Intervalos
Ao pé de ouvido com Carlos Drummond de Andrade
No intervalo do almoço, eu tenho o hábito de fazer uma pequena leitura, nada ligado aos temas cotidianos, sérios, profundos ou profissionais. É um momento que reservo para executar o que me permite ou convier por prazer e absolutamente nada por dever. Portanto, almoçar todos os dias com vários poetas tornou-se uma rotina para mim. Semana passada, estive com Patativa do Assaré, ontem, com João José, hoje, com William Blake, poetas consagrados, poetas anônomimos, personagens bíblicos, não importa. O que importa é o que eu busco naquele instante. E confesso que esses encontros sempre foram um aprendizado. Os poetas têm o poder de imortalizar os meus sonhos, me envolver com magia. Disse o grande Garcia Lorca: “Todas as coisas têm o seu mistério. E a poesia é o mistério de todas as coisas.”
Anos atrás, me aconteceu algo extraordinário, isso por volta dos anos 1926. Era sexta-feira, uma noite de inverno muito fria em Belo Horizonte, eu estava com alguns amigos na Confeitaria Elite, de propriedade do sogro do poeta Alphonsus de Guimaraens Filho, point da geração dos Cavaleiros do Apocalipse. A gente costumava fazer “via sacra” pelos bares da cidade. Nessa noite, demos uma passada no Café Estrela, logo à frente, na rua da Bahia, lado direito de quem sobe, logo depois da Rua dos Goitacases, do número, eu não me recordo.
Eu não podia imaginar que uma odisseia de emoções seria deslanchada naquela noite. Lá estava o grupo estrela, que tinha esse nome devido ao Café Estrela onde eles gostavam de reunir, e Carlos Drummond de Andrade, o alfa dessa constelação, estava ladeado pelos brilhantes Abgar Renault, Mario Casassanta, Aníbal Machado, João Alphonsus de Guimaraens, Pedro Nava, Ciro dos Anjos, entre outros.
Drummond, com seu jeito acanhado como ele mesmo dizia, meio curvo, seus óculos que pareciam pesados para aquele rosto fino e semblante leve. Eu já era sua assídua leitora, colecionava seus artigos e crônicas publicados no Diário de Minas, sempre relia aquelas folhas de jornal recortadas e já amareladas.
Não me intimidei nem com a presença da senhorita Dolores Dutra, penetrei sutilmente entre os presentes e disse ao pé de ouvido do Drummond: “Olhe, você não me conhece, entretanto, inúmeras vezes eu tive o privilégio de almoçar com você.
Com as mãos na altura da cintura, entrelaçadas, ele me olhou calmamente por cima dos óculos. Surpreendentemente, não estranhou minhas palavras. Afinal, ele nunca tinha me visto, então, como eu poderia dizer que já havia estado com ele?! Mas ele entendeu de imediato a minha colocação e com um sorriso preso me disse: “Amanhã, amanhã, materializaremos esse nosso encontro e vamos almoçar juntos.” Desconfiada, eu não sabia como interpretar sua resposta. Estaria ele sorrindo para mim ou sorrindo de mim! Mesmo invocada, eu não me continha de emoção.
-Acorde, Fátima!, disse-me em silêncio, suplicando, por favor Drumond, não brinque assim comigo, me leve a sério. Apesar de minha colocação ser no sentido figurativo, ela não deixa de ser uma verdade.
– Acredite, então!? Eu estou sendo sincero, repito, vamos materializar esse nosso encontro? Com medo de realmente acordar, me apressei e disse:
-Combinado! Combinado! Onde nos encontraremos?
– Em sua casa, ele respondeu.
– Em minha casa? Mas…mas, ele completou:
-Estou certo que em sua casa tem um teto, tem chão, tem privada, não fica em Punta Ballena, no Uruguai, e sim aqui mesmo em Belo Horizonte, e lá todos fazem pipi, completei brincando. Eu não podia imaginar que mais tarde esse nosso trocadilho serviria de inspiração no Antônimo para Vinícius de Moraes. – Combinado! Pontualmente ao meio dia!?
Me retirei daquele recinto apressadamente, pois a manhã estava muito próxima e eu precisava me preparar para receber em minha casa uma pessoa tão especial.
Fui direto para uma floricultura e comprei Flores Belas, enfeitei a mesa no estilo Espanca, imbuída de vaidade, e com desejo de impressionar, imprimi em cada pétala:
“Sonho que sou a Poetisa eleita,
Aquela que diz tudo e tudo sabe,
Que tem a inspiração pura e perfeita,
Que reúne num verso a imensidade!
E quando acordo
do meu sonho…
sou nada!…”
Fiquei maravilhada com o resultado e pensei comigo que até a Flor Bela Espanca orgulhosa compareceria a esse almoço. Quanto ao cardápio, eu estava tranquila pois já o sabia decorado e salteado os gostos do Drumond, pois, como já disse inúmeras vezes, almoçamos juntos, e ele já havia me confessado os seus gostos. Como ingredientes para preparar o prato, busquei nos campos de Itabira do Mato Dentro, nas ruas íngremes de Ouro Preto, nas esquinas de Belo Horizonte e nos bares do Rio de Janeiro, a farra, a razão, e a poesia. Para o tempero, convidei a loucura e a lucidez. Sobremesa ah… não podia faltar a sobremesa! E para tal, encomendei sonhos, muitos sonhos recheados de imortalidade. O encontro foi inesquecível. Repito o encontro foi realmente inesquecível, não houve nenhuma pedra no meio do caminho. Nunca me esquecerei desse acontecimento na vida de minhas retinas tão fatigadas. Nunca me esquecerei que no meio do caminho não tinha uma pedra.
Tudo perfeito e mágico.
Às vezes, eu fico repensando no nosso encontro e logo martela em minha cabeça a sugestão do Hugo Assmanno: “Não é saudável meter-se a profeta de sonhos exagerados…basta alentar com fruição profunda sonhos modestos que pelo menos algumas pessoas compartilham conosco”.
Mas o que pensamos ser essencial? Amanhã é uma coisa ótima para se sonhar, mas também não é real. Hoje mesmo ouvi de William Blake: “Ver um mundo num grão de areia um céu numa flor silvestre. Ter o infinito na palma da sua mão e a Eternidade numa hora.” Não é extraordinário?
Fatima Fonseca