quinta-feira, 1 de maio de 2014

A CAIXA DO QUARTO DE DENTRO


crônica de Sebastião Braga

     De todos os cômodos da casa da minha infância, o quarto de dentro era o mais escondido e, hoje, o mais lembrado. Estreito, duas canastras sobrepostas embaixo da pequena janela, caixote pintado de azul com colchões de palha enrolados junto à porta, estante com livros, revistas e jornais velhos. A capa Ideal do pai atrás da porta, imponente, para os dias de frio e de chuva. No fundo, uma caixa grande, madeira clara, onde eram guardados todos os dias os travesseiros, colchas de dado, cobertores. Em meio às cobertas, relíquia da família: conjunto de louça com jarra, bacia, saboneteira, cuspideira e estojo para os pentes. Herança da bisavó, Mariana. Seu marido, Teóphilo, tinha comprado de mascates vindos do Rio de Janeiro. Além disso, mamãe escondia restos de peças de pano que tirava da venda, bem no fundo, enxoval para as filhas.
     A caixa, alta e de linhas retas, ainda servia de cama para dois ou mais, colchão de palha estendido em cima, quando família reunida ou eventuais visitas. Servia também para todos pularem em cima na algazarra, as meninas brincarem de casinha, longe dos pais e da avó. Leitura para alguns, sem serem incomodados. O quarto também era lugar para se esconder do serviço. Ninguém se lembrava de entrar lá, último lugar a procurar alguém. À noite, poucos entravam, com medo. Era o quarto de dentro, dos fundos, das histórias.
     O quarto também era usado para fazer as necessidades, no urinol, sem incômodos. Principalmente os menores, ou nos dias de chuva, quando ir à casinha de madeira sobre o córrego tornava-se aventura escorregadia. Alguns arredavam as tábuas velhas do assoalho e mijavam. A avó nunca conseguia identificar o peralta, xingava a todos, mandava jogar terra pra tirar o cheiro.
     Uma vez, as pessoas da casa disseram ter ouvido barulho de algo alisando debaixo das tábuas do quarto. Mamãe jogou canecos de água quente pelas gretas, até que viram sair cobra grande e grossa do buraco do porão.
          Vovó contava que uma vez hospedou mulher, perdera a condução para a cidade. Ficou no quarto de dentro. À noite, ouvira barulho estranho no quarto, foi averiguar. Viu fogo sobre a caixa e o colchão. Fechou a porta, assustada. Pela manhã, a mulher tomou café normalmente. Quando ela se foi, vovó contou a história da Mula sem Cabeça, que precisava passar por sete encruzilhadas para voltar ao normal. Esta e outras histórias de assombração povoavam nosso mundo infantil, alimentado ainda pelos livros lidos sobre a grande caixa de dia e pelas sombras bruxuleantes das lamparinas à noite.
          Mas, hoje, o que mais vem à lembrança não surge do sobrenatural. O pai ia para a venda, porta que separava os dois mundos. Mãe e avó multiplicavam-se nos afazeres, muitos filhos, mandavam os maiores cuidarem das crianças, varrerem a casa e o terreiro, tratarem das galinhas e dos porcos, a horta, limpeza de tudo. Estendidas as camas, dobradas as cobertas, os irmãos menores iam guardar travesseiros e colchas na caixa grande. O irmão mais velho se aproximava sorrateiro e empurrava as vítimas pra dentro da caixa, que era fechada com a alta e pesada tampa. Caíam de cabeça para baixo lá dentro, no escuro, em meio a tanta coisa, não conseguiam se aprumar, sufocadas. Gritavam por socorro, em desespero, mas os gritos saíam abafados. Ninguém se lembrava do quarto de dentro. O algoz ainda ameaçava: a cuíca vai te pegar! Apavoradas, as crianças lembravam-se da corrida dos ratos no forro de esteira. A cabeça povoava-se de monstros, morreriam ali, sozinhas.
      Até que a mãe ou a avó se surpreendiam com o silêncio da casa, davam falta das crianças e iam procurá-las quarto a quarto. De repente, ouviam vozes distantes, levantavam a pesada tampa da caixa, davam com os pequenos, chorosos. A história sempre terminava com castigo no corredor. E ai de quem passasse por ali; levava socos e pontapés. Saía chorando de novo atrás da mãe.
     A história se repetia mais tarde, com outros irmãos e o gesto maldoso, divertindo-se com o medo dos menores. Círculos e travessuras.
     A caixa do quarto de dentro representou na infância o mito invertido da Caixa de Pandora. O terror e os males do mundo moravam lá dentro, quando fechada, chegavam por mãos humanas. Sua catarse viria mais tarde, todos já maiores. Era o lugar preferido nas brincadeiras de esconde-esconde. Às vezes, mais de uma criança ali ficava, divertida. Medo e encantamento. Recordações que ficam.
                                                                             
 Sebastião Aimone Braga
                                                                       
    


4 comentários:

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  2. Obrigado pelas postagens e por todo o carinho compartilhado, Fátima! Meu abraço amigo! Sebastião Aimone Braga

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  3. Tião, parabéns!! Sempre foi um ótimo escritor. Por onde você anda? Voltou pra Minas?


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    1. Oi, Patrícia! Quanto tempo, andamos sumidos. Obrigado pelo carinho de sempre! Continuo em Belo Horizonte, mesmo endereço, aposentado há quase 12 anos, fazendo oficina de escrita na UFMG, estudando línguas, viajando... E com você, tudo bem? Continua em Brasília? Família, todos bem? Beijo, boas festas e bons encontros em 2019!

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