terça-feira, 25 de fevereiro de 2025

Um encontro com Carlos Drummond Andrade


Intervalos



 Ao pé de ouvido com Carlos Drummond de Andrade

No intervalo do almoço, eu tenho o hábito de fazer uma pequena leitura, nada ligado aos temas cotidianos, sérios, profundos ou profissionais. É um momento que reservo para executar o que me permite ou convier por prazer e absolutamente nada por dever. Portanto, almoçar todos os dias com vários poetas tornou-se uma rotina para mim.   Semana passada, estive com Patativa do Assaré, ontem, com João José, hoje, com William Blake, poetas consagrados, poetas anônomimos, personagens bíblicos, não importa. O que importa é o que eu busco naquele instante. E confesso que esses encontros sempre foram um aprendizado.  Os poetas têm o poder de imortalizar os meus sonhos, me envolver com magia. Disse o grande Garcia Lorca: “Todas as coisas têm o seu mistério. E a poesia é o mistério de todas as coisas.”

Anos  atrás, me aconteceu algo extraordinário, isso por volta dos anos 1926.  Era sexta-feira, uma noite de inverno muito fria em Belo Horizonte,  eu  estava com alguns amigos na  Confeitaria Elite, de propriedade do  sogro do poeta Alphonsus de Guimaraens Filho,  point da geração dos Cavaleiros do Apocalipse.  A gente costumava fazer “via sacra” pelos bares da cidade. Nessa noite,  demos uma passada no Café Estrela, logo à frente, na rua da Bahia, lado direito de quem sobe, logo depois da Rua dos Goitacases, do número,  eu não me recordo.

Eu não podia imaginar que uma odisseia de emoções seria deslanchada naquela noite. Lá estava o grupo estrela, que tinha esse nome devido ao Café Estrela onde eles gostavam de reunir, e Carlos Drummond de Andrade, o alfa dessa constelação, estava   ladeado pelos brilhantes   Abgar Renault, Mario Casassanta, Aníbal Machado, João Alphonsus de Guimaraens, Pedro Nava, Ciro dos Anjos, entre outros.

Drummond, com seu jeito acanhado como ele mesmo dizia, meio curvo, seus óculos que pareciam pesados para aquele rosto fino e semblante leve. Eu já era sua assídua leitora,  colecionava seus artigos e crônicas publicados no Diário de Minas, sempre relia aquelas folhas de jornal recortadas e já amareladas.

Não me intimidei nem com a presença da senhorita Dolores  Dutra, penetrei sutilmente entre os presentes e disse ao  pé de ouvido do Drummond: “Olhe, você não me conhece, entretanto,  inúmeras  vezes eu tive o privilégio de almoçar com você.

Com as mãos na altura da cintura, entrelaçadas, ele me olhou calmamente por cima dos óculos. Surpreendentemente, não estranhou minhas palavras. Afinal, ele nunca tinha me visto, então, como eu poderia dizer que já havia estado com ele?! Mas ele entendeu de imediato a minha colocação e com um sorriso preso me disse: “Amanhã, amanhã, materializaremos esse nosso encontro e vamos almoçar juntos.” Desconfiada, eu não sabia como interpretar sua resposta. Estaria ele sorrindo para mim ou sorrindo de mim! Mesmo invocada, eu não me continha de emoção.

-Acorde,  Fátima!, disse-me em silêncio, suplicando,  por favor Drumond, não brinque assim comigo, me leve a sério. Apesar de minha colocação ser  no sentido figurativo, ela  não deixa de ser uma verdade.

– Acredite, então!? Eu estou sendo sincero, repito, vamos materializar esse nosso encontro? Com medo de realmente acordar, me apressei e disse:

-Combinado! Combinado! Onde nos encontraremos?

– Em sua casa, ele respondeu.

– Em minha casa?  Mas…mas, ele completou:

-Estou certo que em sua casa  tem um teto, tem chão, tem privada, não fica em  Punta Ballena, no  Uruguai, e sim aqui mesmo em Belo Horizonte, e lá todos fazem pipi, completei brincando. Eu não podia imaginar que mais tarde esse nosso trocadilho serviria de inspiração no Antônimo para Vinícius de Moraes. – Combinado! Pontualmente ao meio dia!?

