quarta-feira, 21 de outubro de 2015

POEMAS ESCOLHIDOS DE ANTÓNIO VILHENA

Amor oculto
Há um amor indizível à espera dos corpos
um amor quase oculto feito de sombras
e desejos que não cabem
nas palavras de um amor convencional.
Há um arco sem fim entre as margens
dessa espera, um dragão de fogo renascido
na esperança onde a solidão é coisa
de adolescentes e de amantes separados.
Há a voz indelével como as águas livres
da montanha o eco e a insónia no rubor
da tua face branca onde adormecem
as noites e o luar das mãos.

- António Vilhena, em "Só há uma vida e uma morte". 2015 (inédito).


Cuidar de ti
Cuidar de ti é trazer a Primavera cativa
os aromas do amor num aquário azul
peixes e beijos desenhados na boca.
Cuidar de ti é acordar corpo a corpo
eternidade dos instantes sem pressa
num mar de desejos em pleno fogo.
Cuidar de ti é ser tudo quanto somos
guardar o antes e o depois na melodia
de um verso que viva dentro de nós.
Cuidar de ti é dar-te sem que me peças
nunca é muito se nos damos ao outro
e ao sonho nesse mar a que regressas.
- António Vilhena, em "Só há uma vida e uma morte". 2015 (inédito).


Dor
Quando o nosso amor está doente
as estrelas parecem ainda mais distantes
há uma dor indizível sob a pele mesmo se não dizemos nada.
Sei do que falas quando falas dessa dor
que nos acorda ao nascer do dia
e se entranha quando as aves nocturnas saem para a caçada.
A dor mais funda é onde a liberdade atravessa o olhar
como um rio levada na corrente inadiável
de um amor inteiro sem lágrimas.
- António Vilhena, em "Só há uma vida e uma morte". 2015 (inédito).


É tão nosso...
É tão nosso este amor, poético e puro, sorridente e alegre!
É tão nosso o cheiro a manhã, o pão quente partilhado,
com meio-beijo ou beijo inteiro, a gargalhada esvoaçante.
É tão nosso o olhar que derramamos sobre a varanda
em busca do sol ou, ainda, quando ficamos em silêncio
adivinhando as viagens nos corpos tatuados a sémen.
É tão nosso esse gesto de pedir colo sem dizer nada
com a ponta dos dedos e acrobacias sensuais.
É tão nosso o tempo sem pressa e as palavras da noite
segredadas na pele, iluminada de horizontes e sonhos.
É tão nosso não pedir nada, ser apenas de cada um
onde permanece o muito que nos quer.
- António Vilhena, em "Só há uma vida e uma morte". 2015 (inédito).


Nos poemas onde as metáforas
Nos poemas onde as metáforas
e as tranças se desnudam
as cumplicidades e os abraços
enlaçam as árvores
entre o perto e o longe
nesse mar de sargaços
onde tudo parece pouco
quando estamos a dois
e o tempo antes de o ser
era mais que o teu nome
num vale de pétalas.
- António Vilhena, em "Templo do fogo insaciável". Coimbra: Caracol Edições, 2013.



Olhei-te nos olhos
estavam lá todas as paisagens que cresceram no silêncio,
onde apenas sobrevivem os que se entregam pelo coração.
Vi o que outros não viram antes e, talvez, os que hão-de vir.
Vi a púrpura nos lábios, tinta de muitos poemas,
subtraída ao luar nesse imenso espelho de água,
onde se afogam as mágoas e as tormentas.
Vi o Adamastor sulcando a porta das especiarias,
temor de naus e caravelas antes e depois de Calecute.
Vi o Minotauro lançando-se sobre o linho indefeso das Vestais.
Vi o que outros não viram antes e, talvez, os que hão-de vir.
Vi a beleza num castiçal luminoso, cercado de sombras e de medos
sob a mão indizível do mestre-de-cerimónias.
Onde se abriam rosas, havia paredes brancas e barra azul
para perpetuares as manhãs e o céu nos meus olhos.
Vi o que chega tarde e nunca vai embora: a arte inquieta dos instantes,
dividindo os dias e as noites numa cegueira cúmplice.
Vi o que outros não viram antes e, talvez, os que hão-de vir.
- António Vilhena, em "Só há uma vida e uma morte". 2015 (inédito).


Planície
Nos seus rostos não há lugar para ironias
a planície inteira está na pele
queimada como tatuagem da terra.
Quando a noite chega
os círios sinalizam
os percursos da intimidade
e a solidão ganha vida nas trevas
dos que ficam sem companhia.
Nunca um alentejano cantou sozinho,
a sua voz ecoa solidária, o silêncio atravessa
um tambor de paixões
orquestrando o amor de Orpheu e Eurídice.
- António Vilhena, em "Canto imperecível das aves". Coimbra: Caracol Edições, 2012.


Saudade
Olho-te na fotografia. Está lá um horizonte,
uma página à tua espera para escreveres, depois
de tanta ausência. Estão lá as linhas convergentes
como uma nódoa de esperança na pele branca
do poema. Não sou capaz de dizer os instantes à
beira do cais, onde aceno aos navios que outrora
visitaram os meus sonhos, como se estivesses nas
rotas de todos os encontros e as tuas mãos fossem
velas puídas pelo tempo. Olho-me na fotografia.
Acrescento-lhe os anos, mas não posso inventar
o que não vivemos.

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