sábado, 23 de junho de 2012

Henriqueta Lisboa



Vem, doce morte


Vem, doce morte. Quando queiras.
Ao crepúsculo, no instante em que as nuvens
desfilam pálidos casulos
e o suspiro das árvores - secreto -
não é senão prenúncio
de um delicado acontecimento.


Quanto queiras. Ao meio-dia, súbito
espetáculo deslumbrante e inédito
de rubros panoramas abertos
ao sol, ao mar, aos montes, às planícies
com celeiros refertos e intocados.


Quando queiras. Presentes as estrelas
ou já esquivas, na madrugada
com pássaros despertos, à hora
em que os campos recolhem as sementes
e os cristais endurecem de frio.


Tenho o corpo tão leve (quando queiras)
que a teu primeiro sopro cederei distraída
como um pensamento cortado
pela visão da lua
em que acaso - mais alto - refloresça.



É estranho


É estranho que, após o pranto
vertido em rios sobre os mares,
venha pousar-te no ombro
o pássaro das ilhas, ó náufrago.


É estranho que, depois das trevas
semeadas por sobre as valas,
teus sentidos se adelgacem
diante das clareiras, ó cego.


É estranho que, depois de morto,
rompidos os esteios da alma
e descaminhado o corpo,



De súbito cessou a vida.


De súbito cessou a vida.
Foram simples palavras breves.
Tudo continuou como estava.


O mesmo teto, o mesmo vento,
o mesmo espaço, os mesmos gestos,
Porém como que eternizados.


Unção, calor, surpresa, risos
tudo eram chapas fotográficas
há muito tempo reveladas.


Todas as cousas tinham sido
e se mantinham sem reserva
numa sucessão automática.


Passos caminhavam no assoalho,
talheres batiam nos dentes,
janelas se abriam, fechavam.


Vinham noites e vinham luas,
madrugadas com sino e chuva.
Sapatos iam na enxurrada.


Meninas chegavam gritando.
Nasciam flores de esmeralda
no asfalto! mas sem esperança.


Jornais prometiam com zelo
em grandes tópicos vermelhos
o fim de uma guerra. Guerra?...


Os que não sabiam falavam.
Quem não sentia tinha o pranto.
(O pranto era ainda o recurso
de velhas cousas coniventes.)


Nem o menor sinal de vida.
Tão-só no fundo espelho a face
lívida, a face lívida.


homem, tenhas reino mais alto.


Esse despojamento


Esse despojamento
esse amargo esplendor.
Beleza em sombra
sacrifício incruento.


A mão sem jóias
descarnada
na pureza das veias.
A voz por um fio
desnuda
na palavra sem gesto.


O escuro em torno
e a lucidez
violenta lucidez terrível
batida de encontro ao rosto
como uma ofensa física.


Na imensidade sem pouso,
olhos duros
de pássaro.


Lábios que não se abrem, lábios


Lábios que não se abrem, lábios
com seu segredo
calado


Segredo no ermo da noite
resiste à rosa dos ventos
calado.


Flauta sem a vibração
do sopro.
Luar e espelho, frente a frente,
em calada
vigília.


Fria espada unida
ao corpo.


Resto de lágrimas sobre
lábios
calados.


Borboleta da morte
em sorvo
pousada à flor dos lábios
calados
calados.

Não a face dos mortos.


Não a face dos mortos.
Nem a face
dos que não coram
aos açoites
da vida.
Porém a face
lívida
dos que resistem
pelo espanto.


Não a face da madrugada
na exaustão
dos soluços.
Mas a face do lago
sem reflexos
quando as águas
entranha.


Não a face da estátua
fria de lua e zéfiro.
Mas a face do círio
que se consome
lívida
no ardor.


A menina selvagem


A menina selvagem veio da aurora
acompanhada de pássaros,
estrelas-marinhas
e seixos.
Traz uma tinta de magnólia escorrida
nas faces.
Seus cabelos, molhados de orvalho e
tocados de musgo,
cascateiam brincando
com o vento.
A menina selvagem carrega punhados
de renda,
sacode soltas espumas.
Alimenta peixes ariscos e renitentes papagaios.
E há de relance, no seu riso,
gume de aço e polpa de amora.


Reis Magos, é tempo!
Oferecei bosques, várzeas e campos
à menina selvagem:
ela veio atrás das libélulas.


Assim é o medo


Assim é o medo:
cinza
Verde.
Olhos de lince.
Voz sem timbre
Torvo e morno
Melindre.


Da sombra espreita
à espera de algo


que o alente.
Não age: tenta
porém recua
a qualquer bulha.


No campo assiste
junto ao títere
à cruz que esparze
vivo gazeio
de nervosismo
com vidro moído
grácil granizo
de pássaros.


E que rascante
violino brusco
não arrepia
ao longo o azul
dos meus veludos
se, a noite em meio
cá no fundo
quarto escuro,
a lua arrisca
numa oblíqua
o olhar morteiro.


Dentro da jaula
(mundo inapto)
do domador
em fúria à fera
subsinuosa-
mente resvala.


Aos frios reptos
do ziguezague
em choque, súbito
relampagueio,


as duas forças
se opõem dúbias
se atraem foscas
para a luta
pelo avesso:
despiste e fuga
ouro e vermelho
desde a entranha.


As duas forças
antagônicas:
qual delas ganha
acaso
ou perde
o medo
frente a
frente ao
medo?



Assombro


Século de assombro - este século.
De violência em progresso.
E os outros séculos?
Cada ser ao sentir o peso do mundo
não terá dito: século de assombro?


O assombro seca a própria sombra
de tanto secar existência:


Sequidão de corações e mentes
Secura de corpo nos ossos
Legião de cegos e de inaptos
Asfixia de túneis e masmorras
Mantos e esgares de hipocrisia
Sevícia para fins de anuência
Acúmulo de monstros e monturos
— Assombro à cunha.


Porém acima de qualquer assombro
aquele assombro vindo de antanho
para atravessar o século
de ponto a ponta — flecha escusa — e ser
perene assombro dos mortais
— a morte.



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