Me retirei daquele recinto apressadamente, pois a manhã estava muito próxima e eu precisava me preparar para receber em minha casa uma pessoa tão especial.

Fui direto para uma floricultura e comprei Flores Belas, enfeitei a mesa no  estilo Espanca, imbuída de vaidade, e com desejo de impressionar, imprimi em cada pétala:

“Sonho que sou a Poetisa eleita,
Aquela que diz tudo e tudo sabe,
Que tem a inspiração pura e perfeita,
Que reúne num verso a imensidade!
E quando acordo
do meu sonho…
sou nada!…”

Fiquei maravilhada com o resultado e pensei comigo que até a Flor Bela Espanca orgulhosa compareceria   a esse almoço.  Quanto ao cardápio, eu estava tranquila pois já o sabia decorado e  salteado os gostos do Drumond, pois, como já disse inúmeras vezes,  almoçamos juntos, e ele já havia me confessado os seus gostos.  Como ingredientes para preparar o prato, busquei nos campos de Itabira do Mato Dentro, nas ruas íngremes de Ouro Preto, nas esquinas de Belo Horizonte e nos bares do  Rio de Janeiro, a farra, a razão, e a poesia. Para o tempero, convidei a loucura e a lucidez. Sobremesa ah… não podia faltar a sobremesa! E para tal,  encomendei sonhos, muitos sonhos recheados de imortalidade. O encontro foi inesquecível.  Repito o encontro foi realmente inesquecível, não houve nenhuma pedra no meio do caminho. Nunca me esquecerei desse acontecimento na vida de minhas retinas tão fatigadas. Nunca me esquecerei que no meio do caminho não tinha uma pedra.

Tudo perfeito e mágico.

Às vezes, eu fico repensando no nosso encontro e logo martela em minha cabeça a sugestão do Hugo Assmanno: “Não é saudável meter-se a profeta de sonhos exagerados…basta alentar com fruição profunda sonhos modestos que pelo  menos algumas pessoas compartilham conosco”.

Mas o que pensamos ser essencial? Amanhã é uma coisa ótima para se sonhar, mas também não é real. Hoje mesmo ouvi de William Blake:  “Ver um mundo num grão de areia  um céu numa flor silvestre.  Ter o infinito na palma da sua mão e a Eternidade numa hora.”  Não é extraordinário?
                               Fatima Fonseca

domingo, 23 de fevereiro de 2025

De repente ... poesia

 Limitado,   

é um sujeito

que é todos nós  

com seus  hiatos, traços e rastros


em cada vão 

resquícios de loucura

sopros de ternura 


De repente...

um poema ergue 

nas farpas do limite

sem se ferir

                 Fatima Fonseca



sábado, 22 de fevereiro de 2025

 

Torne-se comum e você será extraordinário; tente se tornar extraordinário e você continuará sendo comum...

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2025

 

numa ponta a realidade

na outra ponta o devaneio

meu Deus, 

de onde vem esse morrer de cada dia? 

FF


Haicai



vida no asfalto 

ao entardecer

encontro de passarinhos


           Fatima Fonseca

domingo, 16 de fevereiro de 2025

 “Somos as coisas que moram dentro de nós. Por isso há pessoas que são bonitas. Não pela cara, mas pela exuberância do seu mundo interno.” R. Alves

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

 É uma poeta amadora. Por que não profissional?

Porque só um amador é profissional na arte de amar (as palavras).


Lídia Borges

terça-feira, 4 de fevereiro de 2025

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2025

 


Minha mãe achava estudo a coisa mais fina do mundo. Não é.
A coisa mais fina do mundo é o sentimento.
Adélia Prado

sábado, 1 de fevereiro de 2025

Eu sei, mas nao devia

 

Crônica de Marina Colasanti.


Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.

A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.

A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagar mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.

A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.

A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.

A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.


A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.