crônica de Sebastião Braga
De todos os cômodos da casa da minha infância, o quarto de dentro
era o mais escondido e, hoje, o mais lembrado. Estreito, duas canastras
sobrepostas embaixo da pequena janela, caixote pintado de azul com colchões de palha
enrolados junto à porta, estante com livros, revistas e jornais velhos. A capa
Ideal do pai atrás da porta, imponente, para os dias de frio e de chuva. No
fundo, uma caixa grande, madeira clara, onde eram guardados todos os dias os
travesseiros, colchas de dado, cobertores. Em meio às cobertas, relíquia da
família: conjunto de louça com jarra, bacia, saboneteira, cuspideira e estojo
para os pentes. Herança da bisavó, Mariana. Seu marido, Teóphilo, tinha
comprado de mascates vindos do Rio de Janeiro. Além disso, mamãe escondia restos
de peças de pano que tirava da venda, bem no fundo, enxoval para as filhas.
A caixa, alta e de
linhas retas, ainda servia de cama para dois ou mais, colchão de palha
estendido em cima, quando família reunida ou eventuais visitas. Servia também
para todos pularem em cima na algazarra, as meninas brincarem de casinha, longe
dos pais e da avó. Leitura para alguns, sem serem incomodados. O quarto também
era lugar para se esconder do serviço. Ninguém se lembrava de entrar lá, último
lugar a procurar alguém. À noite, poucos entravam, com medo. Era o quarto de
dentro, dos fundos, das histórias.
O quarto também era
usado para fazer as necessidades, no urinol, sem incômodos. Principalmente os
menores, ou nos dias de chuva, quando ir à casinha de madeira sobre o córrego
tornava-se aventura escorregadia. Alguns arredavam as tábuas velhas do assoalho
e mijavam. A avó nunca conseguia identificar o peralta, xingava a todos,
mandava jogar terra pra tirar o cheiro.
Uma vez, as pessoas da
casa disseram ter ouvido barulho de algo alisando debaixo das tábuas do quarto.
Mamãe jogou canecos de água quente pelas gretas, até que viram sair cobra
grande e grossa do buraco do porão.
Vovó contava que
uma vez hospedou mulher, perdera a condução para a cidade. Ficou no quarto de
dentro. À noite, ouvira barulho estranho no quarto, foi averiguar. Viu fogo
sobre a caixa e o colchão. Fechou a porta, assustada. Pela manhã, a mulher
tomou café normalmente. Quando ela se foi, vovó contou a história da Mula sem
Cabeça, que precisava passar por sete encruzilhadas para voltar ao normal. Esta
e outras histórias de assombração povoavam nosso mundo infantil, alimentado
ainda pelos livros lidos sobre a grande caixa de dia e pelas sombras bruxuleantes
das lamparinas à noite.
Mas, hoje, o que mais vem à lembrança não
surge do sobrenatural. O pai ia para a venda, porta que separava os dois
mundos. Mãe e avó multiplicavam-se nos afazeres, muitos filhos, mandavam os
maiores cuidarem das crianças, varrerem a casa e o terreiro, tratarem das
galinhas e dos porcos, a horta, limpeza de tudo. Estendidas as camas, dobradas
as cobertas, os irmãos menores iam guardar travesseiros e colchas na caixa
grande. O irmão mais velho se aproximava sorrateiro e empurrava as vítimas pra
dentro da caixa, que era fechada com a alta e pesada tampa. Caíam de cabeça
para baixo lá dentro, no escuro, em meio a tanta coisa, não conseguiam se aprumar,
sufocadas. Gritavam por socorro, em desespero, mas os gritos saíam abafados.
Ninguém se lembrava do quarto de dentro. O algoz ainda ameaçava: a cuíca vai te
pegar! Apavoradas, as crianças lembravam-se da corrida dos ratos no forro de
esteira. A cabeça povoava-se de monstros, morreriam ali, sozinhas.
Até que a mãe ou a avó
se surpreendiam com o silêncio da casa, davam falta das crianças e iam procurá-las
quarto a quarto. De repente, ouviam vozes distantes, levantavam a pesada tampa da
caixa, davam com os pequenos, chorosos. A história sempre terminava com castigo
no corredor. E ai de quem passasse por ali; levava socos e pontapés. Saía
chorando de novo atrás da mãe.
A história se repetia
mais tarde, com outros irmãos e o gesto maldoso, divertindo-se com o medo dos
menores. Círculos e travessuras.
A caixa do quarto de
dentro representou na infância o mito invertido da Caixa de Pandora. O terror e
os males do mundo moravam lá dentro, quando fechada, chegavam por mãos humanas.
Sua catarse viria mais tarde, todos já maiores. Era o lugar preferido nas
brincadeiras de esconde-esconde. Às vezes, mais de uma criança ali ficava,
divertida. Medo e encantamento. Recordações que ficam.
Sebastião Aimone Braga
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirObrigado pelas postagens e por todo o carinho compartilhado, Fátima! Meu abraço amigo! Sebastião Aimone Braga
ResponderExcluirTião, parabéns!! Sempre foi um ótimo escritor. Por onde você anda? Voltou pra Minas?
ResponderExcluirOi, Patrícia! Quanto tempo, andamos sumidos. Obrigado pelo carinho de sempre! Continuo em Belo Horizonte, mesmo endereço, aposentado há quase 12 anos, fazendo oficina de escrita na UFMG, estudando línguas, viajando... E com você, tudo bem? Continua em Brasília? Família, todos bem? Beijo, boas festas e bons encontros em 2019!
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