O DIA DE ANGELO - FREI BETO
Deixe sua vocação literária explodir no impulso de vida que
corre em tuas veias. Não tenhas a pretensão de escrever melhor que outros.
Basta-te a certeza de que ninguém pode escrever igual a ti. O estilo é o rosto
do autor, e não há dois iguais. Escreve com a pele, não com a cabeça.
Entrega-te à tua obra com paixão, ainda que ela te consuma e resulte na sua
condenação à morte.
Há um tempo para cada coisa, diz o Eclesiastes. Nas letras,
há um tempo para ler e um tempo para ruminar o que se leu; há um tempo para
engravidar de uma situação, ideia, imagem ou história, e um tempo para leva-las
ao papel em sinais gráficos. Não vazes o teu talento em ansiedade. Dedica-te
pacientemente ao trabalho e tem coragem de soltar as feras, anjos, legiões de
demônios e fantasmas que povoam cavernas e vulcões de tua topografia interior.
A alma é mais geográfica que histórica. Tem acidentes, relevos vales e
montanhas; está sujeita a secas e tempestades, varia de estações e climas.
Ninguém embarcaria se antes considerasse os perigos do mar. Toda travessia
exige confiança no risco.
Escreve-se assim: toma-se um punhado de palavras que escorrem
céleres por veias, artérias, músculos e mãos, derramando-se entre os dedos;
esparrama-as sobre folhas secas brancas, dispondo-as ordenadamente, de forma
que traduzam ideias, sentimentos, emoções, recordações, visões e propósitos.
Respeite a respiração das palavras, isso que a gramática chama de pontuação.
Deixe que elas descansem ao fim de um conceito, recobrem forças antes de
iniciar nova frase, estejam cadenciadas por vírgulas e pontos nas orações. Não
exija delas fôlego maior do que possuem e saiba que encerram curioso mistério,
pois as mesmas palavras que servem para registrar o mais insípido documento de
cartório prestam-se igualmente para compor as mais belas obras literárias. Elas
formulam sentenças de morte e esperança de vida, bulas de veneno e declarações
de amor, anúncios de guerra e tratados de paz. E, quando lapidadas pela
sensibilidade e pela intuição, delas brotam poesias, tropeis ritmados sobre
nuvens. Servem inclusive à própria loucura. Nesse caso, dizem coisas que nem
mesmo o raciocínio consegue conter e que extrapolam as
leis da grafia e da sintaxe, pois refletem essa irreprimível necessidade de exprimir
o imponderável, de escrever o absurdo, de revelar o absoluto. (p. 57 – 2ª. Ed. Brasiliense)
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