblina?
Tonto, perplexo, sem rumo
um corpo sai porta afora
com pedaços de passado na cabeça
e um impreciso futuro.
No peito o coração pesa
mais que uma mala de chumbo.
( Affonso Romano de Sant’Anna )
Chegando em Casa
Chegando em casa
com a alma amarfanhada
e escura
das refregas burocráticas
leio sobre a mesa
um bilhete que dizia:
- hoje 22 de agosto de 1994
meu marido perdeu, deste terraço:
mais um pôr de sol no Dois Irmãos
o canto de um bem-te-vi
e uma orquídea que entardecia
sobre o mar.
( Affonso Romano de Sant’Anna )
Amor e Medo
Estou te amando e não percebo,
porque, certo, tenho medo.
Estou te amando, sim, concedo,
mas te amando tanto
que nem a mim mesmo
revelo este segredo.
( Affonso
Romano de Sant’Anna )
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