domingo, 26 de abril de 2015

O DIA DE ANGELO - FREI BETO

O DIA DE ANGELO   - FREI BETO
Deixe sua vocação literária explodir no impulso de vida que corre em tuas veias. Não tenhas a pretensão de escrever melhor que outros. Basta-te a certeza de que ninguém pode escrever igual a ti. O estilo é o rosto do autor, e não há dois iguais. Escreve com a pele, não com a cabeça. Entrega-te à tua obra com paixão, ainda que ela te consuma e resulte na sua condenação à morte.
Há um tempo para cada coisa, diz o Eclesiastes. Nas letras, há um tempo para ler e um tempo para ruminar o que se leu; há um tempo para engravidar de uma situação, ideia, imagem ou história, e um tempo para leva-las ao papel em sinais gráficos. Não vazes o teu talento em ansiedade. Dedica-te pacientemente ao trabalho e tem coragem de soltar as feras, anjos, legiões de demônios e fantasmas que povoam cavernas e vulcões de tua topografia interior. A alma é mais geográfica que histórica. Tem acidentes, relevos vales e montanhas; está sujeita a secas e tempestades, varia de estações e climas. Ninguém embarcaria se antes considerasse os perigos do mar. Toda travessia exige confiança no risco.

Escreve-se assim: toma-se um punhado de palavras que escorrem céleres por veias, artérias, músculos e mãos, derramando-se entre os dedos; esparrama-as sobre folhas secas brancas, dispondo-as ordenadamente, de forma que traduzam ideias, sentimentos, emoções, recordações, visões e propósitos. Respeite a respiração das palavras, isso que a gramática chama de pontuação. Deixe que elas descansem ao fim de um conceito, recobrem forças antes de iniciar nova frase, estejam cadenciadas por vírgulas e pontos nas orações. Não exija delas fôlego maior do que possuem e saiba que encerram curioso mistério, pois as mesmas palavras que servem para registrar o mais insípido documento de cartório prestam-se igualmente para compor as mais belas obras literárias. Elas formulam sentenças de morte e esperança de vida, bulas de veneno e declarações de amor, anúncios de guerra e tratados de paz. E, quando lapidadas pela sensibilidade e pela intuição, delas brotam poesias, tropeis ritmados sobre nuvens. Servem inclusive à própria loucura. Nesse caso, dizem coisas que nem mesmo o raciocínio consegue conter e que extrapolam as leis da grafia e da sintaxe, pois refletem essa irreprimível necessidade de exprimir o imponderável, de escrever o absurdo, de revelar o absoluto.     (p. 57 – 2ª. Ed. Brasiliense)

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